Migalhas de Peso

A tutela penal do patrimônio histórico e artístico*

O direito penal mínimo não se traduz na perda de significado dos tipos e das penas em face de condutas que expressam a violação a direitos individuais de magnitude constitucional e internacional.

11/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Nas últimas três décadas, experimentou-se crescente conscientização dos brasileiros com o meio ambiente. Apesar das idas e vindas das políticas públicas, o assunto vê-se objeto de debate constante e os mais jovens têm a preservação ambiental como bandeira. O mesmo não acontece com a proteção do patrimônio histórico e cultural. Rara a discussão sobre a importância da conservação de prédio de valor histórico, ou urbanístico. Os exageros da especulação imobiliária, vez ou outra, levam à publicação de notícia em jornal, mas rápido se esquece dessa preocupação.

Curioso observar os discursos, pois, ao se defender a natureza, se mencionam o futuro, as novas gerações, o que torna o appeal do tema cativante. Porém, quando se traz à baila a preservação de cidade histórica, obra de Antonio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), óleo sobre tela de Cândido Portinari, azulejos de Athos Bulcão, livro raro da Biblioteca Nacional, o marketing do guardar nossa memória não ecoa entre o público.  

 Talvez, alguns não se lembrem, porém, a atenção ao barroco mineiro começou com a viagem de um rapaz de 27 anos àquela região. Mario de Andrade, nosso modernista da Semana de 22, visitou as cidades mineiras em 1919 e organizou famosa caravana de artistas e intelectuais (Oswald de Andrade, Oswald de Andrade Filho, Tarsila do Amaral, Blaise Cendras, René Thiollier, Olívia Penteado, Gofredo da Silva Teles) por lá em 1924. Tal a sensibilidade de Mário de Andrade com o que presenciou, não obstante o processo de deterioração de igrejas e objetos sacros, que ele impulsionou a criação do SPHAN – Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Lei 378, de 13.01.1937) – órgão público que foi coordenado por 30 anos (1936-67), com esmero, pelo bacharel em Direito, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade.

O interesse público em resguardar contornos ambientais, prédios, monumentos, obras de arte, enfim, bens de importância histórica, artística, arqueológica e paisagística reflete-se no direito penal. Tratam-se de bens jurídico penais de índole constitucional, afinal, nossa Lei Maior lhes reconhece este patamar jurídico (art. 215 e 216, da CR) e a legislação especial bem os caracteriza (v.g.: Decreto-lei 25/37, Lei 3.924/61, Lei 6.513/77, Lei 19.257/01).  

Podem-se encontrar relevantes definições para aquilatar o sentido do patrimônio cultural na Convenção do Patrimônio Mundial de 1972 (Decreto 80.978/77). O documento internacional indica a necessidade de se garantir o amparo das obras e áreas de proveito para a cultura da humanidade, as quais sofrem com causas naturais de degradação, mas também com a destruição fruto do incontrolado desenvolvimento socioeconômico.

Note-se que o interesse tutelado extrapola os limites nacionais, o que significa reconhecer direitos de “todos os povos do mundo” e de se afirmar a responsabilidade da coletividade internacional na “salvaguarda desses bens únicos e insubstituíveis”.

O plano objetivo não denota o que há de mais importante para o indivíduo. A inconsciência das pessoas nasce da ausência de percepção quanto ao direito de cada um de desfrutar da cultura como algo essencial à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 22, da Declaração Universal dos Direitos Humanos). Sem falar do direito de participar da vida cultural da comunidade e de usufruir das artes (art. 27, da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Embora se encontrem muitas discussões quanto ao belo na filosofia (Kant, Hume, Schopenhauer), parece inegável que a pessoa humana tem a faculdade de distinguir as qualidades estéticas especiais, assim como de ser tocada pela beleza de um objeto, ou de uma música, que mexem com a essência do observador (F. Hutcheson). E quanto a determinadas construções, obras de arte, paisagens, reconhecem-se juízos universais quanto à estética e à relevância para o conhecimento da natureza humana. 

Tais valores jurídicos não escapam ao direito penal pátrio, como se observa nos artigos 62 a 65, da Lei 9.605/98. No entanto, a estrutura dos tipos atuais peca com a previsão apenas de condutas danosas. Descrevem-se ações típicas, comissivas e omissivas (e.g., o núcleo: deteriorar), que ocasionam dano, sem se prescrever a antecipação punitiva de atos que tragam risco a este patrimônio, irreparável muitas vezes.

Há fatos do mundo contemporâneo que levam a se observar a ocorrência reiterada de comportamentos perigosos, que podem ser comprovados em cada caso e que violam direitos de indistintas pessoas. O desvalor da ação e do resultado reclamam por tutela, do ponto de vista normativo, anterior à ocorrência material do evento. Logo, demanda-se pela tipificação do incremento do risco ao bem cultural, cuja valia emerge supraindividual. A consumação do crime material pode trazer, em palavras simples, a impossibilidade de jamais se retornar ao status quo ante.

A perspectiva, ora trazida, aponta para se repensaram os tipos penais em questão, se o direito administrativo não se exibir suficiente à proteção jurídica do patrimônio histórico e artístico. O direito penal mínimo não se traduz na perda de significado dos tipos e das penas em face de condutas que expressam a violação a direitos individuais de magnitude constitucional e internacional.

Ignorar...o que aconteceu antes de termos nascido equivale a ser sempre criança” – disse Cícero (Do orador, XXXIVI) sobre a história.

(*texto dedicado à Professora Ivete Senise Ferreira, que me orientou no Mestrado e Doutorado, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco)

 

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo
Advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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