Verdade impopular: apesar dos esforços contrários, as leis humanas conservam traços de uma transcendência que não se apaga e de uma metafísica que não nos deixa. E ai daquele que tenta, pelas razões mais respeitáveis, tomar o Direito à semelhança dos tecnicismos despojados de vida interior, sem subjetividade, numa espécie de militância da letra morta que vai além do bom emprego da Moral. Erro fatal capaz de transformar a justiça em tirania. É o que nos prova o curso da História, sobretudo a do século passado.
Mais do que das leis, pode-se até aludir a uma dimensão espiritual do Direito. O que não é nada absurdo para os que se aprofundam um pouco mais no estudo do Direito Natural1. Este é um escrito modesto, e não virá pontilhado de conceitos, citações e argumentos intrincados. Por essa razão, desde já conto com a compreensão e a generosidade do leitor, e até invoco em minha proteção o Prólogo de Henrique V:
“Permiti que supra com o coro das lacunas desta história e que, fazendo a função de prólogo, rogue vossa bondosa indulgência para que escuteis e julgueis tranquila e bondosamente nossa peça”.
Nada disso que aqui trato é novo ou se insere apenas em contextos religiosos. Muito pelo contrário. Ainda que se cogite em transcendência ou em abordagem metajurídica, faz tempo que se admite, sob diversos aspectos abertos à razão natural, uma dimensão espiritual do Direito.
Montesquieu, por exemplo, ao tratar dos fundamentos sociais do Direito também tratou da base espiritual das leis. Isso porque as leis legitimam comportamentos. Em sendo assim, não podem prescindir dos pilares espirituais, sob pena de, mutilando as bases sobre as quais a norma se assenta, deformarem-lhe profundamente o sentido original, com o risco maior de consagrar leis injustas e condutas inaceitáveis.
Especialmente importante é, logo de início, valorizar o conceito de dignidade.
A filosofia grega, absorvida pela Igreja e incorporada ao cristianismo, não a conhecia, tal como nós. Sabia bem o que era honra, normalmente ligada à ética ou código do guerreiro. Da dignidade falavam os romanos, mas não do modo como hoje conhecemos e valorizamos. A antiga dignitas significava outra coisa, mais voltada ao plano social, ao prestígio, a boa fama, honra.
Com o cristianismo que floresce no ocidente e, depois, no mundo, a dignidade passa a despontar como influência poderosa no Direito e, hoje, um princípio fundamental presente na maioria dos sistemas legais. O que tem muito a ver com a ideia central do Direito Natural de que Deus governa o universo.
E que Deus é este? — perguntará alguém, habituado à ideia de que há um deus para cada um e, portanto, nenhum para todos.
Respondo: o único e verdadeiro Deus, Uno e Trino, que é Pai, Filho e Espírito Santo, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Respeito profunda, ou ao menos civicamente, as mais diferentes confissões de fé. A tolerância de fato é um dos frutos do amor — e Deus é Amor. Este sincero respeito, porém, não esvazia minha identidade cristã, católica, e a cosmovisão dela haurida.
Por isso, quando falo em Deus, falo no Deus bíblico, no Deus de Abraão, Isaac e Jacó, no Deus de Israel; o Deus que inclinou o ouvido do seu coração para ouvir o clamor do povo que escolhera; que falou pelos profetas e que, na plenitude dos tempos, se fez homem. Deus esse que viveu igual ao homem em tudo, menos no pecado; que nos deu a Palavra, se fez carne e voltou a Palavra; que fundou a Igreja (Católica, Apostólica e Romana) e cravou, no rosto dos santos apóstolos, a marca indestrutível da fé.
A Igreja, depositária fiel dessa mesma fé, construiu a civilização ocidental, estabeleceu as bases e os princípios morais e sociais, guardou a filosofia grega e ampliou o Direito Romano, educando os povos que a ela se confiaram. E isso não é opinião: é História.
Outros deuses, outras formas de se experimentar e viver a religiosidade e de tratar o Direito podem ter seu valor, mas não são alvo de atenção neste breve discurso, que, sabedor de seus limites, não pretende se deter em questões de religião comparada, tampouco interessam ao seu objetivo, que é a intersecção das coisas jurídicas com o cristianismo.
Ao governar o universo, Deus governa os Direitos das gentes. Isso é muito maior e importante do que o fundamento do Direito Positivo: a vontade do povo.
Essa vontade se mostrou inúmeras vezes claudicante, instável, pouco confiável, sujeita a esmagar pelo peso do número os valores que lhe fazem oposição. Conforme já dizia Santo Agostinho, as pessoas costumam amar a verdade quando esta as ilumina, porém tendem a odiá-la quando as confronta. A vontade Divina, porém, é reta, justa, perene, perfeita e imutável. Também por isso é que se afirma aqui, por obrigação lógica e ontológica, que o Direito Natural é superior.
Daí também que se legitimam as monarquias.
Desde o antigo Israel, em cuja história se encontra prefigurada a da própria Igreja, os reis serviam seus povos e se submetiam a Deus. O sentido do poder terreno é servir ao sobrenatural e proteger as pessoas sob sua guarda. Deus é, por essência, a ordem moral perfeita. Por isso a submissão muito convém.
Diferentemente dos antigos deuses gregos e romanos, que oscilavam ao gosto das paixões demasiado humanas, o Deus de Israel é sempre justo e fiel. Sob sua potestade, as leis são – têm que ser – dotadas dos mesmos adjetivos.
Tanto mais os monarcas, os juízes, os legisladores, os povos, as nações se afastam de Deus, tornam-se as leis dos homens cada vez menos justas, menos perfeitas e passam a legitimar condutas e comportamentos inidôneos.
A perfeição jurídico-normativa reside em imitar as leis naturais, que por sua vez refletem as manifestações da razão divina. Devem os reis e o Direito em exercício, à busca do aperfeiçoamento da moralidade comum, ser sempre informados e influenciados pelo Alto. Direito, sociedade, responsabilidade, comprometimento, poder: tudo isso tem sentido maior quando orientado pela ordem divina.
Sabido que não “há sociedade sem Direito. O homem é responsável pelos seus atos. A misericórdia compõe e integra a justiça. O conteúdo sobrepõe-se à forma”2, reconhecemos que todos esses temas têm raiz e eco no Direito Natural. De modo ou de outro, figuram presentes na lei de Deus e, sedimentados na base cultural das sociedades, permitem que se desenvolvam a partir de princípios sólidos.
Infelizmente, as coisas já não aparentam ser mais assim; inflado pelos doutores da lei, o positivismo hoje encobre o olho do Sol, e ganham força movimentos como os que buscam a descriminalização do aborto, a exemplo da Advocacy.
A Advocacy é o braço ativista da Constructive Ambiguity e a gênese da Soft Law — tríade infeliz do nada admirável mundo novo. Delas, todavia, não quero tratar aqui. Exigiria um certo desvio de objetivo e mais tinta do que pretendo. Apenas para não passar em branco: é espécie de técnica posta em marcha já há algum tempo, especialmente em organismos e instituições internacionais.
Consiste na construção ambígua de conceitos, preceitos, ideias e proposições a fim de evitar travamento de pautas; depois, um esforço coordenado para fazer com que essa ambiguidade se espalhe no seio social, sobretudo por parte dos stakeholders3 e, adiante, a construção normativa nos mais diferentes sistemas legais. Temas como ideologia de gênero, descriminalização das drogas e do aborto são alguns dos preferidos.
Um dos argumentos em prol do aborto é: se não for descriminalizado, continuará a existir do mesmo jeito.
Ora, a corrupção é criminalizada desde há muito e nem por isso deixou de existir. Ainda sentimos, sob os dedos do espírito, os estigmas do pecado original. Por outro lado, não se pode referendar como correta e aceitável uma conduta ilícita e imoral porque impossível inibi-la, em absoluto, no mundo dos fatos; um erro não justifica outro maior, tampouco dois formam um acerto. A lei serve para cauterizar comportamentos, não referendar iniquidades. Daí a importância fundamental de que a lei dos homens, que é imperfeita, siga a lei de Deus, que é perfeita (Salmo 19).
O Direito, para dissabor de Hans Kelsen, não é ciência pura. Está, digamos, riscado pelos rastros da cultura, cuja raiz mesma é cultivo, próximo a culto, adoração, reverência, isto é, manifestação formal e devocional ao que, embora nele se manifeste, não se limita a este mundo. Rende-se culto, cria-se cultura. E essa cultura, que nutre o Direito, não pode ser o reflexo do pior que existe na sociedade, mas o reflexo do que de melhor há.
Ainda que repleta de imperfeições, quando orientada para o Direito, a criação humana tem que aspirar ao que é firme, valioso, perfeito. A busca da perfeição nessa obra é dever do justo. Pois a ordem natural é perfeita. E de sua perfeição exala a graciosidade da beleza, que aliás é um dos transcendentais de Deus.
A abadia dominicana de San Esteban4, em Salamanca, Espanha, tem por lema aquilo que se ajusta ao Direito como a coroa ao rei: Verdad, Bondad y Belleza.
As três coisas se complementam perfeitamente; convertem-se uma na outra, de tal modo que não se separam: suposta a Unidade do ente, a Verdade surge, faz imperar a Bondade e, pela união de todas as três, surge aquela harmonia, aquela lucidez do real a que chamamos Beleza.
Afirmou certa vez o famoso autor russo: “a beleza salvará o mundo”. É certo dizer, ao capricho dos aforismos, que Deus é a própria Beleza em que reside a Justiça.
Ancorada nas leis de cima, a lei do homem tem que promover, no próprio corpo de seus objetivos, na graça de seus propósitos, aquele brilho da criação, que não é artifício, aquele esplendor da verdade, que não é ornato; e sem jamais se desprender da moralidade comum, dotar-se das três qualidades que um dia Santo Tomás de Aquino reconheceu às coisas belas e que James Joyce, o grande romancista, incorporou à voz de seu Stephen Dedalus, em o Retrato do Artista Quando Jovem5:
“— Concluindo o que eu estava falando sobre a beleza — disse Stephen —, as mais satisfatórias relações do sensível devem, por conseguinte, corresponder às fases necessárias da apreensão artística. Descobre-as e terás descoberto as qualidades da beleza universal. Santo Tomás de Aquino diz: Ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. Eu traduzo assim: Três coisas são necessárias para a beleza: inteireza, harmonia e radiação.”
Uma lei a que falte integridade, sobre confusão e na qual se veja mal o luzir do eterno é, portanto, menos bela, menos justa, menos lei. Faltam-lhe a exuberância unitária do Ser, o respeito à proporção (ou harmonia) do Bem e, principalmente, a abertura ao brilho da Verdade.
Temos, historicamente, não poucos exemplos de leis iníquas, feiura moral, desgraça jurídica: o sistema nazista (e o holocausto dos judeus), o apartheid na África do Sul, as regras raciais segregacionistas nos EUA.
Aquele que trabalha com o Direito e professa alguma confissão de fé cristã tem de ser um missionário da Justiça, e ao se enxergar nessa nobre e bela missão, lembrar das palavras de León Bloy: “Somente eu sei a força que Deus pôs em mim para o combate”. (Nas Trevas, p. 13)
Isso porque o trabalho também é fonte de santificação da própria vida e das vidas alheias. Quando orientado para Deus, é via de santificação e forma de oração. Assumindo a defesa ou a promoção da Justiça, há uma espécie de plus vocacional.
Todo aquele que trava o bom combate sabe que terá seu “coração triturado por todos os pilões da ingratidão ou da injustiça”6; sabe também, contudo, que jamais estará só, pois conta com o apoio do Alto, e por tal razão tem de fazer o que é certo, sem desesperar em face das adversidades.
Espécie de chamamento particular dentro da vocação universal à santidade, um aceno apostólico mais criativo e capaz de ir além das funções profissionais imediatas, repousando na ocupação voluntariosa da formação das leis e do acompanhamento dos julgamentos em geral.
Conhecer bem a Palavra de Deus é, em função disso, imprescindível. No caso específico dos católicos, conhecer também a Tradição, a doutrina, o CIC e os documentos oficiais da Igreja, muitos diretamente orientados para a técnica jurídica. O conhecimento firme da literatura e dos fatos históricos também é outra arma poderosa à disposição do servo do bom Direito.
Todos esses predicados se juntam na eterna luta para limitar os poderes e fazer justiça, dirigida especialmente aos mais desvalidos. Acaso serão essas duas posturas outra coisa senão o estabelecimento no mundo, à medida do possível e sem pretensões desmedidas, da verdade e dos valores do Reino dos Céus?
Muito aproveita lembrar o que disse John Rawls: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento”.
Se os bons não atuarem com justa firmeza, calibrada pela misericórdia, o mal reinará e a sociedade ficará à deriva. O advogado e o juiz necessitam do Espírito Santo a guiá-los; também disso precisam todos os homens e mulheres tementes e que combatem diariamente os erros do mundo e a si mesmos, em seus afetos desordenados.
Para tal e tanto, além do estudo contínuo, da busca da excelência acadêmica, do amor à ciência, hão de ser perseverantes na oração — porque o cristão sem oração é como o lavrador sem enxada.
Justiça seja feita: o cristianismo foi o que primeiro dignificou mulheres e crianças, opondo-se a escravidões e bradando pela liberdade; fundou universidades, abriu hospitais e ofereceu assistência aos que precisavam. Não é possível permitir que tudo isso se deixe subjugar pelo império da mentira, que se beneficia das divisões na sociedade e faz da descrença na verdade o novo credo geral.
O trabalho e o debate jurídicos devem converter-se em testemunhos de retidão comportamental, aliada a uma reinterpretação do Direito sob a perspectiva bíblica, infelizmente deixada de lado nos tempos mais recentes. O trabalho e a oração são fontes dessa reintegração, desse religare necessário entre o amor de Deus e a criação dos homens.
Todos os títulos do mundo devem ser postos nas mãos de Cristo. Tudo há de ser feito em nome daquele que tudo fez por nós. E cada um deve aspirar a ser parte da rede de transformação, artífice da justiça, da verdade e da honra (Provérbios 21,21)7.
Que a isso nos ajude sempre a Graça de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, pelas piedosas intercessões da Virgem Maria Santíssima, de São Bernardo de Claraval, de São Tomás de Aquino, de Santo Ivo e São Tomás More.
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1 Tema complexo, pode-se dizer, em poucas linhas, que o Direito Natural ou jusnaturalismo é o enquadramento do direito no bom senso, na racionalidade, na equidade, na igualdade, na justiça. Sua fonte é a ordem natural. Direito secundum naturam. E quando se fala em ordem natural, fala-se em Deus. Os gregos e os romanos dele tratavam em alguma medida. Mas ensina Ricardo Dip, “foi só na Idade Média que, pela sabedoria de S. Tomás de Aquino, conjungando o pensamento de Aristóteles e o de Platão, pôde concluir-se, de modo apoteótico, uma doutrina autenticamente cristã do direito natural. Etienne Gilson, prefaciando o livro San Tommaso fonti e riflessi del suo pensiero (VV.AA., dir, de Antonio Piolanti), escreveu com admirável acerto que a religião cristã substituiu e prosperou (a substité et prosperé) mais de doze séculos sem o tomismo, mas que, depois de S. Tomás, não se pode mais entende-la sem ele (on ne se le represente olus sans lui).” [ABC do Direito Natural, São Paulo: Editorial Lepanto, 2020, p. 15]
2 Neves, José Roberto de Castro. “Medida por medida: o Direito em Shakespeare” - 6ª. ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 17
3 Stakeholders: os grandes agentes sociais, públicos e privados, formadores de opiniões e dotados de medidas diferentes de poder: político, econômico, cultural e midiático. Órgãos públicos, universidades, grandes empresas, sindicatos, veículos de imprensa, etc.
4 Essa famosa e belíssima abadia se conecta intimamente à Universidade de Salamanca, com mais de 800 anos, a quarta mais antiga do mundo e mãe de todas as universidades da Ibero América. Fundada pelos reis católicos espanhóis por bula Papal, a Universidade teve em seu início os frades dominicanos de San Esteban como seus principais professores e guias. Esses frades corrigiram os cálculos de Cristóvão Colombo e intercederam aos monarcas para o financiamento da expedição que descobriu a América. Os frades de San Esteban, professores de Salamanca, tomados de grande sendo do Direito Natural, foram os precursores do Direito Internacional e dos direitos fundamentais em geral e dos povos nativos americanos, pré-colombianos, em especial, além de protagonistas de um belíssimo trabalho evangelizador e civilizacional.
5 James Joyce, O retrato do artista quando jovem, p. 213, Ed. Nova Fronteira
6 Bloy, León. “Nas Trevas”, p. 29
7 Provérbios 21:21 – O que segue a justiça e a bondade achará a vida, a justiça e a honra.