Antes quando da declaração de constitucionalidade da obrigatoriedade de vacinação contra o novo coronavírus, ao ser julgada a ADIn 6.586 pelo Supremo Tribunal Federal; agora em razão do entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça nos autos do mandado de segurança 27.220/DF, o interesse coletivo prevaleceu sobre o individual ao enfrentar recente situação relativa a medidas de prevenção à dita “segunda onda” dessa enfermidade.
Nessa esteira, vale lembrar que a pandemia teve um crescimento exponencial e abrupto desde que desembarcou em solo brasileiro, no início de 2020. E para diminuir a curva vertiginosa do número de novas contaminações e, claro, mortes, incontáveis foram as tentativas dos governos estaduais e intervenções do Poder Judiciário, tais como: restrições de funcionamento de comércio, suspensão de aulas escolares presenciais, estabelecimento de regras para retorno de atividades diversas.
Paralelamente, alguns atos foram praticados pelo Governo Federal, mesmo em meio à conturbada condução das políticas públicas no mesmo sentido acima. À guisa exemplificativa, a implementação do regime de teletrabalho nos órgãos da Administração Pública Federal e concessão de auxílio financeiro emergencial para pessoas em maior vulnerabilidade econômica.
Entretanto, o menosprezo (especialmente por parte da sociedade brasileira) à força de propagação desse vírus pandêmico e à letalidade causada por ele provocou a retomada do grau elevado do quantitativo de novos casos e mortes. Diante disso, o Executivo emanou novo ato com o escopo de mitigar a consolidação da nova onda de contaminação da covid-19, principalmente tendo em vista a nova cepa encontrada no Reino Unido, a fim de evitar maior “impacto epidemiológico” no “cenário atual” do Brasil.
Esse ato consiste na portaria 648, de 23 de dezembro de 2020, de autoria do ministros de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República, da Justiça e Segurança Pública e da Saúde, por meio do qual resolveram, em suma, restringir o acesso de estrangeiros e brasileiros ao território pátrio. Isso, ao estabelecer que, a partir do dia 25/12/20, voos internacionais oriundos ou com passagem pelo Reino Unido estariam com autorização de embarque para o Brasil suspensa temporariamente; bem como, estabelecer que, a partir do último dia 30 de dezembro, brasileiros e estrangeiros deveriam apresentar teste (RT-PCR) negativo ou não reagente para o SARS-CoV-2 realizado em até 72 (setenta e duas) horas da viagem com destino ao território brasileiro.
Pois bem, embora seja mais uma medida preventiva e respeitável, além de corroborada pelo surgimento de novas variantes do novo coronavírus na África do Sul e em São Paulo/SP, certo é que essas previsões contidas no artigo 7º da supramencionada portaria podem causar situações embaraçosas como a dos nacionais que impetraram mandado de segurança com o objetivo de retornarem ao Brasil mesmo sem a apresentação do citado teste negativo. Isso porque, segundo eles, não haveria disponibilidade de laboratórios em Punta Cana (República Dominicana) para atestarem a inexistência de contaminação.
Aqui importa repousar os olhos ao menos sobre dois aspectos de direito: um relacionado à liberdade de ir e vir e atrelado a ele a segurança jurídica; outro referente ao sopesamento entre um direito individual e o interesse coletivo. Em outras palavras, o direito de brasileiros retornarem ao seu país versus o direito dos residentes no Brasil se verem preservados frente à possibilidade de agravamento da pandemia, devido à possível propagação da nova cepa da covid-19.
E ao sopesar essa situação, o STJ entendeu pela primazia do coletivo, ao indeferir o pedido liminar formulado pelos dois compatriotas supracitados que almejam retornar ao Brasil após excursão ao caribe. Conforme a inteligência do ministro presidente da Corte Cidadã – Humberto Martins:
A meu sentir, não é razoável possibilitar o embarque de passageiros sem atender as restrições impostas excepcionalmente e temporariamente pelas autoridades tidas como coatoras, em detrimento da coletividade, especialmente, considerando o cenário que vem vivenciando o País com o impacto epidemiológico causado pelo coronavírus, pois as medidas adotadas não desbordam - em uma primeira análise - dos critérios técnicos necessários para manutenção da saúde e segurança públicas.
Entendo que não se discute o fato de que o cenário atual, em escala global até, passa ao largo de inspirar confiança e conforto perante a pandemia em comento. Contudo, ainda que seja uma restrição de direito temporária e que a utilização das mais variadas ferramentas para mitigar as consequências do novo coronavírus devam ser valorizadas, parece-me temerário, por um lado, exigir uma obrigação dessa natureza, sem observar que pessoas como os impetrantes planejaram a viagem e adquiriram passagens em momento pretérito ao da publicação da portaria 648/20; o que faz emergir flagrante insegurança jurídica.
Ainda, exigir a apresentação de teste em situações idênticas ao caso em testilha é capaz de gerar grave constrangimento e lesão de difícil reparação aos viajantes, uma vez que estarão obrigados a permanecer em país estrangeiro sem condições financeiras favoráveis e/ou ainda correndo o risco de perderem compromissos (seja de que ordem for) no Brasil.
Aparenta ser precário, outrossim, o precedente utilizado para embasar a decisão publicada em 5/1/21 que indeferiu o pleito liminar no bojo do mandamus 27220 – DF, eis que a despeito de ter absoluto respaldo a prevalência do interesse coletivo sobre o individual, o paradigma trazido pela Corte Especial se tratava de liberdade de expressão, e não do direito de ir e vir. Isso pois, conquanto seja cediça a inexistência de hierarquia entre direitos fundamentais, no contexto colocado não se revela plausível a equiparação de ambos para justificar o indeferimento do referido pedido de tutela de urgência.
Em contraponto, é compreensível o argumento trazido pelos Impetrantes, no sentido de que a eles não pode ser imposta obrigação impossível e limitadora de direito fundamental, haja vista que a realização de testes RT-PCR depende, primordialmente, da disponibilidade e competência de laboratórios especializados. E isso foi o que não encontraram na República Dominicana.
No entanto, por outro lado, carece de razoabilidade os fatos trazidos pelos viajantes, principalmente, pelo fato de terem embarcado (26/12/20) para o país caribenho três dias após a publicação da referida portaria 648; o que, diga-se de passagem, fez valer o brocardo latim dormientibus non sucurrit ius.
Logo, do mesmo modo que o direito não socorre aos que dormem, é inconteste que ninguém pode se valer da própria torpeza, o mais prudente, em todos os aspectos, seriam os viajantes se certificarem de que no local estrangeiro de embarque para retorno ao Brasil teria condições de realizar a testagem referenciada. Alternativamente, primando por maior segurança epidemiológica, postergar o passeio em terras alienígenas.
Destarte, preterir o direito de ir e vir previsto no inciso XV, do artigo 5º, da Constituição Federal em situações semelhantes àquela apresentada no mandado de segurança 27.220/DF, ou seja, quando a data de saída do Brasil é anterior à vigência da portaria 648/20, poderia consistir em afronta a esse direito fundamental, notadamente, de brasileiros. Mormente, quando se há outras medidas capazes de mitigar o suposto risco trazido por eles e quando se tem incompreensível incoerência na mesma Portaria, que afirma não serem aplicáveis tais restrições a brasileiros (artigo 3º) e, concomitantemente, permite o trânsito de pessoas sem tal exigência entre outros países vizinhos.
Contudo, para além da presunção de constitucionalidade do ato tido como coator (portaria 648/20), indubitável é que a saúde e o bem-estar de todos, não apenas brasileiros, principalmente em época pandêmica, devem se sobrepor a interesses individuais efêmeros, quando esses últimos podem ser capazes de contribuir para a descontrolada e exponencial propagação das “antigas” ou novas cepas encontradas da covid-19.