A corrupção, por sua característica multifacetária, pode ser debatida sob diferentes enfoques – sociológico, criminológico, além do próprio sentido jurídico-normativo. Neste texto, em razão de seu inevitável recorte, cuidar-se-á tão somente do aspecto criminal, ou seja, do injusto penal da corrupção.
Em tempos de “Mensalão”, “Petrolão” e afins, o debate sobre a corrupção ganha cada vez mais assento, sendo desnecessário enfatizar que se perdura a contemporaneidade do tema proposto.
O primeiro foi marco referencial para retomada dessa discussão. Na AP 470/MG, de maneira inédita, parlamentares renomados foram acusados e condenados por perceberem vantagens indevidas em troca de apoio aos projetos de interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados.
No segundo, considerada a maior investigação envolvendo crimes de corrupção e lavagem dinheiro já deflagrada em solo brasileiro, foram denunciados mais de 500 investigados, repatriados mais de R$ 4 bilhões, no bojo de 185 acordos de delação e 14 de leniência, nos quais se pactuou a devolução de aproximadamente R$ 14,3 bilhões aos cofres públicos1.
Feitos esses recortes, este texto não pretende dissecar os conceitos elementares dos crimes de corrupção. Propõe-se somente uma reflexão sobre a necessidade (ou não) de correlação entre a vantagem indevida percebida e a imputação de ato de ofício por parte do agente público. E mais, perquirir-se-á, a depender do caso, quão perfeitamente identificado há de ser o ato de ofício para a configuração do delito.
Que os atuais crimes de corrupção romperam com a tradição monista dos diplomas anteriores não há controvérsia. Ao optar pela tipificação em separado, o legislador de 1940 abriu mão da histórica bilateralidade necessária, preferindo, ao menos aparentemente, que os crimes de corrupção passiva e ativa não fossem espelhos um do outro e pudessem, portanto, ocorrer de modo independente.
A partir dessas premissas, especificamente sobre a elementar do ato de ofício, objeto deste breve trabalho, ao se cotejar o delito de corrupção passiva com a modalidade ativa, infere-se que, ao menos do ponto de vista gramatical, diferente do primeiro, o ato de ofício é imprescindível para a configuração do segundo, já que a vantagem oferecida pelo extraneus ao agente público deve ser dirigida a “determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”.
Portanto, o primeiro problema proposto é investigar se há proporcionalidade no “transporte” para o crime de corrupção passiva da elementar contida somente no tipo de corrupção ativa. Essa ideia de “transporte da elementar” foi assentada pelo E. STF, no julgamento da AP 307/DF – case Collor, em que a Corte decidiu não ser possível abrir mão da demonstração do ato de ofício concretamente mercadejado. Não obstante ter restado evidenciada a percepção da vantagem ilícita (Fiat Elba e uma reforma na Casa da Dinda), o ex-presidente foi absolvido pela ausência de indicação de qual ato teria praticado ou deixado de praticar em troca das vantagens auferidas.
Essa ideia demasiadamente restritiva2 não parece ser a melhor opção. Como bem pontuado por Quandt3, a exigência de uma indicação precisa do ato de ofício mercadejado significa deixar impunes exatamente os casos mais graves e que, portanto, mais carecem de reprimenda penal. A título de ilustração, o autor traz a hipótese do empresário que ajusta uma propina mensal em favor de um juiz com o fito de obter julgados que lhe sejam favoráveis. Ora, já que o êxito do corruptor em todas as demandas despertaria surpresas inevitáveis, nem o empresário beneficiado pode atestar, com clareza, os atos de ofícios, de fato, por ele mercadejados.
Nessa perspectiva, aquele que negocia a própria função pública está mais do que colocando à venda um determinado ato de ofício, porque a transação alcança o próprio múnus, o que assume contornos muito mais graves que a mercancia de determinado ato de ofício.
Noutra quadra, no histórico julgamento da Apn 470/MG, não obstante ainda restar alguma controvérsia doutrinária sobre o exato conteúdo do decisum4, o Supremo parece ter se afastado da exigência de que a vantagem seja recebida em contrapartida a determinados e específicos atos de ofício. No Mensalão, o E. STF tomou uma direção, ainda que não assumida, diametralmente oposta àquela anotada no case Collor. Nessa nova concepção, a racionalidade apontada foi de que, para fins de enquadramento típico, a imputação específica do ato de ofício é o que menos importa. No intento de preservar o bem jurídico da administração pública, a mensagem político-criminal transmitida foi da criminalização do mercadejo ou somente da mera especulação da função, da qual se extrai a atribuição de praticar potencialmente atos de ofício.
Novamente, uma interpretação demasiadamente aberta e fluída, igualmente, não parece acertada. Se, de um lado, é inevitável a aceitação de algum grau de indeterminação do ato de ofício mercadejado – por razões já explicadas –, de outro, não pode haver seu completo desprezo, sob pena de anular a elementar “em razão da função”, prevista para o tipo de corrupção passiva. O injusto da corrupção reclama mais que o mero enriquecimento ilícito do intraneus – conduta sequer criminalizada em solo brasileiro.
Sob o anseio de melhorar o combate aos atos de corrupção, não se pode elastecer a interpretação de seu injusto. Ao se entender que o suborno não precisa guardar correlação com nenhum ato de ofício – sequer em potencial –, corre-se o risco de resultados inaceitáveis. No exemplo ilustrativo de Leite, Teixeira e Greco, em artigo publicado sobre o REsp 1.745.410/SP, julgado pelo E. STJ5, em assim sendo, se uma ministra aceitar dinheiro para agredir fisicamente um colega, no objetivo de que este, consequentemente, não profira seu voto, ter-se-á, além da lesão, corrupção passiva. Ou seja, ao abandonar a ideia de que a vantagem deva guardar pertinência com a aptidão – ainda que em potencial – do agente público, qualquer crime cometido mediante paga por intraneus abarcaria, além do delito hipotético, o crime de corrupção passiva.
A definição objetiva do que vem a ser o crime de corrupção é decisão de política criminal, o que, obviamente, depende da legislação de cada nação. A variedade de tratamento dispensado ao crime de corrupção mundo afora mostra que cada país, com base em seus próprios standards de ética e moral, estipula os delineamentos de seu injusto. Dessa forma, não se pode simplesmente ignorar a opção explícita do legislador nacional em prol da assimetria, pois, conscientemente, valeu-se da elementar “ato de ofício” para definição da corrupção ativa e da cláusula “em razão da função” para a corrupção passiva.
Se há certo exagero hermenêutico em transportar uma elementar típica somente prevista no art. 333 para o art. 317, parece residir outro equívoco em simplesmente ignorar a cláusula “em razão da função”.
Portanto, é no intento de rechaçar essas duas extremadas interpretações contra legem, que se propõe uma terceira via. Em síntese, “em razão da função” não pode significar simplesmente “por deter uma função”, sob pena de incorrer-se em inevitáveis equívocos dogmáticos. Paradigmático é o exemplo de Luiz Greco e Adriano Teixeira6, do renomado professor universitário contemplado em contrato de aluguel pelo proprietário, dentre tantos outros possíveis interessados, justamente “em razão da função”.
Propõe-se, portanto, uma releitura da elementar “em razão da função”, que deve significar, ao menos, “exercício de uma parcela da função”. No caso do professor, a vantagem auferida guarda evidente conexão com o seu cargo, mas não o suficiente para configurar o delito de corrupção.
Como se viu, é exigência do injusto da corrupção que a vantagem guarde uma espécie de correlação genética, de causa e efeito, com o exercício potencial da função. É essa parcela de poder, que pode ser efetivamente exercida ou não, que é objeto de mercancia no crime de corrupção.
Por fim, considerados os problemas advindos da interpretação da legislação nacional, que ultrapassam as divergências meramente teóricas, a melhor solução, ao que parece, perpassa por uma alteração legislativa. O que é suficiente, e longe que isso possa significar malversação à dogmática, é o elemento subjetivo do pacto, ou seja, que o intraneus entenda o que dele se espera em contrapartida à vantagem.
Em resumo, a inovação político-legislativa seria bem-vinda, mas não impede o imediato aprimoramento da prática criminal, a partir da releitura dos injustos aqui defendida.
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1 MACEDO, Fausto; BRANDT, Ricardo; VASSALO, Luiz. Lavo Jato denunciou 500, recuperou R$ 4 bi da corrupção e condenou 165 a mais de 2 mil anos. Jornal Estadão, 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em 09 de novembro de 2020.
2 Essa é a opinião de Bitencourt, que assim defendeu: “a vantagem deve objetivar a prática de um ato futuro e certo. E isso deve, necessariamente, ser demonstrado com precisão, destacando tempo, local e condições, natureza e espécie do ato de ofício visado” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 5. p. 244.
3 QUANDT, Gustavo. Algumas considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva. A propósito do julgamento do "Mensalão" (APn 470/MG do STF). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 106/201, p. 181 – 214. Disponível clicando aqui. Acesso em 09 de novembro de 2020.
4 Para Alamiro Velludo Salvador Neto, por exemplo: “Na realidade, manteve-se o ato de ofício apenas em termos de linguagem, de retórica, porém não mais tornou a sua perfeita identificação um elemento imprescindível para a imputação das práticas de corrupção ativa e passiva. Dito de outro modo, os julgadores de certa forma deixaram de lado maiores preocupações em declinar as efetivas provas, por exemplo, acerca de quais votações tiveram parlamentares expressando seu posicionamento em razão de um interesse maculado pelas dádivas recebidas”. (SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Reflexões pontuais sobre a interpretação do crime de corrupção no Brasil à luz da APn 470/MG. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 102, n. 933, p. 47-59, 2013).
5 GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano; LEITE, Alaor. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Jota, 2018. Acesso em 09 de novembro de 2020.
6 GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Org.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. São Paulo: Editora FGV, 2017. p. 34.
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 5.
GRECO, Luís; TEIXEIRA, Adriano. Aproximação a uma teoria da corrupção. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Org.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. São Paulo: Editora FGV, 2017.
________. LEITE, Alaor. A amplitude do tipo penal da corrupção passiva. Jota, 2018.
MACEDO, Fausto; BRANDT, Ricardo; VASSALO, Luiz. Lavo Jato denunciou 500, recuperou R$ 4 bi da corrupção e condenou 165 a mais de 2 mil anos. Jornal Estadão, 2020. Disponível clicando aqui.
QUANDT, Gustavo de Oliveira. Algumas considerações sobre os crimes de corrupção ativa e passiva. A propósito do julgamento do "Mensalão" (APn 470/MG do STF). Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 106/201, p. 181 – 214. Disponível clicando aqui.
________. O crime de corrupção e a compra de boas relações. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano (Org.). Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. São Paulo: Editora FGV, 2017.
SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Reflexões pontuais sobre a interpretação do crime de corrupção no Brasil à luz da APn 470/MG. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 102, n. 933, p. 47-59, 2013.}