Migalhas de Peso

Dos crimes de furto e roubo aos transportes coletivos de passageiros: Existe o dever de indenizar?

O problema é de segurança pública e não pode ser transferido ao empregador/transportador de passageiros.

9/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Há na Justiça do Trabalho vários processos que envolvem o transporte coletivo de passageiros e de cargas, em que é formulado pleito pelo ex-empregado a uma indenização por danos morais e materiais em decorrência de crimes de roubos e/ou furtos praticados por terceiros, popularmente chamados de assaltos durante a jornada de trabalho.

É imperioso que o Judiciário avalie e indague: como poderia a empresa de transporte evitar um crime? Como pode prever que um crime de furto ou roubo irá acontecer contra algum de seus ônibus, em qual dia e local? Como poderia a empresa, ainda que na qualidade de empregadora de motoristas e cobradores, prevenir os crimes de furto e roubo enquanto os ônibus trafegam pelas cidades evitando que esses crimes sejam cometidos?

O problema é de segurança pública e não pode ser transferido ao empregador/transportador de passageiros. Nem mesmo o itinerário do coletivo urbano a empresa tem autonomia para alterar por sua própria deliberação, pois aquele é estabelecido pelo município.

Várias empresas de transporte de passageiros urbanos já adotam medidas preventivas visando trazerem mais segurança para seus empregados e passageiros, tais como investimento em bilhetagem eletrônica; previsão em norma interna determinando que os cobradores mantenham uma pequena e determinada quantia no caixa, devendo o restante do dinheiro arrecado com as passagens ser colocado no cofre instalado nos coletivos; instalação de câmeras internas etc. Todas essas medidas, custeadas pelas empresas, podem ajudar a inibir a ação dos criminosos interessados em dinheiro e objetos de valor, sobretudo dos passageiros.

Contudo, as empresas não têm o poder de impedir que os passageiros paguem as passagens com dinheiro, assim como os motoristas não podem impedir uma pessoa de adentrar o coletivo.

Foge da alçada e competência das empresas de transporte coletivo a adoção de medidas que visem reprimir os crimes de furto e roubo. O fortuito externo exime a empresa de arcar com qualquer indenização, por serem tais crimes estranhos à atividade desenvolvida pela empresa (transporte de passageiros, e não de valores). O fortuito externo é aquele totalmente alheio à organização da empresa e suas atividades.

À luz da teoria da responsabilidade civil subjetiva, uma vez não configurados os três requisitos legais exigidos, dentre eles a culpa do empregador, o nexo de causalidade e a prática de uma conduta Ilícita, é imperioso que se julgue improcedente o pedido de indenização por danos morais formulado numa ação trabalhista, sob pena de violação dos arts. 186, 187 e 927, “caput” do CC. A Constituição da República, em seu art. 7º, XXVIII, é bastante clara ao exigir a comprovação de culpa ou dolo do empregador para que surja o dever de indenizar, além de outros requisitos legais que também devem restar configurados.

E ainda que o magistrado desconsidere a teoria da responsabilidade civil subjetiva e aplique a teoria da responsabilidade objetiva, os crimes de roubo, furto ou incêndio do coletivo configuram caso fortuito externo. Logo, o pedido de reparação civil deveria ser julgado improcedente, por absoluta ausência do nexo de causalidade e não cometimento de ato ilícito pela empresa empregadora.

Consideramos que o fato de transportar pessoas não cria para as empresas de ônibus, para os passageiros ou seus empregados, risco potencial acima da média. Não se trata, portanto, da responsabilidade objetiva, nos termos do parágrafo único do art. 927 do Código Civil. A empresa não age de modo a invadir ilicitamente o patrimônio moral do empregado. Afinal, não se trata de risco ocupacional gerado pela empresa de transporte coletivo. A atividade exercida é o transporte de passageiros, e não de valores, sendo que nesta última o risco de ser alvo de criminosos é inerente à atividade.

O art. 393 do Código Civil diz que o devedor somente responde pelos prejuízos advindos de caso fortuito ou força maior se tiver assumido expressamente esse compromisso. Caso fortuito ou de força maior é o fato necessário cujos efeitos não eram possíveis prever ou impedir. Se os efeitos do fato não podiam ser previstos ou impedidos, há caso fortuito ou de força maior, e não se pode imputar à empresa de ônibus sua culpa. Um raio que despenca sobre uma árvore durante um temporal e atinge um veículo, que se desgoverna e bate em outro, é um caso clássico de caso fortuito que não era possível prever ou evitar.

O art. 403 do CC trata do nexo de causalidade e só há dever de indenizar se houver dano e se houver também a vinculação entre dano e o ato ou atividade praticada. Logo, são excludentes totais do nexo de causalidade: a) a culpa exclusiva da vítima (ou fato exclusivo da vítima); b) caso fortuito e força maior; c) culpa exclusiva de terceiro.

Lembramos ainda da posição jurisprudencial do STF acerca do tema, consolidada na Súmula 229, assim redigida: “Indenização Acidentária - Exclusão do Direito Comum - Dolo ou Culpa Grave do Empregador. A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador.” (grifo nosso)

Nas situações criminosas tratadas nesse artigo, não vislumbramos nenhuma conduta ilícita da empresa contra seus funcionários ou uma conduta que tenha concorrido para a ocorrência do roubo e/ou furto. Não houve dolo ou culpa da empresa empregadora pelos crimes mencionados nesse artigo.

Portanto, não consideramos justo e nem lícito que o Poder Judiciário Trabalhista responsabilize as empresas de ônibus, que efetuam transporte de passageiros (e não de valores), a pagarem indenizações por danos morais aos funcionários, quando eles estiverem trabalhando nos coletivos durante a prática de crimes por terceiros. Aliás, muitas vezes os criminosos não praticam furto ou roubo, mas ateam fogo no coletivo, destruindo-o completamente, sem que qualquer pessoa se fira, entregando um bilhete ao motorista no qual informam que se trata de uma retaliação por parte de presidiários. Isso voltou a ocorrer em setembro desse ano, na região metropolitana de Belo Horizonte, conforme reportagem publicada no jornal O Tempo, no dia 15/9/20.

Segundo a reportagem, “o veículo teria sido queimado como protesto de detentos da penitenciária Nelson Hungria por melhorias no tratamento recebido no complexo.” O ônibus já circulava vazio, quando dois homens invadiram o coletivo e obrigaram o motorista a mudar a rota no fim da noite. Os criminosos obrigaram o motorista a descer e com uso de combustível atearam fogo ao veículo e deixaram um bilhete que dizia: "Queremos que voltem as nossas visitas em todos os presídios e penitenciárias. Visitas sociais e íntimas".

Entendemos que, neste caso, quem deveria indenizar o funcionário que estava trabalhando no ônibus e, inclusive a empresa, seria o próprio Estado, pois se trata de questão de segurança pública, que deve ser garantida pelas autoridades. Transferir mais esse ônus financeiro para os empregadores (empresas de transporte coletivo) gera mais prejuízos e desequilíbrio para o contrato de concessão que foi firmado com o Município, podendo acarretar, inclusive, em elevação do valor das passagens.

Repisa-se: trata-se de uma questão de política pública. Dever do Estado, portanto! Para o direito, um caso fortuito!

Contudo, a jurisprudência trabalhista majoritária, inclusive do TST, vem se posicionando pela condenação das empresas ao pagamento de indenizações por danos morais a motoristas e cobradores, que estavam no ônibus no momento do crime praticado por terceiro(s). Contudo, é possível encontrar decisões na Justiça do Trabalho que isentam as empresas do pagamento de indenização, com as quais concordamos. Vejamos algumas:

“INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – NEXO DE CAUSALIDADE – INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO – ASSALTO – Sem a comprovação do nexo de causalidade entre o ato ilícito imputado à reclamada e o dano sofrido pelo reclamante, não há falar em dever de indenizar. Ademais, a segurança dos indivíduos é de responsabilidade do poder público, não podendo ser deslocado ao setor privado esse ônus. Não é possível a imputação de responsabilidade ao empregador por assalto ao empregado no retorno do trabalho, uma vez que se trata de ato praticado por terceiro, alheio à relação de emprego”. (TRT 12ª R. – RO-V 00443-2003-038-12-00-9 – (14.007/04) – Florianópolis – 3ª turma – relatora juíza Maria Regina Olivé Malhadas – J. 23/11/04)

“DANO MORAL – RESPONSABILIDADE – DANO MORAL – ASSALTO – Por absoluta ausência de culpa imputável ao empregador, impossível atribuir-lhe responsabilidade por eventuais danos morais suportados pelo empregado decorrentes do assalto de que foi vítima (artigo 159 do CCB). A segurança pública incumbência do estado”. (TRT 3ª R. – RO 8308/02 – 7ª turma – rel. juiz Bolívar Viegas Peixoto – DJMG 22/8/02 – p. 15)

Também comungam do mesmo entendimento os Tribunais Regionais do Trabalho em decisões turmárias proferidas nos processos: 0001446-89-2013-5-20-0005 (TRT20); 0057500-83-2009-5-04-0030 (TRT4); 0000086-25-2015-5-06-0172; 00131-2007-003-06-00-8; 0001700-81-2011-5-06-0018 (TRT6).

Já na esfera cível, a jurisprudência dominante é no sentido oposto da jurisprudência majoritária trabalhista. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça posiciona-se no sentido de que roubo praticado no interior de ônibus coletivo constitui fortuito externo, suficiente a romper o nexo causal, não sendo possível, pois, responsabilizar a empresa pelo evento para fins de obtenção de indenização por danos materiais ou morais. Essa é a jurisprudência predominante na Justiça Comum. Portanto, os Tribunais de Justiça costumam isentar as transportadoras de indenizarem pela perda de objetos, de dinheiro e negam pedido de danos morais aos passageiros.

Desde o julgamento do Recurso Especial 435.865/RJ, pela Segunda Seção, ficou pacificado, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que o roubo de carga constitui motivo de força maior capaz de isentar a responsabilidade, considerando que o roubo, por ser equiparado ao fortuito externo, em regra, elide a responsabilidade do transportador, pois exclui o nexo de causalidade, extrapolando os limites de suas obrigações, visto que a segurança é dever do Estado.

Recentemente, o STF, em julgamento realizado na sessão virtual encerrada em 4/9/20, do Recurso Extraordinário (RE) 608.880, com repercussão geral (tema 362), decidiu que o Estado não tem responsabilidade civil por atos praticados por presos foragidos, ou seja, no caso de danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional só é caracterizada a responsabilidade civil objetiva do Estado (artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal) quando for demonstrado o nexo causal entre o momento da fuga e o delito.

No processo julgado pelo STF, o governo de Mato Grosso foi condenado ao pagamento de indenização por danos morais e materiais em razão de latrocínio praticado, por um sentenciado, três meses após ter fugido do presídio onde cumpria pena em regime fechado. O Tribunal de Justiça do MT reconheceu a negligência da Administração Pública no emprego de medidas de segurança carcerária e entendeu que havia nexo causal entre a fuga e o crime.

O governo estadual apresentou recurso ao STF, sustentando que a fuga havia ocorrido em novembro de 1999 e o crime fora praticado em fevereiro de 2000, o que afastaria o nexo causal. Também argumentou o governo do Estado que não poderia ser responsabilizado por crimes praticados por terceiros.

Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento do ministro Alexandre de Morais. Segundo ele, a jurisprudência do Supremo considera necessária a comprovação de causalidade direta e imediata entre a omissão do Estado e o crime praticado para que seja imputada a responsabilidade civil ao Estado. Ele manifestou que, no caso do processo em análise, a fuga do presidiário e o cometimento do crime, três meses depois, sem qualquer relação direta com a evasão, não permite a imputação da responsabilidade objetiva ao Estado prevista na Constituição Federal. Como o crime não foi cometido durante a fuga, não há uma sequência lógica e imediata entre um fato e outro, o que afasta o nexo causal.

Então, foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Nos termos do artigo 37 § 6º da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada”.

Diante de tal decisão do STF, entendemos que não seria correta uma interpretação do Judiciário Trabalhista que viesse a condenar uma empresa de ônibus ao pagamento de indenização por danos morais, ao motorista e/ou cobrador em decorrência de um crime, seja de furto, roubo ou incêndio do coletivo, praticado por um criminoso que, foragido da prisão, adentrou o coletivo logo após a fuga ou 3 (três) meses depois da mesma, e cometeu o crime de roubo dentro do ônibus ou ateou fogo neste, por exemplo.

Mesmo se o Estado fosse isento de responsabilidade, na esfera civil, pelos atos criminosos do presidiário foragido, nos termos do julgamento pelo Pleno do STF do Recurso Extraordinário (RE) 608.880, já na esfera trabalhista, pelo entendimento predominante da jurisprudência laboral, a empresa de transporte de passageiros ainda seria condenada ao pagamento de indenização por danos morais ao seu funcionário que estivesse trabalhando no momento da prática criminosa.

Em arremete, o Poder Público deveria indenizar os passageiros ou empregados da empresa de transporte coletivo pelos atos do criminoso, não importando se praticados logo após a fuga ou 3 meses depois. E uma vez o Estado sendo condenado ao pagamento de indenização por dano moral ao motorista e/ou cobrador que trabalhavam no ônibus no momento do crime, esse é mais um motivo para que não seja imputado à empresa o ônus de também arcar, numa ação trabalhista, com o pagamento de outra indenização por danos morais, o que, ao nosso ver, configuraria bis in idem, uma vez que o fato gerador da indenização é um só: trata-se do mesmo ato ilícito, praticado por terceiro, e não pela empresa ou seus funcionários

 

Paula Veiga Rodrigues do Amaral
Advogada, atuante com foco empresarial (contencioso e consultivo). Graduada pela UFMG. Pós-graduada em Direito Material e Processual do Trabalho pela Faculdade Pitágoras (BH/MG). Palestrante. Escritora de artigos jurídicos. Instrutora de Curso sobre PJE.

Ricardo Calcini
Mestre em Direito pela PUC/SP. Professor de pós-graduação em Direito do Trabalho da FMU. Palestrante e instrutor de eventos corporativos "in company" pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos.

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