Migalhas de Peso

A moralidade e seus reflexos de compliance e accountability na Administração Pública da União, dos Estados, Distrito Federal e municípios

Nesse viés, espera-se que técnicas de compliance e accountability tornem-se rotina no seio de tais empresas, bem como no serviço público.

4/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Objetivo do trabalho

A Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 (BRASIL, 1988) inaugurou uma nova formatação de tratamento dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, mas, também, um respeito à probidade na administração, impondo enormes sanções para os atos de improbidade administrativa. A lei 8.429, de 12 de junho de 1992 (BRASIL, 1992) discorreu acerca do tratamento dos atos de improbidade e suas respectivas sanções, sejam multas, seja até mesmo a perda do cargo ou função pública.

Por fim, com o surgimento da lei 12.846, de 1º de agosto de 2013 (BRASIL, 2013), temos a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Neste viés, este trabalho correlacionará os três textos normativos, no sentido de que há um total enfoque na ética e probidade da administração pública, devendo o serviço público e empresas privadas adotarem, como rotina, práticas internas e externas de compliance e accountability, no sentido de preservar a lisura da coisa pública.

Metodologia utilizada

A pesquisa ora elaborada visa a analisar as consequências das leis 8.429/92 (BRASIL, 1992) e 12.846/13 (BRASIL, 2013) no âmbito do serviço público, e quais boas práticas devem ser adotadas por cidadãos e empresas, para fins de almejar lisura na administração pública, afastando práticas desonestas e ilegais de servidores e empresários.

Nesse ínterim, a pesquisa será de aspecto qualitativo, uma vez que “a partir do momento em que a pesquisa se centra em um problema específico, e em virtude desse problema específico o pesquisador escolhe o procedimento mais apto, segundo ele, para chegar à compreensão visada” (LAVILLE; DOINNE, 1999, p. 43).

Dentre os modos ou estratégias de análise e interpretação compreendidas pela abordagem qualitativa, foi utilizado o emparelhamento (pattern-matching), que “consiste em emparelhar ou, mais precisamente, em associar os dados recolhidos a um modelo teórico com a finalidade de compará-los” (LAVILLE; DOINNE, 1999, p. 129). No que se relaciona ao método de procedimento foi utilizado o tipológico que, por sua vez, se volta a comparar fenômenos sociais complexos, criando “tipos ou modelos ideais, construídos a partir da análise de aspectos essenciais do fenômeno” que, todavia, não existem na realidade (MARCONI; LAKATOS, 2017, p. 109).

No uso desse método, “o papel do cientista consiste em ampliar certas qualidades e fazer ressaltar certos aspectos do fenômeno que se pretende analisar” (idem, 2017, p. 109) que, na pesquisa ora proposta, são os reflexos de leis específicas para a não corrupção, especialmente se adotando técnicas de compliance. Quanto às técnicas de pesquisa, utilizadas foram a bibliográfica e a documental – que, realizada em torno de uma questão, determina a revisão de todos os trabalhos disponíveis, selecionando tudo quanto possa servir à pesquisa, para “encontrar os saberes e pesquisas relacionadas à questão” (LAVILLE; DOINNE, 1999, p. 113).

A pesquisa buscará trabalhar as questões atinentes ao serviço público e empresas que com ela se relacionam, buscando a preservação do patrimônio público da União, dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

Revisão de literatura

O ponto de partida de um estudo eficaz quanto à moralidade administrativa, deve ser, obviamente, a CF, que em seu artigo 37, § 4º diz:

§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível” (BRASIL, 1988).

Portanto, na sequência, tivemos a lei de Improbidade Administrativa, a qual  preceituou em seu artigo 9º:

Art. 9° Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente” (BRASIL, 1992).

Este artigo 9º é o mais contundente da lei de improbidade, por se tratar de enriquecimento ilícito, embora tenhamos os artigos 10 (atos que causam prejuízo ao erário) e 11 (atos que atentam contra os princípios da administração pública), com sanções menores, embora graves.

De outro vértice, diz o artigo 6º da lei 12.846/13 traz como punição às empresas que atentem contra o patrimônio ou princípios da administração pública:

I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e

II - publicação extraordinária da decisão condenatória. (BRASIL, 2013)

Assim, se de um lado temos uma legislação de combate aos atos de improbidade efetivados pelos servidores públicos ou assemelhados, de outro, temos uma novel legislação que combate os atos lesivos praticados por empresas contra a administração pública, muitas vezes entrelaçados entre si.

Obviamente, a probidade administrativa é uma forma do princípio da moralidade, pois:

A probidade administrativa consiste no dever de o funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem” (SILVA, 2000, p. 648)

Tais sanções, obviamente, levam à necessidade de técnicas de gestão interna, tanto da administração pública, quanto das empresas privadas, através de compliance e accountability.

Resultados esperados

Imprescindível que tanto a administração pública quanto as empresas privadas adotem urgentemente posturas de compliance e accountability, ou seja, possuindo órgãos internos de aferição de integridade, de legalidade, eficiência, transparência, com controles eficazes internos e externos, políticas e diretrizes claras estabelecidas para os servidores, dirigentes e colaboradores.

Essa nova forma de atuar perante a sociedade deve assegurar, sempre, o cumprimento das regras legais, estatais e empresariais pré-estabelecidas, definindo-se órgãos de regulação e padrão direcionado à estruturação de seu viés empresarial, bem como rigoroso controle interno e transparência dos atos.

A administração pública, precipuamente, quando deixa de produzir governança e controle de seus atos, acaba por difundir uma ideia de corrupção:

Essa confluência de fatores implicaria que nesses ambientes sociais teria sido gerado uma espécie de círculo vicioso que alimenta a desconfiança social, incentiva o funcionamento parcial das instituições governamentais e, em última instância, produz uma corrupção enraizada e onipresente que é muito difícil de combater. Dessa forma, naqueles sistemas políticos em que as políticas governamentais são ineficientes, parciais (buscam o benefício de determinados grupos sociais) e corruptas, o desenvolvimento de um senso de solidariedade social é impossível e a confiança particularizada em diferentes grupos sociais é estimulada acima da confiança generalizada em toda a sociedade (SANCHES, 2016, p. 2).

É que a falta de confiança na administração pública, acaba se traduzindo em outras ilegalidades, em um círculo vicioso de ilegalidades, crimes e desmandos:

Quando isso acontece, quando a confiança predominante é aquela colocada na própria família, clã, etnia ou partido político, a política nessa sociedade se torna "um jogo de soma zero entre grupos conflitantes" (Rothstein e Uslaner, 2005: 45-46). Não aparecem nessas sociedades regras informais que promovam a produção de bens públicos, como o respeito aos espaços públicos ou as regras básicas de convivência social. Em vez disso, criaram uma prática social predatória do "salve-se quem puder" que impossibilita o poder público de ter os recursos e incentivos necessários para a realização de políticas que promovam a solidariedade social necessária para se sentirem envolvidas na mesma comunidade. Pelo contrário, as políticas governamentais serão incentivadas por uma lógica particularista e parcial que abundará na espiral do círculo vicioso" (SANCHES, 2016, p. 2).

Atualmente, temos inúmeros casos que envolvem corrupção entre servidores públicos e empresas privadas, portanto, espera-se que a legislação brasileira seja capaz de inibir tais práticas, já que:

No contexto atual de constante descoberta de casos envolvendo corrupção em todos os níveis da Administração Pública brasileira, esse tipo de ilícito parece ter chegado a patamares antes não imaginados. A corrupção é comparada a uma endemia e tem se desenhado em uma estrutura transnacional e altamente organizada, causando graves danos à sociedade e ao Estado, pois prejudica o desenvolvimento econômico e fragiliza a democracia. Sendo assim, as instituições envolvidas no combate à corrupção têm buscado novos instrumentos e técnicas mais consentâneas com a evolução da própria criminalidade. As experiências positivas em diversos países apontam que o teste de integridade, caso adequadamente conduzido, é uma ferramenta altamente eficaz no enfrentamento à corrupção na Administração Pública (OLIVEIRA, 2017, p. 619-639)

Neste viés, espera-se que os administradores públicos, bem como as empresas privadas, em face das novas exigências impostas pelas leis em comento, traduzam em compliance e accountability suas ações, pois: “[...] A noção de accountability encontra-se relacionada com o uso do poder e os recursos públicos, em que o titular da coisa pública é o cidadão, e não os políticos eleitos” (PALUDO, 2020, p. 238). Uma nova forma de gerir a coisa pública, e também a privada.

Tópicos conclusivos

Desde a CF/88, portanto, temos que a imoralidade qualificada converteu-se em objetivo principal do constituinte para persecução, inibindo tais atos, sendo que atualmente, temos vários parâmetros legais para efetivar tal desiderato. Com a lei 12.846, de 1º de agosto de 2013 (BRASIL, 2013), verifica-se que as empresas privadas terão uma grande responsabilidade em atos contrários ao interesse público, já que temos sanções gravíssimas em desfavor de tais entidades. Nesse viés, espera-se que técnicas de compliance e accountability tornem-se rotina no seio de tais empresas, bem como no serviço público.

_________

BRASIL. Constituição Federal, 5 out. 1988. Disponível aqui., acesso em 5 dez. 2020.

BRASIL. Lei 8.429, de 2 jun. 1992. Disponível aqui., acesso em 5 dez. 2020.

BRASIL. Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013. Disponível aqui. Acesso em 5 dez. 2020.

CAPANEMA, R.O. Lei Anticorrupção Empresarial – Aspectos críticos à Lei nº 12.846/2013. 1ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.

LAVILLE, C.; DOINNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artmed, 1999.

MARCONI, M.A.; LAKATOS, E.M. Fundamentos de metodologia científica. 8ed. São Paulo: Atlas, 2017.

OLIVEIRA, Almerinda Alves de. O teste de integridade dos agentes públicos como ferramenta de combate à corrupção: validade e efetividade. Revista da Controladoria Geral da União. Volume 9, n. 15, p. 619-639, 2017

PALUDO, Augustinho Vicente. Administração Pública. 9 ed. rev. ampl. e atual – Salvador: Editora JusPodivm, 2020

SANCHES, F.J. La integridade de los gobernantes como problema de acción colectiva. Rev. Inter. Transp. e Int. Disponível em aqui. Acesso em 02 dez 2020, Múrcia (Espanha), 2016

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17 ed. rev. atual – São Paulo: Malheiros, 2000

ZENKNER, Marcelo. Integridade governamental e empresarial: um espectro da repressão e da prevenção à corrupção no Brasil e em Portugal / Marcelo Zenkner. – Belo Horizonte: Fórum, 2019.

Robson Martins
Doutorando em Direito. Mestre em Direito. Especialista em Direito Notarial e Registral e Direito Civil. Professor da Pós latu sensu da Uninter e ITE. Docente da ESMPU. Procurador da República.

Érika Silvana Saquetti Martins
Mestranda em Direito pela UNINTER. Especialista em Direito Público, Direito do Trabalho e Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera - Uniderp. Graduada em Direito pela Universidade Paranaense. Advogada.

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