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História da governança corporativa II

A governança corporativa, surgida como consequência da globalização e intercâmbio das relações comerciais e sistemas econômicos e jurídicos distintos, assumiu diferentes contornos, fomentados pelo ambiente em que desenvolvida.

16/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

1. Governança Corporativa nas empresas familiares e a proteção do empresas familiares

Como abordado semanas atrás, no Brasil, um dos aspectos primaciais da governança corporativa diz com a proteção dos acionistas minoritários e o desafio das companhias em garantir a disseminação paritária de informações, a perenidade do objeto empresarial e a adoção de padrões diferenciados de confiabilidade.

A existência de normas comportamentais que resguardem a companhia e seus acionistas de eventuais danos decorrentes da má gestão corporativa implica considerar alternativas para sua instrumentalização e, nesse cenário, a adoção da arbitragem como forma de solução de conflitos merece especial destaque, conforme será abordado.

A governança corporativa, surgida como consequência da globalização e intercâmbio das relações comerciais e sistemas econômicos e jurídicos distintos, assumiu diferentes contornos, fomentados pelo ambiente em que desenvolvida, tendo os mecanismos de controle e regras de comportamento e atuação alinhados aos sistemas de gerência e concentração de capital.

Dentre os sistemas desenvolvidos, dois assumem especial importância e são adotados pela doutrina para diferenciar-se o desdobramento dos aspectos da governança corporativa: (I) outsider system e (II) insider system.

Em sua obra sobre Direito Empresarial, André Luiz Santa Cruz Ramos (Ramos, 2017) destaca que a diferença primacial entre os dois sistemas baseia-se no estádio de avanço do mercado de capitais, sendo que, no outsider system, encontram-se aqueles países em que o mercado de capitais encontra-se mais desenvolvido, e, no insider system, estão aqueles em que ainda predominam as companhias de capital concentrado.

Nesse sentido, em breve síntese, elucida o Autor que, no outsider system, a governança corporativa volta-se, majoritariamente, ao acionista, haja vista a verificação de capital social muito pulverizado, em que os acionistas, em geral, não ocupam posição de gestão dos negócios. Nesse cenário, o mercado de capitais exerce maior influência que o financiamento das empresas e o fator de movimentação do mercado fomenta a participação ativa dos acionistas minoritários nas assembleias.

Em posição oposta, no insider system, o sistema de governança corporativa volta-se, consistentemente e, neste ponto, o financiamento assume papel de maior importância em detrimento do mercado de capitais, pouco desenvolvido e de movimentações não tão expressivas quanto em países em que se verifica a presença do outsider system.

No Brasil, a prevalência de empresas familiares com capital concentrado denota traços de um sistema de governança corporativa mais afeto ao insider system.

Importante pontuar que a forma com que se desenvolve o sistema de governança corporativa, contudo, não se distancia do objetivo fundamental para estruturação do movimento: a possibilidade e, mais ainda, a necessidade de atrair e garantir investimentos.

Frise-se que, ao contrário do que se poderia concluir, em uma análise preliminar e pouco detida aos aspectos históricos e econômicos do desenvolvimento da atividade empresarial no Brasil, muito embora o sistema de governança corporativa aqui que logrou se desenvolver volte-se à atuação dos stakeholders, sua estruturação visa, em primeiro plano, a proteção dos direitos dos acionistas minoritários. Isso se dá, em parte, em razão do fato específico da concentração de capital, em que os acionistas minoritários não participam ativamente das decisões na empresa. O movimento de estruturação de governança corporativa na companhia, então, deverá ser no sentido de diminuir a assimetria de informações e equilibrar os atos e posições de poder dentro da empresa, sendo este o ponto chave para se entender as necessidades e especificidades das normas de gestão no sistema brasileiro.

Fábio Ulhoa Coelho (Coelho, 2019), que bem elucidou tais aspectos em sua obra a respeito do Direito de Empresa. Confira-se, in verbis:

Em sua trajetória no exterior, o movimento de governança corporativa esteve, em geral, associado ao se costumou chamar de “conflitos de agência”. (...) No Brasil — em que sociedades anônimas sujeitas a esse tipo de controle não existiam até 2005 e são muito poucas as que existem desde então —, a governança corporativa ligou-se fortemente a outra questão, a do respeito aos direitos dos acionistas minoritários. Enquanto no exterior, a obediência a elevados padrões de governança corporativa visa normalmente garantir interesses do conjunto de acionistas, entre nós, foca-se de modo acentuadíssimo a garantia dos interesses dos minoritários. Aqui e lá, porém, o que está em jogo é a competição pelos investidores.

É dizer que, de modo geral, a concentração de capital e a gestão empresarial desenvolvida nas empresas familiares abarcam riscos sobretudo referentes à ausência de regramento claro, comunicação efetiva e planejamento sucessório.

Soma-se a isso a evidente complexidade em se desenvolver uma gestão eficaz que apresente resultados capazes de diminuir os riscos relativos à dificuldade em se conciliar o desenvolvimento da empresa e o desenvolvimento da família, no mesmo passo. Especificamente, encontra-se dificuldade na instituição de barreiras entre as relações familiares e pessoais.

Nesse ponto, os acionistas minoritários e seu ativismo tímido na gestão dos negócios e nos processos decisórios relevantes para a vida da empresa necessitam de informações claras e transparentes, bem como de outros mecanismos que lhes garantam a defesa dos interesses e, concomitantemente, confiram confiabilidade à companhia e liquidez aos seus ativos.

Em uma análise progressiva da continuidade das atividades empresariais ao longo da substituição de seu controle por agentes da mesma família, Fernando Gentil Monteiro destaca estudo produzido por Luciana Del Caro (Del Caro, 2010) intitulado “Governança em Empresa Familiar”, segundo o qual apenas 60% das sociedades familiares são transmitidas à segunda geração e, no mesmo passo, apenas 30% são transferidas para gestão da terceira geração (netos). Conforme depreende-se, portanto, a terceira geração de uma mesma família a atuar na gestão de uma empresa familiar perfaz apenas 18% do total de companhias. Ressalte-se, uma vez mais, a importância das empresas dessa natureza na economia brasileira.

Há ainda as intercorrências relacionadas à profissionalização da gestão das empresas familiares. O que se tem é que a ocupação de cargos de gestão e direcionamento por profissionais eleitos, tão somente, levando-se em consideração o grau de parentesco e relações familiares culmina, igualmente, em insegurança e diminuição da capacidade competitiva que garantiria a atração de investimentos e a proteção do interesse da empresa, consubstanciado pelos interesses individuais dos demais acionistas.

Os fatores de escolha de profissionais pouco qualificados para cargos que exijam maior expertise e know-how denotam não apenas conflitos societários configurados por si diante dos embates de interesses, como também pela eventualidade de decisões que estejam em desacordo aos parâmetros de competitividade e de assertividade que se espera para a manutenção da atividade empresarial e funcionamento de seus objetivos institucionais.

O intuito da implantação da governança corporativa nessas empresas, portanto, é garantir a profissionalização dos agentes e racionalização do controle e de decisões a fim de atingir resultados satisfatórios para todos os acionistas e resguardar o interesse e finalidade da empresa.

Tais atributos, doutra banda, são diferenciais capazes de atrair os investimentos por vezes escassos.

Ocorre que as normas de governança corporativa, no mais das vezes, enunciam, tão somente, determinações necessárias ao desenvolvimento da empresa, sem que se tenha claramente a forma pela qual dar-se-á a efetivação de tais medidas.

É, precisamente, neste ponto em que a adoção da arbitragem societária toma forma como meio de proteção ao interesse dos acionistas minoritários, sobretudo considerando-se que faz parte dos pressupostos de governança corporativa enunciados pelo Guia de Melhores Práticas.

2. A adoção da arbitragem societária como forma de proteção dos acionistas minoritários em empresas familiares

Uma das alternativas para estabilização de poderes e equilíbrio de posições societárias é o acordo de acionistas, que poderá versar sobre quaisquer temas que tenham influência nos interesses partilhados pelos acionistas na sociedade, com exceção à chamada compra de votos.

Como sobredito, as práticas de governança corporativa quanto aos aspectos societários nem sempre dispõem acerca das soluções dos problemas enfrentados por essas companhias. O que se tem, no entanto, é que é inequívoco o prestígio atribuído à clareza de informações e transparência das decisões. Nesse sentido, a elaboração de acordo de acionistas mostra-se ferramenta plenamente viável para estabelecer a paridade de informações, equilíbrio de poderes e como forma de diminuir a assimetria de conhecimento entre os agentes dentro de uma companhia.

Decerto que, podendo versar sobre quaisquer assuntos cujos interesses dos acionistas tangenciem-se, pode-se considerar alternativa juridicamente plausível a inclusão de cláusula de arbitragem no estatuto da companhia como a forma de resolução de eventuais conflitos societários.

De um lado, a inclusão de cláusula de arbitragem tem o condão de evitar conflitos e, por outro, atribuir confiabilidade à empresa, haja vista que empresas que estão no nível mais avançado de governança corporativa possuem a previsão de resolução de controvérsias por meio da arbitragem.

Notadamente, a presença de cláusula de arbitragem dispondo sobre as regras claras quanto a eventual procedimento arbitral é capaz de inibir a ação de indivíduo que tente se valer de determinado privilégio para perpetrar atos contrários aos interesses da empresa e que acarrete prejuízo aos demais acionistas. Concomitantemente, a clareza de um procedimento célere, específico e atento às necessidades da empresa e peculiaridades da relação societária, ensartados na cláusula inserta no estatuto da companhia, aumenta o grau de confiabilidade no qual se fiam investidores e acionistas.

A efetividade da adoção da arbitragem como forma de solução adequada para os conflitos societários é inequívoca. Muito embora a adoção à Câmara de Arbitragem do Mercado só seja obrigatória às empresas componentes do nível mais alto de governança corporativa na listagem da B3, no Código Brasileiro de Melhores Práticas, especificamente em seu artigo 1.07, encontra-se a recomendação para inserção de cláusula de arbitragem a fim de resolver eventuais conflitos entre os sócios, de acordo com as regras claramente estabelecidas em seu estatuto.

Essa previsão tem uma razão e, ainda que hoje a adoção da arbitragem como forma adequada de solução de conflitos tenha por base a autonomia privada, a relevância do instituto e a sua adequação à resolução de conflitos societários é historicamente reconhecida, basta notar que, no Código Comercial de 1850, a arbitragem para solução de conflitos societários ao longo da existência da sociedade até sua liquidação era obrigatória, nos termos do artigo 294.

É de ver que, com o desenvolvimento do instituto, a obrigatoriedade cedeu espaço à natureza facultativa de sua previsão, mas sua importância não perdeu foi diminuída — do contrário, mostra-se como forma adequada de solução de litígios, considerando, ainda, a possibilidade de diminuição de riscos que, consequentemente, diferenciem as companhias.

3. Conclusão

Os aspectos do sistema de governança corporativa adotados pelas empresas levam em conta suas especificidades e, no sistema brasileiro, cujo capital encontra-se, majoritariamente, concentrado (“empresas familiares”) a proteção aos acionistas minoritários, que se encontram, no mais das vezes, afastados dos processos decisórios e das situações de relevância para a empresa, é aspecto fundamental.

Nesse sentido, uma das alternativas para equilíbrio de poderes, proteção dos acionistas minoritários e equiparação de informações e posições relevantes dentro de uma companhia é a formulação de acordo de acionistas com regras claras e precisas que fundamentem a diminuição da assimetria de informações.

Uma vez que tais acordos podem versar, em regra geral, sobre todos assuntos de interesse comum entre os acionistas, exceto quanto à compra de votos, não há vedação para a previsão de inserção de cláusula de arbitragem no estatuto da companhia para dirimir eventuais conflitos societários.

Além de não haver vedação, tal previsão diz com as melhores práticas de governança corporativa e, ao fim e ao cabo, é capaz de efetivar as normas de governança, para que não pairem apenas como standards comportamentais sem qualquer indício de que sejam postos em prática, mas instrumentalizem a salvaguarda dos interesses daqueles acionistas que não atuem diretamente na condução da empresa.

Nathália Amorim Pinheiro
Advogada do escritório Amaury Nunes & Advogados Associados. Pós-graduanda pelo LLM em Direito Empresarial do IBMEC.

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