O home office foi adotado pelo município de São Paulo/SP para todos os seus servidores como a solução possível para a manutenção do serviço público ativo (em tempos de coronavírus) sem olvidar os devidos cuidados com a saúde desses trabalhadores. Quando de seu implemento (na época, temporário), houve incremento da produtividade, razão pela qual o município em questão resolveu torná-lo definitivo, e tratá-lo como a solução perfeita para o futuro do serviço público. Todavia, será que há segurança em afirmarmos que, de fato, o home office é a solução perfeita para o serviço público?
Antes de adentrarmos nessa discussão, é pertinente definirmos o instituto home office/teletrabalho (aqui adotados como sinônimos). Para a doutrina especializada, representada por Sierra Benítez: “la concepción del teletrabajo es más pragmática, llegándose a considerar como un instrumento de flexibilidad laboral que permite la externalización de las empresas y la reducción de sus costes fijos.”1 (apud LIMA FILHO; BRASIL, 2019, p. 116)
Feita a devida conceituação, relembra-se o histórico do case paulistano. Lá, o home office foi implementado com natureza temporária, através do decreto 59.283/20, e seria aplicável a todos os servidores daquele ente federativo.
Em 15/9/20, em decorrência direta dos bons resultados advindos da vigência do Decreto supra, o município de São Paulo confeccionou o decreto 59.755/20, tornando definitivo o home office para os mais de 120 mil servidores daquela cidade. Tal situação, logicamente, reverberou nacionalmente. (ISTOÉ DINHEIRO, 2020; GLOBO.COM, 2020; R7.COM, 2020; UOL, 2020).
Nas justificativas apresentadas para o implemento do atual decreto (58.775/20), a prefeitura paulistana alegou, em síntese, haver: tendência global pelo implemento do home office; obtido significativa economia de escala; supostas melhoras nos serviços ofertados; e mitigação de dano ambiental gerada por menos pessoas nas ruas e menor consumo de serviços essenciais (como água, energia, etc.).
Na parte operacional/de funcionamento do decreto 58.775/20, chamam a atenção algumas previsões (e a ausência de algumas outras), a saber:
a) a vedação do home-office para aqueles que realizam “trabalho externo” (§ 2°, artigo 2);
b) a obrigatoriedade do “registro eletrônico de assiduidade” (ou seja, de “registrar o ponto” de maneira eletrônica – artigo 3, inciso IV), o que, de certa forma, vai contra a visão de muitos entendidos sobre o referido Decreto como, por exemplo, Ricardo Amorim, apresentador do Manhattan Connection, que foi entusiasta desse Decreto, dentre outros motivos, por entender que “já passou muito da hora de abolirmos a mentalidade do cartão de ponto” (2020);
c) a aparente preocupação do administrador público em garantir efetividade da medida no que se refere à produtividade dos servidores em regime de teletrabalho, o que pode ser notado, por exemplo, pelo teor dos artigos 32, §1°, 8 e 13 e incisos, e 14, dentre outros;
d) a aparente vontade do administrador em incentivar e até mesmo “forçar” que o home-office seja implementado em larga escala e sempre que possível, o que se denota com a leitura, por exemplo, do teor dos artigos 63 e parágrafos, e 10, § único, dentre outros;
e) ainda como consequência do que foi dito no tópico anterior, quando a administração de algum órgão municipal não implementar o home-office para seus servidores, tem o dever de apresentar as devidas justificativas a seus superiores na administração, cabendo a esses superiores a última palavra sobre a implementação ou não para aqueles servidores (nos termos do teor dos §2° e 3°do artigo 6°);
f) a presença expressa, embora “sutil”, da possibilidade de punição ao servidor que desrespeitar deveres relacionados com o home-office, especialmente no que se refere a jornada de trabalho mínima (artigo 144);
g) a curiosíssima previsão contida no § 2° do artigo 3 do Decreto, qual seja, de que o home-office seria uma espécie de arma da administração pública contra alguns tipos de ausências comuns de servidores, ou, nas palavras usadas pela administração paulistana:
É preferível o regime de teletrabalho ao afastamento para participação em congressos, cursos, certames desportivos, culturais ou científicos, nas situações previstas na legislação vigente, hipótese em que o inciso V do ‘caput’ deste artigo, bem como outras condições previstas neste decreto ou nos demais atos normativos a serem expedidos poderão ser afastadas ou mitigadas [...].
h) a previsão de que o servidor em teletrabalho possa ser chamado a qualquer hora para comparecimento presencial na unidade de trabalho, bastando para isso convocação com, no mínimo, 4 horas de antecedência;
i) e a existência de escala de trabalho mínima e máxima para home-office e para trabalho presencial, sendo o máximo 4 e o mínimo 2 dias de teletrabalho/semana, e em dias alternados (artigo 10 e incisos), podendo tal regra ser quebrada somente em casos excepcionais, desde que, concomitantemente: haja vontade dos servidores envolvidos; sejam estipuladas metas adicionais para realização de força-tarefa; dure no máximo por 90 dias; e quem já houver sido convocado só possa ser chamado novamente seis meses após essa primeira convocação (artigo 11, § único).
Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não tenha adentrado com propriedade no mérito da constitucionalidade da medida, resta óbvio que o teletrabalho é constitucional, tanto é que já vem sendo largamente usado pela administração pública, com autorização expressa de suas Procuradorias Gerais, Ministérios Públicos e afins.
Mas não é só. Além dos órgãos estaduais e/ou da União, o próprio STF enxerga a constitucionalidade desse regime de trabalho no poder público, o que pode ser notado, por exemplo, na Ação Cível Originária - ACO 3364, em que, muito embora a relatora Ministra Carmem Lúcia negue pedido liminar do Distrito Federal que objetivava compelir o Poder Executivo federal a adotar o teletrabalho em relação aos servidores públicos federais lotados no Distrito Federal, hora alguma ataca a validade e legalidade de tal instituto (STF, 2020).
Nos passos dessa interpretação do contexto nacional, o município de São Paulo julga como uma tendência irreversível a guinada rumo ao teletrabalho (inclusive na esfera pública), e por isso tem se preparado para esse “novo mundo” em que o servidor trabalha feliz e motivado de casa, e que o administrador público economiza e a produtividade permanece alta, numa espiral de efeitos positivos que sensibilizaria até os olhos mais céticos. Mas será que isso tudo é real e duradouro?
A visão “romântica” do teletrabalho não é novidade e existe desde que se iniciou e se expandiu a pandemia do coronavírus. Na verdade, tal abordagem tem se mostrado uma verdadeira coqueluche no mundo do direito, exatamente porque pode significar novidades, rupturas e ganhos em escala em cadeias produtivas, ao menos para os entusiastas da medida. Mas isso deve ser visto com extrema cautela.
Tanto não é novidade que, com certeza, o leitor já teve ciência de algum material (live, artigo, programa de tv, podcast, etc.) nesse período de pandemia que falasse sobre as mudanças forçadas já feitas em virtude do coronavírus, ocasião em que eram expostos panoramas sobre as vantagens da informatização e do mundo com teletrabalho pós-pandemia, quase sempre citando suposto ganho de produtividade e de economia, o que geraria eficiência, muitas vezes amparados em dados recentes e reais.
Ou seja, foi necessária uma doença de escala global e altamente contagiosa para mudar, ao menos temporariamente, o quadro (e, de certa forma, a cabeça do gestor público brasileiro). Mas será que a cabeça do gestor público brasileiro de fato mudou?
Não se pretende aqui demonizar nenhum tipo de trabalho e perspectiva futura, tampouco soar pessimista ou contrário à modernidade. Contudo, uma análise crítica, técnica e sem amores deve ser buscada, fugindo do senso comum.
E uma análise assim diria que o teletrabalho e seus efeitos, sobretudo no poder público, ainda são muito recentes e incipientes para que sejam feitas afirmações definitivas e conclusivas sobre o seu futuro. E mais, o fornecimento de equipamento condizente com o home office passa a ser tão importante quanto uma unidade pública devidamente aparelhada para a garantia de seu futuro, de modo que, não havendo essa possibilidade para o ente envolvido, todo o sistema fica comprometido.
Por fim, mas não menos importante, a saúde dos trabalhadores que exercem o home office também deve ser absolutamente priorizada, para viabilizá-lo a longo prazo, o que se faz com fornecimento de equipamentos ergonômicos, descansos intrajornada, estipulação de regras que não causem superjornada e outras precauções pertinentes; afinal, o trabalhador público saudável deve ser objetivo de todos, se não por razões humanísticas, então pelo fato de que servidor doente não produz adequadamente.
Segue-se uma comparação didática: ocorre com o teletrabalho algo semelhante ao que acontece no enfrentamento da própria covid-19: tem-se debruçado profundamente para entender o instituto, e obtido bons resultados (FANTÁSTICO, 2020), além de vir sendo gasta boa parte de energia para saber como combater suas mazelas (NATIONAL GEOGRAPHIC, 2020). Mas mesmo com todo esse esforço e bons resultados de pesquisa já atingidos, tudo que foi encontrado ainda é (e será por um bom tempo) incipiente e inicial, posto que a realidade com essa doença como pandemia no Brasil não passa de 8 meses, assim como o home office em larga escala no serviço público é também muito recente.
Seria necessário, portanto, maior tempo e análise de muitos resultados mais para um maior conhecimento do real panorama e efeitos a médio e longo prazo. Sobre isso, texto da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE), órgão vinculado ao Ministério da Saúde do Brasil, reconhece que:
Devido ao caráter incipiente do avanço científico em covid-19, estudos in vitro, letters, correspondências e opiniões, desde que [os resultados obtidos] trouxessem discussões mecanísticas e clínicas importantes, seriam incluídos [ainda que estivessem no início desses estudos/resultados]. (...) [e,] No caso de haver mais de uma revisão sistemática elegível, a mais recente e completa seria selecionada, desde que metodologicamente correta. (APÊNDICE DAS DIRETRIZES PARA..., 2020, p. 5)
Troque-se o termo “covid” por “teletrabalho” e tem-se perspectivas e sensações bem semelhantes.
É inegável, de fato, que a administração pública brasileira, como um todo, vem colhendo interessantes números de produtividade e de economia nesses tempos de pandemia. Só a União, por exemplo, diz ter economizado mais de 1 bilhão de reais desde o implemento do home office a seus servidores, e sem prejuízo da produtividade. (AGÊNCIA BRASIL, 2020)
Mas e quando o teletrabalho deixar de ser novidade, será que a produtividade dos servidores permanecerá alta? E se começar a causar adoecimento nos servidores por falta de estrutura e/ou cultura adequada? Se essas situações ocorrerem, terá o gestor público a coragem necessária para fazer a correção de rota e assumir a falha do teletrabalho? Ou preferirá ele maquiar dados/vivências para justificar algo que não faz mais sentido? São todas indagações fundamentais e que não costumam ser feitas/pensadas devidamente.
Assim, por tudo o que aqui se apresenta, afirmar categoricamente que o teletrabalho é o futuro do serviço público, que tudo vai mudar e que ele veio pra ficar mostra-se, no mínimo, muito afoito, pois, como dito alhures, ainda falta um longo rio a se transitar, e será necessária uma maturação bem maior do teletrabalho no âmbito nacional ao longo do tempo, sobretudo quando não estiverem mais em vigor as limitações causadas pelo surto do coronavírus. Até lá, tudo que for conclusivo sobre o tema será fruto, no máximo, de perspectivas otimistas e/ou pontos de vista bem intencionados.
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1 “A concepção do teletrabalho é mais pragmática, podendo ser considerado como um instrumento de flexibilidade laboral que permite a externalização das empresas e a redução de seus custos fixos.” [Tradução livre]
2 Art. 3º Sem prejuízo de outros requisitos e condições fixados no exercício das competências definidas neste decreto, a implementação do regime de teletrabalho pressupõe:
§ 1º A fixação e os critérios de mensuração objetiva de desempenho deverão ser reavaliados periodicamente, de forma a garantir o contínuo incremento da produtividade e a adequação do regime de teletrabalho.
3 Art. 6º Os Secretários, Subprefeitos e autoridades equiparadas, na administração direta, e os dirigentes das autarquias e fundações deverão, no âmbito de seus respectivos órgãos ou entidades, adotar, prioritariamente, o regime de teletrabalho para as atividades que, por sua natureza ou meio de produção, sejam passíveis de realização à distância.
4 Art. 14. A inobservância injustificada de requisito ou condição do regime de teletrabalho poderá ensejar, nos termos definidos em portaria da Secretaria Municipal de Gestão e nos atos normativos específicos expedidos pelo Secretário, Subprefeito ou autoridade equiparada, na administração direta, ou dirigente da autarquia ou fundação, e expressamente fixados no plano de trabalho, a caracterização do descumprimento da jornada de trabalho pelo servidor ou empregado público.
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AGÊNCIA BRASIL. Governo economiza R$ 1 bilhão com trabalho remoto de servidores. Infomoney, São Paulo, 25 set. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 nov. 2020.
AMORIM, Ricardo. O prefeito de São Paulo, ... . Postagem de Ricardo Amorim no facebook. Facebook, São Paulo, 16 set. 2020. Disponível clicando aqui . Acesso em: 15 out. 2020.
APÊNDICE das diretrizes para diagnóstico e tratamento da COVID-19. Ministério da Saúde, Brasília, 11 de maio de 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 nov. 2020.
DIRETRIZES para diagnóstico e tratamento de coronavirus. Ministério da Saúde do Brasil, Brasília, 07 maio 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 nov. 2020.
LIMA FILHO, José Sarto Fulgêncio de; BRASIL, Ana Larissa da Silva. O conceito legal de teletrabalho e suas repercussões nos direitos do empregado. Revista Juris UniToledo, Araçatuba, v. 04, nº 01, p. 111-126, jan./mar. 2019. Disponível clicando aqui. Acesso em: 20 nov. 2020.
MCKEEVER, Amy. Coronavírus – O que faz ao Corpo Humano. National Geographic. São Paulo, 24 fev. 2020. Disponível clicando aqui. Acesso em: 17 nov. 2020.
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SÃO PAULO. Casa Civil do Gabinete do Prefeito. Decreto nº 59.755, de 14 de setembro de 2020. Dispõe sobre a reorganização da Secretaria Municipal das subprefeituras, bem como altera a denominação e a lotação dos cargos de provimento em comissão que especifica. Disponível clicando aqui. Acesso em: 10 set. 2020.