A presença de investimentos advindos de Bancos Públicos em empresas privadas, como é o caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) através do seu braço de participações acionárias (BNDESPar), remonta às reformas econômicas da década de 1990. Diferentemente de países que intentaram uma pulverização da participação societária nas empresas estatais para um grande número de acionistas, no Brasil, a atuação conjunta de atores públicos e privados através da venda de blocos de controle nos processos de privatizações auxiliou na consolidação da concentração societária no país1. Um dos principais pontos negativos dessa concentração diz respeito à busca de benefícios e de privilégios por parte dos controladores em contraposição aos demais acionistas2.
No decurso dessa expansão da intervenção estatal na economia, por meio de seu braço financeiro fomentador, verificou-se o fortalecimento dos laços entre governo e pinçadas empresas, concretizando a noção de que os atores políticos possuem o poder de influenciar — por meio de escolhas, por vezes, não tão claras e republicanas — o mercado, ao que se convencionou denominar crony capitalism. A reboque desse estado de mundo, sobrevieram escândalos de corrupção apurados e ratificados no ensejo específicas investigações criminais e administrativas, infligindo tanto no "fomentador" governamental como nas beneficiárias uma enorme crise reputacional e financeira, com efeitos societários de relevo.
Neste sentido, a relação travada entre BNDES e JBS é emblemática e merece ser analisada pela sua projeção multiforme. Infrações administrativas e criminais foram apuradas, ao mesmo tempo em que se verificou um derretimento subsequente do valor de mercado da última. Em números, a JBS, em março de 2017, encolheu de 32,6 bilhões de reais para 16,3 bilhões de reais em maio do mesmo ano, a derivar uma perda de R$ 2,8 bilhões para a BNDES Participações S.A (BNDESPar), acionista minoritária e até então detentora de 21,3 % da participação societária da JBS.
Sem embargo das variantes criminais, administrativas e econômicas experimentadas, de maior relevo para esta análise foi o desencadeamento de um conflito de acionistas na companhia, em que a BNDESPar, principal acionista minoritário da JBS, demandou à Administração da última a convocação de uma assembleia de acionistas para deliberar a instauração de uma ação de responsabilidade pela JBS em face de seus controladores e de seus administradores.
Contudo, a realização da assembleia de acionistas ficou suspensa em decorrência de uma disputa judicial que resultou o procedimento arbitral 94 de 2017 da Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM B3), onde a BNDESPar pleiteava que os controladores da JBS, detentores de 41% da participação societária da empresa, não deveriam possuir direito a voto na assembleia, visto que haveria um explícito conflito de interesses na ocasião dessas deliberações. Como resultado, o procedimento arbitral 94 definiu que os controladores da JBS não poderiam votar em nenhuma assembleia convocada para debater a ação de responsabilidade pela JBS contra seus controladores e seus administradores.
Com a sentença arbitral favorável na CAM B3, a BNDESPar, exercendo sua prerrogativa de acionista, requereu à JBS a convocação de uma assembleia geral extraordinária para deliberar acerca da ação de responsabilidade contra os administradores da companhia. Conforme a ata da assembleia geral extraordinária realizada em 30 de outubro de 20203, foi deliberado, por maioria dos votos presentes, o ingresso de ação de responsabilidade em face dos ex-administradores da companhia. Registra-se que, conforme sentença arbitral, a acionista controladora J&F Investimentos S.A não exerceu seu direito de voto.
Ao que parece, o caso deve caminhar para a condenação se considerado o arcabouço legal a ser conformado à espécie. Vejamos:
A responsabilidade dos administradores frente à sociedade, por força da adoção da teoria organicista pelo ordenamento jurídico pátrio, não representa uma obrigação contratual ou negocial, caracterizando uma obrigação extracontratual ou aquiliana, de forma que não é exigido provisão estatutária a reiterar os deveres legais definidos na legislação de regência, quer específicos ou gerais, para que estes sejam exigidos dos administradores4. Nesta senda, avultam o artigo 1.001 do Código Civil e os artigos 153 e 154 da Lei das Sociedades Anônimas, cujos termos, cogentes por si, definem, como deveres do administrador no exercício das funções de seu cargo, a imprescindibilidade do emprego de cuidado e diligência esperada de todo homem ativo e probo na administração de seus próprios negócios.
Assim, os administradores não são pessoalmente responsáveis quando agem dentro dos limites estabelecidos pela lei e por suas atribuições contratuais, mesmo que eventualmente ocasionem prejuízos à sociedade. Ao revés, segundo o texto do artigo 158 da LSA, ao descumprirem os programas autoritativos que expressamente lhes contingenciem ou mesmo, ao agirem dentro de suas atribuições, com culpa e dolo, impingirem responsabilidades incompatíveis com o grau de diligência incorporado à função exercida, os administradores poderão ser chamados a, pessoalmente, responder pelos danos que causarem. E, se assim se suceder, a responsabilidade civil dos administradores se materializa na obrigação de indenizarem aqueles que sofreram perdas e danos derivados dessas condutas.
O modelo de responsabilização civil dos administradores parte, mais detalhadamente, de duas categorias, singularizadas pela propriedade do patrimônio atingido pela conduta ilícita, a saber: a ação social e a ação individual. A primeira, de titularidade da companhia ou, substitutivamente, dos acionistas, e a segunda, de propositura dos acionistas ou dos terceiros prejudicados. De acordo com o comercialista Modesto Carvalhosa5, a ação social intenta o reestabelecimento do equilíbrio interno da empresa, auferindo desta os ganhos do processo e as consequentes reparações. Por sua vez, a ação individual, prevista no § 7º do artigo 159 da LSA, que independe de qualquer deliberação assemblear, objetiva a satisfação de interesses pessoais dos acionistas e possui como pressuposto o favorecimento judicial de seu propositor impassível de lesar o direito dos demais acionistas. . Diante, pois, de seus distintos objetos, a ação social não suprime a possibilidade de propositura das ações individuais.
Merece destaque o fato de que a LSA, conforme leciona a doutrina, não conjectura a responsabilização da sociedade nessas ações, sendo os responsáveis pelos prejuízos dos acionistas apenas os administradores e os controladores da empresa. Entretanto, especificamente devido à influência da legislação estadunidense, vislumbra-se o advento de algumas demandas por parte de acionistas inspirados nas class action lawsuits (ações coletivas) e na lei 7.913/89, intentando a indenização, em face da companhia, pelos prejuízos que experimentaram. Ressalta-se que a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, no formato disposto na lei 7.913/89, é de competência do Ministério Público, que, sem prejuízo da ação de indenização dos prejudicados, deverá, de ofício ou por provocação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em casos de operações ilegais ou irregulares, adotar as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos e para garantir a indenização, pela própria companhia, dos danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado.
É bem verdade que o combate à corrupção presenciado nos recentes anos rompeu importantes paradigmas no tocante à responsabilidade penal de altos executivos de companhias no âmbito nacional. Infelizmente, a responsabilização civil deles por danos ocasionados no exercício de suas funções não seguiu o mesmo caminho, encontrando sérias dificuldades para ser colocada em prática, como a comprovação da existência de culpa ou de dolo do administrador, a aprovação por parte dos acionistas controladores da propositura de uma ação social, os danos reputacionais à sociedade envolvida, a concentração de 5% do capital social para promoção da ação social ut singuli derivada, entre outros.
Em tempos de compliance cada vez mais fundamental para o ambiente societário, o comprometimento da alta direção de uma companhia com as boas práticas de governança corporativa e com a ética (tone at the top) configura importante pilar em qualquer programa de integridade. Os deveres de lealdade, de informação, de diligência dos administradores e dos controladores, além de essenciais, transmitem o apreço e o comprometimento de tais sujeitos com acionistas minoritários e com o mercado de valores mobiliários como um todo. Assim, o amadurecimento jurídico das ações de responsabilidade civil em face dos administradores representa mecanismo crucial para o enforcement das regras societárias no mercado de capitais, para a justiça e para o equilíbrio das relações dentro e fora da companhia.
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1 LAZZARINI, Sérgio; MUSACCHIO, Aldo. O Leviatã nos negócios no Brasil: práticas passadas, mudanças futuras. In: SELIGMAN, Milton (Org.); MELLO, Fernando (Org.). Lobby desvendado: democracia políticas públicas e corrupção no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Record. p. 67–96. 2018.
2 STULTZ, R. M. Managerial Control of Voting Rights: Financing Policies and Market of Corporate Control. Journal of Financial Economics, v. 20, p. 25-54, 1998.
3 Disponível aqui. Acesso em 16/11/2020.
4 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). São Paulo: Saraiva, 2009.
5 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com modificações das Leis 9.475, de 5 de maio de 1997, 10.303, de 31 de outubro de 2001, e 11.638, de 28 de dezembro de 2007. 4 ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.
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*Victor Henriques Guimarães Taranto é advogado júnior no escritório Müller, Novaes, Giro e Machado Advogados, pós-graduando em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).