É muito comum o ajuizamento de ações judiciais por pacientes em face de médicos e suas respectivas clínicas: em regra, o médico assume uma posição de defesa em tais procedimentos.
Entretanto, é certo que há casos completamente infundados de malpractice, propagados indiscriminadamente por pacientes insatisfeitos, que maculam a honra do profissional de saúde e que ensejam, sem sombra de dúvidas, o ajuizamento de ação indenizatória por danos morais e, conforme o caso, materiais.
É comum, especialmente em casos de procedimentos estéticos (cirúrgicos ou não), que o paciente fique insatisfeito com o resultado atingido. Em outras situações, familiares do paciente mostram-se ansiosos com a recuperação de seu ente querido, buscando atribuir as causas de sua frustração ao profissional que o atendeu.
Ao invés de buscar o exercício regular de seus direitos, por meio do diálogo com o médico ou mesmo da via judicial, o paciente ou seu familiar se sentem habilitados a relatar publicamente o ocorrido, sob a sua exclusiva ótica, muitas vezes expondo o profissional a situações que maculam seu nome, sua honra e que causam irreversíveis prejuízos à sua atividade profissional.
Tais relatos depreciativos são publicados quase sempre no ambiente virtual, especialmente em redes sociais, conferindo contornos mais complexos na medida em que a viralização de tais mensagens possui potencial ilimitado e pode ser realizada sob o véu do anonimato.
Ainda que estejamos diante de uma fonte identificável, a simples menção e mesmo exposição pública, por parte do paciente, que relata a sua versão dos fatos que leva à insatisfação com o médico ou o consultório, não será suficiente para ensejar a responsabilização civil. Isso porque, a regra absoluta é que há liberdade constitucional de manifestação do pensamento.
Em tais termos, o paciente que queira expor publicamente sua situação deverá fazê-lo sem a utilização de linguagem ofensiva ou depreciativa, limitando-se a narrar o fato nas circunstâncias em que ocorreu.
Contudo, há casos em que os limites da liberdade de expressão são ultrapassados, incorrendo o ofensor em máculas à honra, à dignidade e à imagem do médico, uma vez que, nos termos de conhecido preceito francês, le droit cesse où l’abus commence (“o direito cessa onde começa o abuso”).
Há grande dose de subjetividade na delimitação de tais premissas, somente sendo possível apurar se os limites da liberdade de expressão foram ultrapassados mediante a análise do caso concreto. Como a apuração do dever de indenizar é indissociável da realidade, analisaremos alguns casos em que o médico ou hospital obteve êxito na pretensão indenizatória em face do paciente, a fim de analisar os requisitos mínimos necessários para a propositura do pedido indenizatório.
Em precedente julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma blogueira publicou em seu Instagram relato que sua tia sofrera queimaduras em razão de tratamento com uma conhecida dermatologista. Contudo, segundo informado pela profissional, “as manchas desapareceram no prazo estimado”. O Tribunal, mantendo a sentença condenatória, entendeu que “a publicação carece de fundamento técnico”, derivando “exclusivamente da vontade de ofender, de macular a honra profissional com lastro em seu juízo leigo e por seu interesse destruidor e irresponsável”, destacando que a foto do rosto da paciente era de “procedimento recém efetuado, antes de alcançado o resultado definitivo”1.
A indenização foi majorada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para R$ 20.000,00 (vinte mil reais). Dentre os fatores considerados para aumento do valor estão o “grande número de seguidores [da requerida] (o que deveria levá-la a ter mais cuidado e responsabilidade com suas postagens)”2.
Outra situação concreta trata de paciente atendida na UTI por um médico plantonista, autor da ação. O marido da paciente afirmou que o médico plantonista teria se equivocado ao submeter sua mulher, portadora de esclerose lateral amiotrófica, a procedimento de traqueostomia, sustentando que seria suficiente a utilização de aparelho de ventilação e que o procedimento era desnecessário e produto de imperícia e negligência. O marido da paciente passou, então, a empreender verdadeira campanha difamatória em face do médico, propagando para outros médicos e pacientes que a conduta do plantonista teria sido antiética. Formalizou ainda denúncia no respectivo Conselho Regional de Medicina que, após a abertura de sindicância, foi arquivada. Mesmo com o arquivamento, publicou carta aberta assinada por si e por sua esposa em jornal.
O Tribunal de Justiça de São Paulo sustentou, em relação ao réu da ação, que, em razão da doença grave e sem cura que acometia a sua esposa, “a forte emoção até mesmo o imunizaria de, no calor do momento, desconfiar dos procedimentos adotados pelo médico, não tivesse se propagado no tempo e através de vários veículos de divulgação”3. Levou-se em consideração, ainda, que a carta aberta em jornal, mesmo após o arquivamento de sindicância ético-disciplinar, teve grande repercussão entre os demais profissionais do hospital e entre pacientes, gerando inegáveis prejuízos à reputação do médico. Foi mantida, assim, a condenação já fixada em primeiro grau, em um elevado patamar de 200 (duzentos) salários-mínimos (embora a decisão seja de 2011, atualmente este valor corresponde a mais de R$ 200.000,00 – duzentos mil reais).
Neste mesmo caso, é importante destacar que houve também condenação ao pagamento de danos materiais, “diante da grave repercussão em sua esfera profissional dos fatos narrados nestes autos, devendo-se apurar a existência de decréscimo no faturamento de seu consultório, a partir da data da publicação da matéria ofensiva, que extrapolou eventual exercício regular do direito de apuração da conduta do profissional, encerrada a sindicância”4. Como se não bastasse, o réu foi compelido a publicar a sentença em jornal, na forma de retratação.
Como visto, em regra, as pessoas têm o direito constitucionalmente assegurado de manifestar sua insatisfação com produtos e serviços prestados por profissionais liberais e empresas. Restará configurado o exercício regular de direito contanto que não sejam ultrapassados os limites de razoabilidade e proporcionalidade, além da boa-fé e dos bons costumes.
O paciente ou seu familiar que se exceder em tal relato, seja apresentando versão dos fatos que não corresponda à realidade, utilizando-se de vocabulário depreciativo ou empreendendo verdadeira campanha difamatória contra o médico ou a clínica, violará direitos personalíssimos, maculando o nome e a honra (objetiva e subjetiva) do profissional, ficando sujeito, portanto, ao pagamento de indenização por danos materiais e morais, sem prejuízo da retirada do conteúdo da mídia e das redes sociais (caso seja publicado) e de retratação pública, conforme a situação particular ensejar. Nada impede que a indenização seja pretendida também pela pessoa jurídica lesada (clínica ou hospital), desde que demonstrados de forma inequívoca os danos à sua honra objetiva (reputação).
Conclui-se, portanto, que não existe direito absoluto, sendo perfeitamente admitido ao médico que se sinta lesado por comentários depreciativos, buscar reparação civil em face do paciente ou familiar que tenha abusado de seu direito de liberdade de expressão. Afinal, os valores indissociáveis do médico, como o seu nome, a sua honra, sua competência técnica e sua reputação, construídos ao longo de décadas de árduo trabalho, constituem seus bens de maior expressão.
1 TJ/RJ - APL: 00180463420168190014, relator: des(a). Henrique Carlos de Andrade Figueira, Data de Julgamento: 12/5/20, 5ª câmara cível, Data de Publicação: 18/5/20.
2 TJ/RJ - APL: 00180463420168190014, relator: des(a). Henrique Carlos de Andrade Figueira, Data de Julgamento: 12/5/20, 5ª câmara cível, Data de Publicação: 18/5/20.
3 TJ/SP - APL: 9130849682004826 SP 9130849-68.2004.8.26.0000, relator: Luiz Ambra, Data de Julgamento: 23/2/11, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 2/3/11.
4 TJ/SP - APL: 9130849682004826 SP 9130849-68.2004.8.26.0000, relator: Luiz Ambra, data de julgamento: 23/2/11, 8ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 2/3/11.