A exegese da lei de Recuperação de Empresas e Falências, lei 11.101/05, é a de possibilitar que empresas em acentuada crise econômico-financeira, utilizem deste instituto jurídico para superar o cenário de insolvência, salvaguardando a manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, com a consequente preservação da empresa, da sua função social e o estímulo à atividade econômica1.
Com efeito, preenchidos os requisitos legais positivados, o Juízo deferirá o processamento da recuperação judicial. Nessa linha, determina a lei que se sujeitam ao concurso de credores todos os créditos existentes à data do pedido, ainda que não vencidos2 (salvo determinadas exceções).
Assim, toda a coletividade de credores, direta ou indiretamente, passa a participar e ter interesse na condução do processo, inclusive, seus próprios empregados, classe economicamente mais dependente e historicamente hipossuficiente.
Não por acaso, a classe mais privilegiada entre os credores concursais é a formada pelos credores trabalhistas, cujos créditos são derivados da legislação do trabalho, e pelos titulares de créditos decorrentes de acidente de trabalho. A classe não se restringe às relações de emprego, integrando o conjunto os titulares de créditos decorrentes de todas as relações laborais, como trabalhadores eventuais ou temporários, avulsos e autônomos.
Persistia uma contenda referente à constituição da concursalidade de créditos trabalhistas, quando a sentença era proferida após o pedido de recuperação judicial ou à quebra da sociedade, entrementes, restou sedimentado entendimento de que ainda que a sentença tenha sido proferida posteriormente à decretação da quebra ou ao pedido de recuperação judicial, com a condenação da Devedora, o crédito trabalhista será considerado concursal caso a prestação laboral tenha sido realizada antes do pedido de recuperação judicial ou decretação da falência.3
A Ministra Nancy Andrighi, relatora do REsp 1634046/RS - precedente que definiu o momento da constituição do crédito trabalhista -, asseverou que a consolidação do crédito independe de provimento jurisdicional que o declare e muito menos de seu trânsito em julgado para efeito de sua sujeição aos efeitos da recuperação judicial, eis que tratando-se de prestação de serviço efetivada em momento anterior ao pedido de recuperação judicial aos seus efeitos se submeterá.
Isto ocorre porque mesmo que prolatada após a distribuição do pedido de Recuperação Judicial, a sentença tão somente reconhece um crédito já existente à época da prestação laboral. Assim, além de condenatória, referida sentença é declaratória posto que apenas declara o que era devido anteriormente pela Devedora, notadamente porque, o contrário, a sua não sujeição, constituiria crédito extraconcursal, o que imputaria receber tratamento privilegiado da lei, já que aludido crédito possui o desígnio de viabilizar a continuidade da atividade empresarial, pressupondo que novas relações comerciais estão sendo realizadas, beneficiando credores/trabalhadores que cooperaram efetivamente para o soerguimento da empresa.
Finalmente, a fim de por uma pá de cal sobre o tema, em julgado recentíssimo de Recurso Repetitivo de Controvérsia pelo STJ, foi fixada a seguinte tese pelo colegiado:
"Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador."4
Deste modo, a interpretação do artigo 49, caput, da lei 11.101/05, foi de que a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador e não pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. Nos termos do voto do ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva, a existência do crédito está diretamente associada à relação jurídica estabelecida entre o devedor e o credor, de forma que, ocorrido o fato gerador, sobrevém o direito de crédito.
Ato contínuo, temos que alguns são os créditos que podem ser caracterizados como créditos trabalhistas, como por exemplo, honorários advocatícios, FGTS, multas rescisórias.
Inerente aos honorários advocatícios, mister tecer alguns comentários a respeito. Inicialmente, o STF, com a publicação da Súmula Vinculante 47, consagrou que os honorários advocatícios consubstanciam verba de natureza alimentar. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o tema neste sentido em julgamento de Recurso Repetitivo de Controvérsia (REsp Repetitivo 1.152.218/RS), para além, o CPC em seu artigo 85, §14, positivou que os honorários possuem natureza alimentar, contendo os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho.
Com efeito, têm-se que os honorários advocatícios possuem natureza alimentar equiparando-se aos trabalhistas para efeito de habilitação na falência, observado o limite de 150 salários-mínimos previstos na Lei de regência. Outrossim, o Tribunal da Cidadania deliberou que os honorários advocatícios sucumbenciais, apesar de sua inegável autonomia do crédito trabalhista, ostentam natureza alimentar, sendo cabível sua habilitação conjuntamente com o crédito trabalhista nos processos de insolvência.
A despeito do tema estar consagrado em nosso ordenamento jurídico pátrio, valoroso rememorarmos o que a nossa Carta Magna, a respeito de débitos de natureza alimentícia, dita em seu art. 100, §1º:
CF, art. 100, §1º - os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado.
Note-se que não há menção a honorários, sejam contratuais ou sucumbenciais.
Dessarte, essa equiparação de honorários advocatícios como créditos trabalhistas nos processos de insolvência não deveria prevalecer, eis que os créditos trabalhistas são dotados de natureza alimentar e preferencial, porquanto constituem patrimônio social mínimo dos trabalhadores inerente à sua subsistência e necessidades vitais básicas.5
Deste modo, valorosa reflexão acerca da caracterização de um crédito trabalhista, eis que não se exige somente a natureza alimentar para se caracterizar como tal, como também pessoalidade, onerosidade – com a consequente dependência do empregado frente ao empregador -, e a não eventualidade na prestação do serviço, circunstâncias diametralmente opostas a do advogado, e de praticamente todos os demais prestadores de serviços e profissionais liberais, os quais possuem inúmeros clientes e fontes de renda diversas.
Adverte-se que não se discorda da sua natureza alimentar, contudo, não transparece um tratamento isonômico frente a todos os demais credores em condições semelhantes, criando ao que me semelha, privilégio injustificado apenas a uma parcela de profissionais.
Portanto, em que pese hodiernamente sedimentado entendimento da equiparação dos honorários advocatícios à classe de trabalhadores nos processos de insolvência, diante da sua natureza alimentar, conjecturo que diante da destinação à manutenção das condições de subsistência do trabalhador, estes não deveriam se equiparar, notadamente porque, não se pode perder de vista a real intenção do legislador ao estabelecer a ordem de preferência nos processos de insolvência; a distinção entre o trabalho prestado pela advocacia em relação aos demais; e, por fim, a interpretação restritiva da legislação em questão.
A hermenêutica conferida à lei n. 11.101/2005, no particular relativo à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resulta circunstância que, além de não promover, decorra em tratamentos desiguais e injustos, com consequências danosas ao objetivo da preservação da empresa e do próprio instituto, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores.
A verba honorária sucumbencial não pode, assim, ser habilitada como equivalente àquelas decorrentes da legislação trabalhista, por serem de natureza absolutamente inconciliável. Nesse sentido, de forma brilhante, destaca a Excelentíssima Ministra Eliana Calmon, em seu voto-vista no REsp 1.068.838/PR, publicado no DJE em 04/02/2010, segundo o qual:
"Os honorários advocatícios não decorrem de uma relação de emprego, pois é certo que o profissional do direito, que presta um serviço eventual, não é empregado de seu cliente quando executa um mandato, estabelecendo-se por meio de um contrato de prestação de serviço uma relação jurídica regida pelo Código Civil. A CLT, em seu art. 3º, define que “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
Noutra senda, superada estas considerações pontuais acerca de determinados créditos trabalhistas nos procedimentos de Recuperação Judicial e Falência, a prática nos mostra que após apuração e liquidação pela Justiça Especializada, esse será habilitado no feito recuperacional, podendo o pedido de habilitação do crédito trabalhista ser direcionado ao administrador judicial.
Conforme cediço, à Justiça do Trabalho compete apreciar e julgar controvérsias decorrentes das relações de trabalho6, inobstante a lei Especial 11.101/05 garantir o prosseguimento destas demandas na Justiça Competente7 até o momento da apuração da obrigação do devedor.
Desta forma, apurado o valor do crédito do trabalhador pela Justiça do Trabalho, referido montante será inscrito no Quadro-Geral de Credores.
Por certo que existe um impedimento que o Juízo Universal promova uma reapreciação dos valores das verbas trabalhistas reconhecidas, conquanto a doutrina majoritária entenda que citada vedação restringe-se à existência e quantum do débito principal, não havendo impedimento à atualização e correção do valor até à data do pedido de recuperação judicial, ou da decretação da falência,
Não raras são as vezes em que o limite de atualização previsto na lei 11.101/05 de crédito sujeitos aos efeitos do procedimento não é respeitado, qual seja, a data do pedido de recuperação judicial, cabendo desta forma, ao administrador judicial, ou ao Juízo proceder à essa regularização a fim de preservar a paridade entre os credores, consubstanciados em um dos princípios basilares do processos de insolvência, o do par conditio creditorum, sendo vedado que credores iguais, recebam tratamentos diferentes.
Inclusive, grande papel exerce o administrador judicial neste momento, já que permitiu a lei e recomendações próprias dos Tribunais que se deduza perante o Auxiliar do Juízo habilitação ou divergência de crédito, acerca do valor do débito trabalhista.
Com espeque, indo além da fase administrativa de apuração de créditos, a prática nos tem mostrado, data venia aqueles que entendam de forma diversa, pela desnecessidade de instauração de processo judicial de habilitação retardatária de crédito trabalhista, sendo cabível sua apresentação direta ao Administrador Judicial.
Este entendimento funda-se no texto esculpido pelo legislador no artigo 6º, §2º, da lei 11.101/05, que dita:
Art. 6º. (...)
§2º É permitido pleitear, perante o administrador judicial, habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho, mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as impugnações a que se refere o art. 8º desta lei, serão processadas perante a justiça especializada até a apuração do respectivo crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.
O texto de lei evidencia, primeiro, que é permitido pleitear perante o administrador judicial habilitação, exclusão ou modificação de créditos derivados da relação de trabalho. Não traz sua forma nem indica prazo para tanto.
Em seguida, registra que eventuais lides envolvendo crédito laborista são de competência exclusiva da Justiça Especializada, a quem competirá apurar o valor do crédito, que será inscrito no quadro-geral de credores pelo valor determinado em sentença.
Desta forma, é cabível até mesmo a caracterização da ausência do interesse de agir ao autor da ação de habilitação de crédito trabalhista, vez que não há possibilidade legal de resistência à pretensão de sua habilitação, já que fundada em decisão judicial transitada em julgado. Incumbindo, portanto, ao Administrador Judicial cumpri-la, mediante inscrição no Quadro-Geral de Credores. E, caso não esteja fundada em decisão transitada em julgado emanada pela Justiça Laborista, incompetente o Juízo Universal para conhecimento e julgamento da demanda.
Para fins doutrinários, o entendimento ora defendido foi objeto de Enunciado aprovado na I Jornada Goiana de Direito Empresarial8:
Enunciado 17. A inscrição no quadro geral de credores do crédito trabalhista prescinde de qualquer procedimento judicial, bastando a apresentação ao administrador judicial da certidão emitida pela Justiça do Trabalho.
Ainda a propósito, existe na justiça obreira normativa exatamente com o direcionamento acima exposto, conforme podemos constatar pela redação do art. 247 do Provimento Consolidado da Corregedoria do TRT 18, que dispõe:
Art. 247. No caso de execução de crédito trabalhista em que se tenha dado a decretação da falência do executado ou este se encontre em recuperação judicial, caberá as varas do trabalho orientar os respectivos credores para que providenciem a habilitação dos seus créditos perante o administrador judicial da empresa falida ou em recuperação judicial, expedindo para tanto certidão de habilitação de crédito.
1. expedida a certidão de habilitação de crédito, as varas do trabalho deverão se abster de encaminhar diretamente aos juízos de falências e recuperações judiciais os autos das execuções trabalhistas e/ou certidões de créditos trabalhistas, com vistas a habilitação, inclusão ou exclusão de credores da relação de credores e do quadro-geral de credores, pois tal atribuição não é do cartório falimentar, mas do administrador judicial.
Na doutrina, temos o escólio de Manoel Justino Bezerra Filho, o qual assim se posiciona acerca da norma do §2º do art. 6º da LFR:
“Surge aqui uma significativa modificação em relação ao dec.-lei 7.661/45, na medida em que objetiva "desprocessualizar" ou "desjudicializar" (são estes os neologismos) os incidentes de verificação de créditos e, talvez, atribuir maior celeridade nos seus julgamentos, principalmente aqueles derivados da relação de trabalho”.9
Como se vê, a interpretação teleológica do art. 6º, §2º é no sentido de eliminar dificuldades e barreiras para o trabalhador, de forma a permitir-se a habilitação e o futuro recebimento de seu crédito sem necessidade de submeter-se ao custoso incidente de habilitação retardatária perante o Juízo da Recuperação Judicial.
Frente a toda narrativa exposta, após 15 anos da lei de Recuperação Judicial e Falências, muitas foram as evoluções doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema, e caso ocorra a promulgação da nova lei aprovada recentemente pelo senado, novos desdobramentos irão repercutir neste e demais capítulos.
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1- Art. 47 da Lei 11.101/2005.
2- Art. 49 da Lei 11.101/2005.
3- Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência – SP: Saraiva Educação, 2018.
4- RRC - REsp nº 1840531 – Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. 09/12/2020.
5- Art. 6º c/c art. 7º da CF/88.
6- Art. 114, I e IX, CF.
7- Art. 6º, §2º, LFR.
8- Todos os enunciados aprovados na I Jornada Goiana de Direito Empresarial podem ser acessados aqui.
9- Manoel Justino Bezerra Filho, Nova Lei de Recuperação e Falências comentada, Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2005, p. 61.
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- Salomão, Luís Felipe - Recuperação Judicial Extrajudicial e Falência: Teoria e Prática. Luís Felipe Salomão, Paulo Penalva Santos, 4ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019.
- Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência – SP: Saraiva Educação, 2018.
- Manoel Justino Bezerra Filho. Nova Lei de Recuperação e Falências comentada, Revista dos Tribunais, 3ª ed., 2005, p. 61.