Prévio esgotamento da via administrativa como condição para a ação penal nos crimes contra a ordem tributária
Suzane de Farias Machado Moraes*
Sumário: 1. Introdução. 2.Alguns aspectos dos crimes contra a ordem tributária. 3. O lançamento tributário. 4. A ampla defesa na esfera administrativa. 5. A extinção da punibilidade. 6. O art. 83 da Lei 9.430/96. 7. A independência das instâncias administrativa e penal. 8. A prescrição 9. Conclusão.
1. Introdução
É sabido que o aumento de tributos, tem como finalidade proporcionar ao Estado condições de suportar os pesados custos de Administrações desastrosas, desmandos de governantes, corrupção e principalmente para pagar os pesados encargos das dívidas interna e externa.
A questão da criminalização do ilícito tributário é colocada pelo Governo como necessária ao combate a sonegação, justificando assim a aprovação de leis mais severas contra as condutas dos sonegadores de impostos.
Sonegação existe, mas de igual forma existem também arbitrariedades e abusos na cobrança de impostos, tanto que muitos contribuintes já não sabem como se conduzir sem correr o risco de serem processados penalmente por crime contra a ordem tributária.
Em artigo sobre o tema, Hugo Machado cita conceituado penalista espanhol que diz em monografia a respeito do presente e do futuro do ilícito fiscal, "que somente em duas circunstâncias se explica a criminalização do ilícito tributário. Na primeira delas, o sistema tributário é tão bem elaborado, tão justo, com uma carga tributária tão bem distribuída, que não se pode admitir alguém a descumprir o seu dever tributário, sendo correto, pois, punir exemplarmente o transgressor desse dever. Na segunda, o sistema tributário é tão complicado e tão injusto que ninguém quer pagar seus tributos, sendo necessário, pois, implantar-se o terrorismo fiscal, único meio de compelir, com a ameaça de prisão, o contribuinte a fazer os seus pagamentos."
Com certeza nosso sistema se assemelha ao segundo tipo descrito, ou seja, é injusto e complicado. Temos um Estado que não cumpre com a sua parte, principalmente no que diz respeito ao oferecimento dos serviços essenciais como saúde, educação e segurança, e uma carga tributária altíssima. Consequentemente, ninguém quer pagar o tributo que lhe é cobrado. Resta então para o Estado, fazer valer a cobrança mediante implantação do terror fiscal.
Com a criminalização do ilícito fiscal, temos nos deparado com questões bastante polêmicas, como é a que trata da necessidade ou não do prévio esgotamento da instância administrativa para o início da ação penal nos crimes contra a ordem tributária, objeto de grande divergência tanto na doutrina como na jurisprudência.
O artigo 83 da Lei 9.430 de 27.12.96, que estabeleceu a decisão final na esfera administrativa como condição para o encaminhamento da representação fiscal ao Ministério Público criou mais polêmica ainda.
No presente estudo, analisaremos o porque de ser indispensável aguardar-se o fim do procedimento administrativo fiscal para a interposição da ação penal, com alguns aspectos relevantes, bem como a posição jurisprudencial sobre o assunto.
2 – Crimes contra a ordem tributária
A lei 8.137/90, que instituiu os crimes contra a ordem tributária, tratou de todos os tipos penais definidos na Lei 4.729/65, e ainda cuidou de agravar a ameaça penal nos crimes tributários. Disciplinou a mesma matéria da lei anterior, só que de forma mais abrangente e mais severa. Além do que, enquanto os chamados crimes de sonegação fiscal, definidos na Lei 4.729/65 configuravam crimes de mera conduta, os da nova Lei configuram crimes de dano, onde é o o resultado que importa para configuração do crime.
A Lei nº 8.137/90 assim estabelece:
"Art. 1º. - Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada ou fornecê-la em desacordo com a legislação."
O legislador exigiu para a configuração do crime do art. 1º., a efetiva supressão ou redução do tributo. Tornou-o crime material ou de dano. É crime material, porque só se consuma com o resultado. Para acontecer o crime é necessário a supressão ou redução do tributo devido, a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.
Já nos crimes descritos no art. 2º. da mesma Lei, tal exigência não foi feita.
Senão vejamos:
Art 2º. - Constitui crime da mesma natureza:
I – fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmante, de pagamento de tributo;
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição sociela, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação que deveria recolher aos cofres públicos;
III – exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV – deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V – utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Os crimes descritos nos incisos do art. 2º. Acima transcrito, são formais, a simples ação ou omissão do sujeito, bastam para sua configuração.
Mesmo tratando-se de crimes formais ou de mera conduta, tanto quanto os crimes materiais definidos no art. 1º, os do art. 2º da lei 8.137/90 necessitam da existência de um tributo devido. É preciso que exista o crédito tributário para que se possa falar em condutas tendentes a não pagá-lo ou pagá-lo a menor. É necessário também que o resultado tenha sido obtido por meio de fraude e que o sujeito tenha a intenção de não pagar o tributo ou pagá-lo a menor, o que os torna dolosos.
Como bem ensina Antônio Corrêa, além da vontade livre e consciente de praticar o fato, sabendo da ilicitude e antijuridicidade, há como integrante do tipo o plus, que é o desejo interno de não pagar o tributo, o qual se concretiza mediante fraude.
O dolo específico, como bem destaca Hugo Machado, "é essencial para a configuração do crime", sendo portanto, "imprescindível a prévia decisão administrativa sobre o tributo devido."
Se para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, materiais ou formais, é preciso que exista um tributo devido, faz-se também indispensável ter havido o lançamento.
3 – O lançamento tributário
Segundo Hugo Machado "a relação tributária nasce com o acontecimento do denominado fato gerador do tributo. Nasce desprovida de liquidez e certeza, que adquire com sua liquidação, ou acertamento. Essa liquidação, ou acertamento, que compete privativamente à autoridade administrativa, presta-se para constituir o crédito tributário e dá-se o nome de lançamento", que é, segundo o art. 142 do CTN o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Em outras palavras, o lançamento tributário é um ato proferido pela autoridade fiscal resultante de um procedimento necessário para liquidar ou acertar a obrigação tributária, baseado nos critérios jurídicos do próprio Fisco.
O lançamento é ato declaratório da obrigação tributária e constitutivo do crédito tributário.
A obrigação tributária precede ao lançamento, mas só produz efeitos a partir dele. Sem o lançamento, não há que se falar em liquidez e certeza do crédito tributário.
Importante salientar que apenas a autoridade administrativa tem competência para proceder o lançamento. É ela que verifica a ocorrência do fato, realiza as condutas necessárias e examina os livros e documentos fiscais, com a finalidade de apurar tributo devido. O lançamento é, portanto, ato privativo da autoridade fiscal, e é ela quem diz se existe tributo, qual o seu valor e notifica o contribuinte, constituindo assim o crédito tributário.
Depois de efetuado o lançamento, o crédito ainda pode ser desconstituído. Está sujeito a alterações devido a garantia constitucional da ampla defesa, que dá ao contribuinte o direito ao contraditório se entender que o tributo não é devido, ou não concordar com o valor apurado.
A exigibilidade definitiva do crédito tributário somente ocorre quando esgotadas todas as instâncias administrativas e todos os meios e recursos cabíveis para discutir a cobrança.
Portanto, só se pode cogitar de crime contra a ordem tributária depois de esgotadas todas as instâncias administrativas em que o sujeito passivo contesta o lançamento. E mais, que desconstituído o lançamento, não há que se falar em crédito tributário e muito menos em crime contra a ordem tributária.
4. A ampla defesa na esfera administrativa
A Constituição de 1988 encartou o processo administrativo dentre os direitos e garantias individuais ao estabelecer em seu art. 5º., inciso LV, que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Com isso, pretendeu o legislador constituinte trazer para o processo administrativo garantia que na Constituição de 1969 só era conferida ao processo judicial, representando verdadeiro avanço, na medida em que os princípios do contraditório e da ampla defesa são essenciais ao Estado Democrático, e somente assim, se pode considerar a existência de isonomia, de equilíbrio, nas relações decorrentes de conflitos entre Estado e contribuinte.
Pelo princípio da ampla defesa entende-se " o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade."
Por contraditório, diz Nelson Nery Júnior "deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis."
O contraditório está inserido dentro da ampla defesa, "quase que com ela se confunde integralmente na medida em que uma defesa hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se –lhe ou de dar-lhe a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor".
É fundamental o destaque ao direito de defesa do contribuinte, pois ele é indispensável ao lançamento. Com o auto de infração começa a fase contenciosa administrativa, onde o sujeito passivo da obrigação pode exercer o seu direito de defesa.
Feito o lançamento, com a notificação regular do sujeito passivo e havendo decorrido todos os prazos e esgotados todos os recurso cabíveis, com sentença final transitada em julgado, estará definitivamente constituído o crédito, podendo então ser exigido pela fazenda pública.
Admitir a instauração do processo penal, antes de concluído o procedimento administrativo, é negar a garantia da ampla defesa ao contribuinte.
5. A extinção da punibilidade
Embora o crime fiscal seja figura relativamente nova no nosso sistema jurídico, sua legislação já sofreu algumas alterações, como é o caso da lei que regula a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo. Aliás, como afirma com muita propriedade Hugo Machado, tanta inconstância legislativa "demonstra a falta de convicção do legislador a respeito dessa opção de política tributária, que tem sido objeto de intermináveis controvérsias no plano doutrinário."
Hoje a extinção da punibilidade pelo pagamento está presente no ordenamento jurídico, no art. 34 da Lei 9.249/95 que assevera:
Art. 34 – Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº. 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive assessórios, antes do recebimento da denúncia.
Com efeito, agora, sendo efetuado o pagamento do tributo ou contribuição, antes do oferecimento da denúncia, fica livre da punibilidade o contribuinte.
A extinção da punibilidade pelo pagamento tem sido defendida, principalmente, porque serve de estímulo ao pagamento do tributo, que é exatamente a finalidade da criminalização do ilícito fiscal. É evidente que a intençao do Estado, ao tornar crime o não pagamento do tributo foi aumentar a arrecadação utilizando a intimidação como instrumento. Além disso, ao mesmo tempo que a extinção da punibilidade pelo pagamento atende o Estado é também favorável ao contribuinte que, tendo contra ele decisão final administrativa, tem a opção de pagar e evitar ação penal contra si. Até porque, se o pagamento de nada lhe adiantasse, ele não o faria.
Entretanto, para fazer valer o direito de defesa do contribuinte em procedimento fiscal, e também a opção da extinção da punibilidade pelo pagamento, é indispensável o prévio esgotamento da via administrativa para o oferecimento da denúncia, como podemos observar na ementa desse julgamento do TRF da 1ªRegião: "1. O tipo penal descrito no art. 1 da Lei nº. 8.137/90, para que se possa configurar exige, obrigatoriamente, o término da apuração do agir do contribuinte e a sua consequência na esfera tributaria. 2. Denúncia oferecida antes do término do processo fiscal que apresenta ausência de interesse de agir do Ministério Público Federal – carência de ação. 3. Examinando-se a questão do benefício outorgado pela Lei 8.137/90 – Extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos – vigente na hipótese, porque ocorrido o fato antes da vigência da Lei nº. 8.383/91, verifica-se que a denúncia "ante tempus", por via oblíqua, impediu que pudesse o paciente utilizar-se do favor fiscal."
Como se vê, o oferecimento da denúncia antes do fim do procedimento administrativo, impede a utilização do benefício da extinção da punibilidade.
Prevalecendo o entendimento de que a denúncia pode ser oferecida independente do processo administrativo, pois as instâncias são autônomas, nenhum contribuinte, principalmente aqueles de boa fé e preocupados com a moral, vai discutir o crédito administrativamente. Vai pagar logo para não correr o risco de perder o direito ao benefício da extinção da punibilidade, pois o MP poderá a qualquer tempo denunciá-lo e o benefício só pode ser aproveitado antes da denúncia.
Se ao tomar conhecimento de um procedimento fiscal, o Ministério Público pode intentar de logo a ação penal, não resta outra opção ao contribuinte que não a do pagamento, mesmo não sendo devedor do tributo cobrado.
Ao ser autuado, mesmo sendo indevida a cobrança e o sujeito não tendo dúvida da sua vitória na instância administrativa, não poderá recorrer sem o risco de ver intentada ação penal contra si.
Admitir a denúncia antes do término do processo administrativo, pode até atender ao Estado, que estará arrecadando, mas o direito as garantias constitucionais do contribuinte estará sendo cerceado.
E não se pode aceitar o argumento de que sendo indevido o tributo ao final restará comprovado e a ação penal ficará prejudicada. Não é possível admitir-se que alguém seja submetido ao constrangimento de um processo penal, antes mesmo de saber se cometeu o delito a ele imputado.
6. O art. 83 da Lei 9.430/96
O Ministério Público, ao oferecer a denúncia, antes de realizado o lançamento tributário definitivo, atua de forma equivocada. Para a instauração da ação penal, é necessário o conhecimento do teor da decisão administrativa final, visto que, somente ela tem a capacidade de fornecer os elementos que darão cabimento à denúncia.
Sem a definição da existência do tributo devido, falta a denúncia requisito básico, falta a ela justa causa.
Portanto, a denúncia é inepta se instaurada antes do término do procedimento administrativo fiscal.
Contudo, não sendo esse o entendimento adotado pela maioria dos Tribunais Superiores e, provavelmente, com a intenção de encontrar a solução para a divergência acerca do momento certo para o oferecimento da denúncia nos crimes contra a ordem tributária, surgiu o art. 83 da Lei nº 9.430/96, que estabelece:
"Art. 83 - A representação fiscal para fins penais, relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos artigos 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência do crédito tributário correspondente."
Embora pareça claro que para instauração da ação penal é necessário que o tributo tenha sido julgado devido pela autoridade administrativa, em decisão final, a interpretação do artigo em comento tem sido no sentido de que apenas rege atos da administração, que as instâncias são autônomas, portanto, a instância administrativa não constitui obstáculo para o oferecimento da denúncia por parte do Ministério Público. Alega-se que não o referido artigo não criou condição de procedibilidade para a instauração da ação penal, visto que o MP é independente.
A esse respeito, o Ministro Edson Vidigal observa que "não se trata, a toda evidência, de cerceamento da ação institucional do Ministério Público. O que a lei restringe é a ação da repartição fazendária, proibida agora...de remeter papéis para fins de denúncia, ao Ministério Público, enquanto não se concluir, no processo administrativo, sobre a existência ou não da obrigação tributária. Isto é, o crime em tese contra a ordem tributária somente despontará, em princípio, configurado ao término do procedimento administrativo. Não é mais um simples auto de infração, resultante quase sempre de apressadas conqaunto tensas inspeções, o instrumento com potencialidade indiciária suficiente para instruir denúncia criminal."
O Ministério Público, diante da edição do referido artigo, suscitou a sua inconstitucionalidade, arguindo o conflito com o art. 129, inciso I, da Constituição, o qual estabelece ser função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei, tendo a decisão liminar, abaixo transcrita, sido proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1571-1/DF:
"Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei nº 9.430 de 27.12.1996, art. 83. 3. Argüição de Inconstitucionalidade da norma impugnada por ofensa ao art. 129, I, da Constituição Federal, ao condicionar a notitia criminis contra a ordem tributária à decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário, do que resultaria limitar o exercício da função institucional do Ministério Público para promover a ação penal pública pelas práticas de crimes contra a ordem tributária. 4. Lei nº 8.137/1990, arts. 1º e 2º. 5. Dispondo o art. 83, da Lei nº 9.430/1996, sobre a representação fiscal, há de ser compreendido nos limites da competência do Poder Executivo, o que significa dizer, no caso, rege atos da administração fazendária, prevendo o momento em que as autoridades competentes dessa área da Administração Federal deverão encaminhar ao Ministério Público Federal os expedientes contendo notitia criminis, acerca de delitos contra a ordem tributária, previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/1990. 6. Não cabe entender que a norma do art. 83 da Lei nº 9.430/1996, coarcte a ação do Ministério Público Federal, tal como prevista no art. 129, I da Constituição, no que concerne à propositura da ação penal, pois, tomando o MPF, pelos mais diversificados meios de sua ação, conhecimento de atos criminosos na ordem tributária, não fica impedido de agir, desde logo, utilizando-se, para isso, dos meios de prova a que tiver acesso. 7. O art. 83, da Lei nº 9.430/1996, não define condição de procedibilidade para a instauração da ação penal pública, pelo Ministério Público. 8. Relevância dos fundamentos do pedido não caracterizada, o que é bastante ao indeferimento da cautelar. 9. Medida cautelar indeferida. (ADIN 1571-1/DF, STF, PL, REL. MIN. NÉRI DA SILVEIRA).
A decisão na ADIN foi no sentido de não suspender a vigência do art. 83 da Lei 9.430/96, sob o fundamento de que não está em conflito com a norma constitucional.
Baseia-se na tese de que a ação penal nos crimes contra a ordem tributária é pública incondicionada e por isso o Ministério Público não pode ficar impedido de atuar. Afirma que a definição do ilícito tributário não é pressuposto de procedibilidade para a instauração da ação penal, porque as instâncias são autônomas. Que a norma do art. 83 apenas estabelece a conduta da autoridade fiscal, não impedindo a ação do MP, que poderá oferecer a denúncia antes da representação da autoridade administrativa.
Essa decisão, usando expressão de Hugo Machado, pode ser considerada "salomônica", pois não suspendeu a vigência do artigo 83, da Lei 9.430/96, mas também não retirou a possibilidade do Ministério Público oferecer a denúncia antes de concluído o procedimento administrativo.
O que , na verdade, torna a norma inútil se o MP puder intentar a ação penal a qualquer tempo, ou seja, mesmo com o processo administrativo em andamento e assim requisitar os documentos que achar necessários para isso.
Não é razoável admitir que a autoridade administrativa esteja impedida de remeter representação ao Ministério Público para propor a ação penal em crime contra a ordem tributária, antes da decisão final no procedimento administrativo fiscal, mas tenha o dever de fornecer ao MP as informações e documentos sobre o fato.
O ponto fundamental da questão é que para a configuração dos crimes descritos no art. 1º. da Lei 8.137/90 e mesmo os do art. 2º. é imprescindível que exista tributo ou contribuição efetivamente devidos.
Se ainda não houve a definitiva declaração da existência ou não de responsabilidade de natureza tributária, não há dívida a pagar e, portanto, não há que se falar em delito, porque não existiu tributo ou contribuição.
Para isso é que foi editada a norma do art. 83 em comento. Exatamente para demonstrar que o momento exato para a remessa da documentação necessária à instauração da ação penal por parte do Ministério Público é o da definitiva constituição do crédito. Se não fosse com esse fim, e se entendermos que não vincula a atuação do Ministério Público, estaríamos tornando-a uma norma sem utilidade.
Se o MP pode instaurar a ação penal quando achar conveniente, e se ele pode solicitar de quem for, aí incluída a autoridade administrativa, todos os documentos necessários á instauração do processo, para que serviria o art. 83? Seria norma sem utilidade nenhuma e não é possível crer que o legislador edite norma inútil.
O que nos parece evidente, é que a intenção do legislador foi exatamente colocar o fim do processo administrativo como termo inicial para o oferecimento da denúncia pelo MP.
E mais, é um equívoco imaginar que essa lei limita a ação institucional do Ministério Público. Nesse ponto, observa muito bem o Ministro Edson Vidigal, quando diz que ela faz é "agregar à nobre ação institucional do Ministério Público um valor chamado eficácia, no sentido de praticidade e objetividade." "Nenhuma ação de agente público algum pode prescindir de eficácia. Não agir com eficácia é desperdiçar tempo no serviço público. E como quem paga a conta é sempre o contribuinte, não agir eficazmente é desperdiçar dinheiro público."
Se o art. 83 da Lei 9.430/96 estabelece que o momento para o encaminhamento dos papéis necessários para que o Ministério Público ofereça a denúncia se dá somente após a decisão final na esfera administrativa, é porque não deseja que a ação penal seja instaurada antes do final do processo administrativo, e sendo assim, é claro que a finalidade do referido artigo foi criar uma condição de procedibilidade para a ação penal. Esta só pode ser instaurada quando concluído definitivamente o procedimento administrativo e declarada a existência do crédito.
7. A independência das instâncias administrativa e penal
Como demonstrado anteriormente, a independência das esferas administrativa e penal é um dos principais, senão o principal fundamento utilizado para a defesa do cabimento da ação penal independente do julgamento final administrativo. Argumenta-se que o Ministério Público não está vinculado a decisão administrativa para a propositura da ação penal, e que a existência de recurso administrativo, impugnando o lançamento dos tributos não impede a propositura da denúncia.
Tese que, infelizmente, vem sendo utilizada como fundamento das decisões sobre crimes fiscais, como se pode observar da seguinte ementa: "As instâncias penal e administrativa são, em princípio, autônomas, inexistindo para a "persecutio criminis" condição de procedibilidade ou questão prejudicial decorrente do disposto no art. 83 da Lei nº. 9.430/96."
É equivocado o uso do argumento de que as instâncias são independentes. Só quem pode dizer que alguém é ou não devedor de tributo é a autoridade administrativa. Ou seja, ninguém, ou nenhuma outra autoridade tem competência para proceder o lançamento. Isso não significa que a instância penal dependa da administrativa para atuar. O que depende é a configuração do crime, ou seja, o crime contra a ordem tributária só está configurado, após a decisão final da autoridade administrativa que diz que aquele tributo é devido.
Como para configuração de crime contra a ordem tributária, é necessária a existência de um tributo, torna-se necessário que o MP espere que a autoridade fiscal diga que o sujeito é devedor do tributo, para a partir daí proceder o oferecimento da denúncia. Antes disso falta-lhe justa causa para agir.
No julgamento do Habeas Corpus 81.611-DF o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, colocou exatamente a questão da decisão administrativa ser condição para a instauração da ação penal e que a configuração do crime está a depender de decisão de autoridade diversa da penal. Seu voto foi no "sentido de que, nos crimes do artigo 1º. Da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, sem a qual a denúncia deve ser rejeitada, uma vez que a competência para constituir o crédito tributário é privativa da administração fiscal, cuja existência ou montante não se pode afirmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final do processo administrativo. O Min. Pertence salientou, ainda, que a circunstância de uma decisão administrativa ser condicionante da instauração de um processo judicial não ofende o princípio da separação e independência dos Poderes , haja vista que a punibilidade da conduta, quando não há tipicidade, está subordinada à decisão de autoridade diversa do juiz da ação penal."
É bom destacar que, sendo a exigência fiscal impugnada pelo contribuinte, e ao final confirmada a sua inexistência, ilegalidade ou inconstitucionalidade, não se pode cogitar de crime, sequer, em tese. Não é possível portanto, falar-se em ação penal. Faltaria objeto para a instrução criminal. Se a apuração do tributo ou contribuição está dependendo de decisão no processo administrativo, em que são garantidos o contraditório e a ampla defesa, não se pode sujeitar o contribuinte, que está no exercício regular de garantias constitucionais, a um processo penal. Até porque, poderíamos nos deparar com julgamentos contraditórios onde, por uma voz o Estado diz que o contribuinte nada lhe deve e por outra o condena a uma pena por deixar de pagar ou recolher tributo. Que tributo?. O Direito não pode comportar uma contradição assim, ainda que em nome de uma autonomia dos ramos jurídicos.
O argumento da separação das instâncias não se presta para justificar a instauração de um processo penal em crimes contra a ordem tributária. É indispensável que se aguarde a decisão administrativa definitiva, quando ainda pendente recurso, pois o crédito em questão ainda se encontra com a sua exigibilidade questionada e quem resolve essa questão é a autoridade administrativa. Só ela tem competência para dizer que alguém é devedor de tributo.
Não é razoável admitir-se a instauração de processo penal, por crime contra a ordem tributária, se a própria administração ainda não afirmou a existência do tributo, sua supressão ou redução, mesmo porque ainda se encontra em curso o processo administrativo onde se discute o crédito.
8. A prescrição
Tese também utilizada pelos que defendem ser possível o oferecimento da denúncia antes mesmo do término do processo administrativo é a da prescrição. Argumento esse, claramente equivocado. Se entendermos que só após o término do procedimento administrativo fiscal é que o Ministério Público pode instaurar a ação penal, também é lógico entender-se que a prescrição só se inicia à partir daí.
Em debate por ocasião do julgamento da ADIn 1.571-1/DF, o Ministro Carlos Velloso observou, com muita propriedade, "que a prescrição penal, no caso, somente começa a correr no momento em que o procedimento administrativo fiscal chega ao fim. É que somente aí é que nasce para o Estado, assim para o Ministério Público, o direito de propor a ação. Tem aplicação, então, o princípio da actio nata, mais velho que a Sé de Braga."
O princípio que estabelece que a prescrição não corre enquanto não decidida em outro processo matéria da qual dependa a configuração do crime (art. 116, do Código Penal) se aplica aos crimes contra a ordem tributária.
9. Conclusão
Por todo o exposto, podemos concluir que:
a) Para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, materiais ou formais, é preciso que exista um tributo devido, e portanto, faz-se indispensável , ter havido o lançamento.
b) Admitir a instauração do processo penal, antes de concluído o procedimento administrativo, é negar a garantia da ampla defesa, pois o contribuinte ao ver-se ameaçado penalmente, certamente vai apressar-se e efetuar o pagamento do tributo, mesmo que este seja indevido, para não correr o risco da condenação.
c) Para fazer valer o direito de defesa do contribuinte em procedimento fiscal, e também a opção da extinção da punibilidade pelo pagamento, é indispensável o prévio esgotamento da via administrativa para o oferecimento da denúncia, pois prevalecendo o entendimento de que a denúncia pode ser oferecida independente do processo administrativo, pela autonomia das instâncias, nenhum contribuinte, principalmente aqueles de boa fé e preocupados com a moral, vai discutir o crédito administrativamente, pois correrá o risco de vendo-se condenado, não ter mais a opção de pagar e livrar-se da ação penal.
d) A norma do art. 83 da Lei 9430/96 estabelece o momento exato para a remessa da documentação necessária a instauração da ação penal por parte do Ministério Público. Se não fosse com esse fim, e se entendessemos que o artigo 83 não vincula a atuação do Ministério Público, estaríamos tornando-a uma norma sem utilidade.
e) Não é possível admitir-se o argumento da autonomia das instâncias para justificar a ação penal antes do final do processo administrativo pois, sendo a exigência fiscal impugnada pelo contribuinte, e ao final confirmada a sua inexistência, ilegalidade ou inconstitucionalidade, não se pode cogitar de crime, sequer, em tese. Não é possível portanto, falar-se em ação penal. Faltaria objeto para a instrução criminal. Poderíamos nos deparar com julgamentos contraditórios onde, por uma voz o Estado diz que o contribuinte nada lhe deve e por outra o condena a uma pena por deixar de pagar ou recolher tributo devido. Que tributo, se a autoridade administrativa disse que não há tributo devido? O Direito não pode comportar uma contradição assim, ainda que em nome da independência das instâncias.
f) A prescrição com relação aos crimes contra a ordem tributária, só começa a contar da decisão definitiva na instância administrativa, portanto, não se pode utilizá-la como argumento para justificar a instauração de processo penal antes daquela decisão.
________________
* Advogada no Ceará e Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários
_________________