Migalhas de Peso

Memória, esperança e outros limites do direito ao esquecimento no Brasil

Para além das discussões envolvendo direitos fundamentais e apagamento de dados, a jurisprudência tem apresentado alguns critérios sobre a matéria.

6/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A década de 2010 está profundamente marcada por importantes discussões que permeiam um tema relativamente novo no Brasil: o Direito ao Esquecimento. No ano de 2013, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão apontou importante característica da matéria: sua relação com a memória e a esperança. Memória porque conectada com o passado; esperança porque confiante no futuro.

A diferença temporal entre a decisão (REsp 1.334.097/RJ) e o presente artigo é, em termos históricos, muito pequena; mesmo assim, não deixa de escancarar as várias nuances pelas quais uma determinada discussão pode passar.

O assunto aqui tratado é, antes de tudo, diverso e inconcluso, pois ao mesmo tempo que varia a depender da jurisdição, também possui peculiaridades observadas em quase todas as vezes em que é invocado. Seus limites, interpretações, contrastes e ambivalências importam ainda mais com a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil.

Esquecer também é lembrar: os casos envolvendo a violação de direitos fundamentais

O Direito ao Esquecimento está amparado na mais variada gama de precedentes e, assim, se faz presente em diversas jurisdições. Antes de se adentrar em uma análise especificamente dos casos mais conhecidos nacionalmente, é necessário retroceder algumas décadas e chamar a atenção para decisões que, indiretamente, colaboraram com a construção de alguns pilares.

Nos idos da década de 1970, o caso Lebach (1973) ficou muito conhecido na Alemanha por ter o Tribunal Constitucional Federal encarado a colisão entre os direitos da personalidade e o direito à informação. Em 1969, quatro soldados que guardavam um depósito de munição foram assassinados durante um assalto, caso conhecido como “Lebach soldiers murder”. Os dois principais acusados pelo crime foram condenados à prisão perpétua, enquanto um terceiro recebeu uma pena de seis anos por ter auxiliado no ato criminoso.

Ocorre que pouco tempo depois, em 1972, um canal de televisão alemão produziu e planejou transmitir em cadeia nacional um documentário sobre os fatos, com a citação de nomes e exibição de imagens dos envolvidos, além da reconstrução do crime. Então, aquele terceiro ingressou em juízo para obstar a transmissão do referido documentário. A justificativa era a de que impactos negativos poderiam surgir a partir da transmissão, o que prejudicaria sua ressocialização.

Uma vez efetuada a ponderação entre os direitos que colidiam entre si, o tribunal alemão entendeu pela prevalência, no caso concreto, dos direitos da personalidade. Para a corte, não só o processo de ressocialização do envolvido poderia ser afetado, como também não haveria mais razão para uma exploração da vida pessoal e da imagem do condenado, algo realizado à época dos acontecimentos. Observa-se que já neste caso se destacam dois critérios muito importantes do Direito ao Esquecimento, ainda que sem expressa menção: a fluência do tempo e a perda do interesse público.

Segundo Viviane Nóbrega Maldonado (2017, p. 101-102), as raízes do tema também são encontradas na França, onde subsiste o direito do condenado criminalmente em não ter informações suas relacionadas a fatos pretéritos divulgadas após o cumprimento integral da sentença condenatória.

Em terras brasileiras, são dois os principais casos, ambos com acórdãos proferidos pelo colendo STJ e relacionados à mídia televisiva: REsp 1.334.097/RJ – caso Chacina da Candelária; e REsp 1.335.153/RJ – caso Aida Curi. É importante destacar logo no início que muito embora as decisões possam parecer contrárias, o único contraste aqui operante se limita ao efeito do transcurso do tempo. É o que se verá a seguir.

O REsp 1.334.097/RJ, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão e julgado em 28/5/13, trata de reconstrução do crime Chacina da Candelária (1993) por meio do programa Linha Direta-Justiça, já extinto. O autor pleiteava que seu nome e imagem não fossem associados com os fatos, porque inocentado à época do ocorrido.

Em acórdão paradigmático, o ministro relator tratou de reforçar a importância de uma imprensa livre e que exerce seu poder-dever de informação, mas também do direito ao esquecimento dos condenados que já cumpriram sua pena e, na mesma extensão, dos absolvidos. No caso dos autos, também havia uma colisão entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, prevalecendo estes.

Ora, muito embora se tratasse de fato verídico – outro requisito, por assim dizer, da aplicação do Direito ao Esquecimento -, como bem assinalou o ministro relator: “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição”. No mais, a narrativa poderia ser contada ao público desvinculada do nome do autor.

De outro modo, o REsp 1.335.153/RJ conferiu uma ótica diferente aos efeitos da passagem do tempo. Neste caso, conhecido como Aida Curi, os familiares da vítima de um assassinato ocorrido em 1958 buscaram a aplicação do Direito ao Esquecimento para não terem reavivada a dor que sentiram há época, e, além do mais, por se tratar de fatos pretéritos. Trata-se de controvérsia originada no mesmo programa televisivo.

O acórdão consignou que muito embora o Direito ao Esquecimento possa ser reconhecido a ofensores e ofendidos nos casos de crime, os fatos ali analisados ainda possuíam interesse público, pelo que se tornaria praticamente impossível para o exercício da imprensa retratar o caso desvinculado do nome da vítima. Em outro sentido, o acórdão explicitou que o acolhimento do desconforto da lembrança geraria uma limitação desproporcional à liberdade de imprensa.

Em decisão recente, a comunidade jurídica novamente se voltou a essas discussões. O REsp 1.736.803/RJ, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva e julgado em 28/4/20, reafirmou que frente ao interesse social e em respeito à história e à memória coletiva de delito notório, não seria possível proibir a veiculação jornalística futura sobre os fatos, sob pena de censura prévia. A outro tanto, esclareceu que não é tolerável a exploração da vida e dos dados pessoais de envolvido previamente condenado a pretexto de informar sobre o crime.

Um pouco antes, em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia reconhecido a repercussão geral do tema 786, que trata da “aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares”, decorrência do caso Aida Curi.

As justificativas em conjunto remontam ao enunciado 531 do Centro de Estudos do Judiciário do Conselho da Justiça Federal (CJE/CJF), de março de 2013, que assim dispõe: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

Como se percebe dos casos aqui analisados, o Direito ao Esquecimento ganhou contornos particulares nas cortes brasileiras. Principalmente no que toca à violação de direitos fundamentais, esquecer também é lembrar, posto que ante a iminência de novas ofensas, cabe voltar a casos que paradoxalmente pretendiam ser esquecidos para que seja encontrada uma justificativa válida. É por isso também que o direito ao esquecimento não se firma – e nem pretende se firmar - como discussão cerrada e com critérios de análise sem margem para mudanças. Cabe ao caso concreto delinear o que deve ser rechaçado e o que há de ser acolhido.

Apagamento de dados como direito ao esquecimento? A experiência europeia

Não só na seara da mídia televisiva é aplicado o Direito ao Esquecimento. Ante aos avanços das tecnologias e do processamento de dados na internet, coube ao direito tentar regular a eliminação de informações pessoais dos ambientes virtuais. A despeito da crença de que se trata de discussão recente, será visto que na União Europeia o assunto vem ganhando destaque há anos.

Ainda na década de 1990, o Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram a Diretiva 95/46/CE, que dispõe sobre a proteção dos indivíduos a respeito do tratamento de dados pessoais e da livre circulação desses dados. Tal diretiva foi fundamental para decisão basilar proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014.

O caso ficou conhecido como Google Spain SL, Google Inc. v Agencia Española de Protección de Datos (AEPD), Mario Costeja González. Em acórdão datado de 13 de maio de 2014, a corte entendeu que por ‘tratamento de dados pessoais’ entende-se a atividade do motor de busca que encontra informações inseridas por terceiros na internet, as armazena, indexa e as coloca à disposição dos internautas para consulta, desde que envolvam dados pessoais. Assim, o operador do motor de busca fica responsável por aquele tratamento. A exceção reside na eventual circunstância de que o indivíduo ligado à informação seja figura pública. Na mesma data, o Tribunal de Justiça emitiu um comunicado de imprensa (70/14) assim ementado: “O operador de um motor de busca na Internet é responsável pelo tratamento que efetua dos dados pessoais exibidos nas páginas web publicadas por terceiros”.

Mais adiante, com a adoção do regulamento 2016/679, também conhecido como “General Data Protection Regulation” (GDPR), a União Europeia previu o que passou a ser chamado de “right to be forgotten” (“direito a ser esquecido” na versão portuguesa do regulamento).

Em suma, o artigo 17 dispõe que é direito do titular requerer ao responsável pelo tratamento o apagamento de seus dados pessoais, desde que se aplique um dos motivos constantes do item 1. Um dos mais conhecidos, e que consona com a LGPD, é a retirada do consentimento.

No mesmo ano de 2014, a experiência brasileira, novamente com enfoque no STJ, afastou a responsabilidade dos provedores de busca de removerem resultados na web, conforme apontam Van Calster, Apers e Gonzalez Arreaza (2017) em “Not Just One, But Many ‘Rights to Be Forgotten’. A Global Status Quo”.

Entretanto, em 8 de maio de 2018, na ocasião do julgamento do REsp 1.660.168/RJ, entendeu a terceira turma do STJ que há certas circunstâncias em que cabe a intervenção do Poder Judiciário para desfazer o vínculo entre dados pessoais e resultados de busca criados “nos bancos de dados dos provedores de busca, que não guardam relevância para interesse público à informação, seja pelo conteúdo eminentemente privado, seja pelo decurso do tempo”.

Veja-se que na oportunidade do julgamento do recurso especial relacionado à reconstrução televisiva do Crime da Candelária (REsp 1.334.097/RJ), o ministro Luis Felipe Salomão bem observou sobre os contornos particulares que ganha o Direito ao Esquecimento aplicado na internet, “que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo”.

Quanto à Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, não há expressa menção ou previsão indireta ao Direito ao Esquecimento. O certo é que há projeto de lei em tramitação que pretende inserir o tema no âmbito do Marco Civil da Internet.

Conclusão, ou quando um direito ao esquecimento se torna ‘direitos’

O Direito ao Esquecimento é tema que, por sua natureza, não se esgota, embora apresente limites. Tanto quando está relacionado à transmissão televisa – como no caso Lebach e nos casos brasileiros julgados em 2013 – quanto quando se relaciona à proteção de dados pessoais, o assunto terá sua implementação dependente do caso concreto.

Aqui parece a visão da ministra Nancy Andrighi no voto-vista do REsp 1.736.803/RJ (p. 7) ser muito bem fundamentada: ao invés de um direito ao esquecimento singular, a prática vem demonstrando a existência de ‘direitos’, ou seja, aplicações distintas para meios distintos, mas com o mesmo núcleo de interpretação.

É bom lembrar novamente que o objetivo do presente artigo não foi – e nem poderia ser – exaurir as decisões envolvendo o Direito ao Esquecimento nas cortes brasileiras. Buscou-se, pelo contrário, apontar a ampla margem de acepções e, de novo, ‘direitos’, a que o tema se abre.

Viviane Nóbrega Maldonado (2017, p. 167) traduz bem ao que o Direito ao Esquecimento está relacionado: “à desconexão temporal de fato verídico, que é capaz de ofender direitos da personalidade”.

Antes de esquecer, é preciso lembrar. É nessa ‘esperança’ de um futuro com segurança jurídica constante nas decisões, porque conectadas com o presente, que o direito tenta se adaptar às novas realidades.

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BRANCO, Sérgio. Memória e esquecimento na internet. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2017.

MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao Esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.

STF. Boletim de Jurisprudência Internacional. Direito ao Esquecimento. 5ª ed. Dezembro, 2018.

VAN CALSTER, G.; APERS, E.; GONZALEZ ARREAZA, A. Not Just One, But Many ‘Rights to Be Forgotten’. A Global Status Quo. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2938969. Acesso em: 21 jun. 2020.

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*Mario Cesar Lobo Junior é colaborador do L. Baddauy Advocacia.

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