Migalhas de Peso

Nova lei de trânsito e o punitivismo tosco

Além de aumentar validade da carteira de habilitação e número de pontos para suspensão, norma supostamente evitaria que criminosos do trânsito fiquem impunes. Mas não é mais que jogada midiática e de populismo penal

11/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 14/10/20 foi publicada a mais nova tentativa bolsonarista de utilizar o Direito Penal como arma midiática, a lei 14.071/20. Tal legislação é impulsionada pelo chamado “populismo penal”, calcado este em um aumento da popularidade política de determinado agente em decorrência do engajamento no endurecimento das normas penais.

A despeito de inúmeras críticas já existirem acerca da efetividade do direito penal, ou ao menos do aumento e endurecimento de penas como forma de gerar maior segurança, sendo certo que atualmente vê-se a clara falência do sistema penal como um todo, ainda existe um interesse midiático muito grande acerca do “teatro” que envolve a punição dos infratores. Uma das áreas em que o impulso midiático faz mais pressão pelo aumento da punitividade penal é a seara do Código de Trânsito Brasileiro.

Nesse contexto, a lei 14.071/20, dentre seus variados temas – como aumento do prazo de validade da carteira nacional de habilitação (que pode chegar a 10 anos, a depender da idade do cidadão) e o aumento dos pontos necessários para desencadear o processo de suspensão de perda da carteira nacional de habilitação (que pode receber até 40 pontos, a depender da gravidade das infrações cometidas) – objetivava impedir a substituição da pena corpórea (leia-se, privativa de liberdade), por penas restritivas de direito. Pelo menos é isso que foi amplamente noticiado nos meios de comunicação oficiais do governo (site do Senado e da Presidência), bem como em diversos sites da mídia em geral.

Ocorre que, ao contrário do que foi colocado, existe uma alta probabilidade de que a nova lei não altere em nada a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos. Explico. A lei publicada altera o Código de Trânsito Brasileiro para incluir o seguinte artigo:

“Art. 312-B. Aos crimes previstos no § 3º do art. 302 e no § 2º do art. 303 deste Código não se aplica o disposto no inciso I do caput do art. 44 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)”

Ora, do que é claramente visto da leitura literal da norma é a inaplicabilidade apenas  do requisito disposto no inciso I do art. 44 do Código Penal (esse artigo como um todo trata sobre a possibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos) aos crimes de homicídio culposo na direção de veículo automotor sob a influência de álcool ou substância psicoativa (art. 302, §3º, CTB) e de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor qualificada pela gravidade da infração (grave ou gravíssima) e pela influência de álcool ou substância psicoativa. Frise-se, dois crimes culposos.

O inciso que a norma tornou inaplicável (art. 44, I, CP), para desespero da ala punitivista, é justamente aquele que faz referência a um requisito objetivo para a substituição por pena restritiva de direito, qual seja, que exige que o infrator seja apenado no máximo até 4 anos por crime doloso cometido  sem violência ou grave ameaça, ou qualquer que seja a pena se o crime cometido for culposo. Ou seja, não era o inciso I, que foi tornado inaplicável pela nova lei, que era o cerne e espaço de apreciação subjetiva do juiz sobre o cabimento ou não de substituição por pena restritiva de direitos. O inciso que de fato possui cabimento para permitir ou não a conversão da pena corpórea em pena restritiva de direito por meio de análise do magistrado é o inciso III do art. 44 do CP (esse inciso versa sobre elementos como culpabilidade, antecedentes e circunstâncias do crime), inciso esse que, diga-se de passagem, continua em pleno vigor.

Sabe-se, pelo que foi divulgado em inúmeros jornais e mesmo pelos sites oficiais do governo, que a intenção era tirar a possibilidade de conversão de pena privativa de liberdade em restritiva de direito para os crimes culposos cometidos sob a influência do álcool, no entanto deveria a redação ter sido clara nesse sentido, sob pena de ser atécnica e inapta para produzir efeitos. Poder-se-ia argumentar no sentido de que o que a lei quis dizer foi que a possibilidade veiculada pelo inciso I de conversão de pena restritiva de liberdade em crimes culposos é que foi tornada inaplicável – mas não foi isso que a lei estampou – o que impede a adoção de tal interpretação, uma vez que a legislação penal deve ser interpretada de forma restritiva, sem ampliar a incidência da norma penal para além do quanto exposto no texto aprovado.

Ou seja, do exposto nota-se que a legislação aprovada é atécnica, maculando sua eficácia. Ora, é sabido que a interpretação na seara penal se dá de maneira restrita, literal, justamente por se tratar de seara que lida com as liberdades mais fundamentais do ser humano, logo, não há como pregar eventual eficácia de uma norma que, a despeito de ter anunciado determinada diretriz penal, não a promoveu de fato.

Não obstante, vale lembrar também acerca do Princípio da Individualização da Pena, este que também incide na atuação do legislador – impedindo-o de adotar condutas que dificultem a boa dosagem da pena segundo as peculiaridades do caso concreto. Nesse sentido, cumpre ressaltar posição pacífica na jurisprudência acerca da inviabilidade de predeterminar-se o regime de cumprimento da pena por fixação legal peremptória.

O que fica de lição do quanto exposto é que o direito penal não é seara para jogadas midiáticas arrecadadoras de simpatia popular, mas sim um ramo do direito que deve ser respeitado por cuidar da barreira final que separa o cidadão das garras punitivas do Estado. Vale pontuar, também, que é importante estudar-se o direito antes de tentar brincar com ele, principalmente porque ele não existe apenas para fazer-se a vontade de déspotas obscurantistas.

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*Paulo Schwartzman é escritor e estudioso na área de Estudos Culturais, Estudos Brasileiros e Direito, é também servidor público com especialização na área de Direito. Já trabalhou em diversas instituições públicas e privadas do sistema de Justiça, como em escritórios de advocacia e Defensoria Pública. Atualmente labora como assessor de juiz no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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