A recente matéria publicada na revista Piauí1, em que são relatadas condutas graves e potencialmente delituosas envolvendo o ex-diretor da Globo, o humorista Marcius Melhem, trouxe à tona o debate sobre o crime de assédio sexual2. Tema importante da discussão diz respeito à natureza da ação penal nos delitos sexuais.
Inicialmente, a corrente lei 13.718, de 24 de setembro de 2018, alterou a redação do artigo 225 do Código Penal3 para regular que os crimes sexuais fossem processados mediante ação penal pública incondicionada, que é a regra geral do sistema penal brasileiro4.
Modificou-se, pois, a natureza da ação, que embora fosse pública, não era incondicionada, mas condicionada à representação da vítima5. Com a mudança legislativa, ficou revogada, assim, a lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, que, por seu turno, fez com que os crimes sexuais deixassem de se processar mediante queixa e passassem a depender da iniciativa do Ministério Público, mediante representação da vítima. Tal ação está condicionada a uma autorização da vítima e essa autorização recebe o nome de “representação”. Aqui, o que importa é que o Ministério Público não pode proceder contra alguém sem que exista essa representação da vítima6.
Logo, num primeiro momento, os crimes sexuais eram processados mediante iniciativa privada, ou seja, a ação penal era inaugurada pela própria vítima. Depois, a iniciativa passou a ser pública, isto é, do Ministério Público, mas condicionada à representação. Hoje, ela é pública e incondicionada, ou seja, independe de qualquer exposição de vontade da parte ofendida.
Ora, se a regra atual é a da ação penal pública incondicionada, podemos nos perguntar: qual é a fórmula aplicável aos fatos pretéritos ocorridos antes da vigência da lei 13.718, de 24 de setembro de 2018? Em relação ao episódio veiculado pela Piauí, em que os fatos são datados de 2017, a ação penal seria pública incondicionada ou condicionada à representação?
Em primeiro lugar, em matéria penal é possível aplicar uma lei que já foi revogada. O fundamento é constitucional (artigo 5º, XL, Constituição da República) e infraconstitucional (artigo 2º, Código Penal). De acordo com a regra, se a lei revogada for mais benéfica ao réu, então se aplica a lei revogada. Dito de outro modo: ainda que revogada, a lei mais benéfica continuará a reger os fatos ocorridos em seu tempo.
É justamente o caso em debate. Como os supostos fatos se deram em meados de 2017 e a lei penal mais benéfica é a revogada (Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009), então é essa que será aplicada, ou seja, incide a regra da ação penal pública condicionada à representação7. Desse modo, a atual redação do artigo 225 do Código Penal somente valerá para crimes sexuais cometidos a partir da edição da lei 13.718/188.
Em se tratando de crimes sexuais, portanto, aos fatos pretéritos ao dia 24 de setembro de 2018 (data da promulgação da lei vigente), aplica-se a regra anterior, isto é, a exigência legal de que a vítima (ou seu representante legal) faça a representação para que o Ministério Público possa, então, oferecer a denúncia.
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1 Disponível em: clique aqui. Acesso em: 6.dez.2020.
2 Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.
3 Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública incondicionada.
5 Art. 225. Nos crimes definidos nos Capi'tulos I e II deste Ti'tulo, procede-se mediante ac¸a~o penal pu'blica condicionada a` representac¸a~o. Para'grafo u'nico. Procede-se, entretanto, mediante ac¸a~o penal pu'blica incondicionada se a vi'tima e' menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnera'vel.
6 LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 209.
7 JESUS, Damásio de. Código penal anotado. 23. ed. Sa~o Paulo: Saraiva, 2015. p. 941.
8 SOUZA NUCCI, Guilherme de. Código penal comentado. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 994.