Os versos do poeta renascentista inglês assumem outros contornos em tempos de pandemia. Outrora citado por Ernest Hemingway numa de suas obras mais importantes, chicoteia incessantemente nossas mentes com a contraposição da dicotômica nuance da linguagem dos sinos que ora pode tocar para a confraternização de uma missa, ora para alertar-nos de um incêndio que e causar mortes.
Porque escolhi John Donne, também no mesmo século, o XVII, o Statute of Monopolies inglês (Estatuto dos Monopólios, primeira lei de patentes da humanidade), concedeu exclusividade no desenvolvimento de uma atividade econômica em respeito às inovações nas técnicas e meios de produção, isto é, a patente. A humanidade ou a exclusividade, eis a questão?
O que é uma patente?
Uma patente é um direito exclusivo, uma concessão pública, dada pelo estado (ou estados) a quem inventa algo. Portanto, diante de uma solução para resolver um problema técnico específico o poder público concede um cidadão ou empresa criativo o direito exclusivo de produzir e comercializar a sua criação, podendo publicamente divulgá-la publicamente de forma segura.
Mas estamos em meio a uma pandemia, logo, a questão da patente toma contornos de relevância incontestável.
Discute-se, hoje, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) as patentes de vacina e tratamentos contra a covid-19, um impasse entre países desenvolvidos (ricos) e em desenvolvimento ou subdesenvolvidos (mais pobres ou emergentes). Como ficam os 7 bilhões de habitantes do planeta?
- Como não obstaculizar o acesso da população mundial a uma vacina de uma doença que contaminou cerca de 70 milhões de pessoas, cerca de 0,1% da população mundial?
- Como garantir que a propriedade intelectual não seja um obstáculo para o acesso irrestrito à vacina?
- Como deixar ao relento cientistas médicos, paramédicos e empresas que heroicamente trabalharam, de forma insana, por quase 1 (um) ano após a descoberta do vírus?
- Como não privilegiar o tempo recorde de criação de uma vacina quando até o início do ano acreditava-se ser o prazo de 5 anos rápido para o desenvolvimento de uma vacina tendo em vista que, normalmente, o tempo de demora é de 10 anos?
- Como não se debruçar sobre um tema que poderá ter reflexos sociais, jurídicos, econômicos e políticos em matéria de saúde pública?
- Que período considerar o que vigorar a pandemia ou mesmo depois dela ter cessado?
Analiso o cenário sob a ótica jurídica.
O que é um fármaco?
Um fármaco é um princípio ativo que passa por provas e testes (“in vitro”, em animais e em seres humanos) num processo de desenvolvimento clínico antes de ser utilizado. Tenhamos em mente que o sistema de patentes atual teve seu início há 2 séculos, no XIX, longe distante dessa pandemia que já matou 1,5 milhões de pessoas no globo. A patente visa uma remuneração merecida à dedicação de um estudo de modo a permitir novos desenvolvimentos científicos. Uma vacina é um fármaco que se utiliza de microrganismos patogênicos, mortos ou atenuados, introduzidos num organismo a fim de provocar a formação de anticorpos contra um determinado agente infectante, no caso, o coronavírus.
- Como funciona o sistema de patentes de medicamentos num país e quais as consequências e implicações na facilitação ou embaraço do acesso da população aos mesmos?
- Como fica a função social da propriedade industrial, prevista constitucionalmente, de modo harmonizar o direito de propriedade, inclusive a intelectual, e ao princípio da dignidade da pessoa humana?
- Quais as consequências trazidas pelos tratados internacionais aderidos pelo Brasil, principalmente Convenção da União de Paris (CUP), de 1883, ou seja, 2 séculos, e, do Acordo Trade Related Aspects of Intellectual Rights (TRIPs), de 1994, na OMS, na Organização Mundial de Comércio e na Organização Mundial de Prorpriedade Intelectual (OMPI)? Organismos internacionais de integração que permeiam o tema.
A nossa lei 9.279 de 14 de maio de 1996 (LPI), denominada Lei de Propriedade Industrial-LPI, garante patentes para defesa dos interesses econômicos e estratégicos de pessoas físicas ou jurídicas buscando proporcionalidade entre a propriedade industrial no cenário farmacêutico e a necessidade de saúde pública permitindo o acesso a medicamentos e vacinas. Visualiza-se, aqui, a função social da propriedade intelectual das patentes farmacêuticas de modo que se encontre o equilíbrio entre a necessidade de medicamentos e vacinas de qualidade e a possibilidade financeira do paciente em adquiri-los, bem como a forma de disseminar o direito à saúde e o princípio constitucional da dignidade da pessoa.
Mesmo diante do sistema jurídico internacional, a Moderna, empresa farmacêutica norte-americana que também desenvolveu a vacina, declarou que não vai pedir patente da mesma enquanto a pandemia durar. Ela está disposta a licenciar a patente a terceiros durante o período de calamidade sanitária. Na prática, a atitude da empresa significa que outros fabricantes de medicamentos ou governos não precisam se preocupar que ela, Moderna, tente bloquear o seu uso. Deste modo, a questão assume também contornos éticos e humanitários, além dos já citados econômicos e jurídicos.
Ainda, cabe lembrar que o TRIPs estabelece exceções às regras que favorecendo o acesso a medicamentos de reconhecida importância, como espécie dos direitos humanos.
No Brasil, embora haja essa uniformização advinda dos tratados internacionais, o conceito amplo de propriedade industrial ainda não foi totalmente integrado ao ordenamento.
Além do que, como noticiado pela mídia, aqui há obrigatoriedade da análise prévia da patente a ser concedida, consoante o artigo 229-C da LPI, pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) do Ministério da Saúde. O registro junto à ANVISA é imprescindível, vez que obrigatório, para a própria proteção da saúde e dos direitos de patente, tendo em vista que o medicamento deve demonstrar a sua fórmula. Criou-se, no caso da covid, uma espécie de “fast track” dentro da ANVISA como forma de agilizar a aprovação e o uso da vacina no Brasil baseado em aval previamente concedido por agência do exterior norte-americana, europeia, japonesa ou chinesa.
Outra situação que precisaria ser levada em conta na concessão de patentes da vacina são os oligopólios (há poucas empresas controlando o mercado de um setor específico) propiciando a concentração do mercado com o abuso do poder de detenção e exploração em excesso a fim de maximizar o retorno financeiro dos gastos na produção e comercialização dos medicamentos.
Não nos esqueçamos que a perenização, processo pelo qual os detentores de uma patente conseguem alongar sua exclusividade além dos prazos previstos em lei através de estratégias tecnológicas e mercadológicas, pode diminuir ou impossibilitar a fabricação de produtos equivalentes a essa droga. Desse modo, garantir exclusividade às empresas detentoras de patentes sobre medicamentos, no caso, pode se contrapor a bens maiores, o interesse da coletividade e à maior acessibilidade a medicamentos para melhorar na qualidade da saúde pública.
Tenhamos em mente que medidas judiciais estão propostas, diante da constatação médica da eficácia e frente ao fato de ser reconhecido pelos órgãos competentes nos países de origem para garantir o pronto acesso da população à vacina, seja ela qual for.
Em caso de morosidade na aprovação de vacina e/ou medicamento para a covid, talvez, vejamos a reversão da posição vigente, hoje, vigente na Suprema Corte no tocante apenas ao fornecimento de medicamentos e testes concluídos pela ANVISA, em vista de mora irrazoável por parte desta agência ou de descumprimento de legislação específica existente desse ano (prazo superior ao de 7 (sete) dias ao previsto na lei 14.006/20).