Este artigo busca esclarecer algumas questões envolvendo as candidaturas avulsas ou independentes. Percebe-se, em muitos artigos científicos sobre o tema, que a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) é constantemente mencionada com o objetivo precípuo de se sustentar a tese de que o preceito normativo referente aos Direitos Políticos, previsto no artigo 23 da CADH, possibilita o registro de candidatura independentemente de filiação partidária, mesmo naqueles países em que a associação a determinado Partido Político é condição de elegibilidade prevista na lei ou em normas constitucionais.
São poucos os textos em que se verificam abordagens acerca da posição adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre o tema. A Corte IDH, no ano de 2008, julgou o caso Castañeda Gutman vs. México, proferindo sentença de mérito sobre a questão das candidaturas independentes e do seu reflexo nos Estados-partes da Convenção em que se é exigida a filiação partidária para a participação no processo político-eleitoral.
É de suma importância, portanto, conhecer o precedente da Corte IDH, seus reflexos e fundamentos jurídicos. Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem encontro marcado com essa matéria, no RE no 1.238.853/RJ, de relatoria do eminente Ministro Luís Roberto Barroso.
Passemos, então, a analisar mais detalhadamente o caso Castañeda Gutman vs. México.
Em 5 de março de 2004, Jorge Casteñeda Gutman requereu ao Conselho Geral do Instituto Federal Eleitoral pedido de registro de candidatura ao cargo de presidente dos Estados Unidos Mexicanos, independente de filiação partidária, para disputar as Eleições de 2 de julho de 2006. A Direção Executiva de Prerrogativas e Partidos Políticos do Instituto Federal Eleitoral informou ao Senhor Jorge Castañeda Gutman que não era possível acolher o pedido, pois somente os Partidos Políticos nacionais possuíam o direito de requerer registro de candidatos para concorrer aos cargos eletivos. Veja:
el derecho a ser postulado y ser votado para ocupar un cargo de elección popular a nivel federal, sólo puede ejercerse a través de alguno de los partidos políticos nacionales. (fl. 7)
Diante da negativa do requerimento de registro, Jorge Casteñeda Gutman impetrou demanda de amparo (semelhante ao mandado de segurança) perante o Sétimo Juizado em Matéria Administrativa do Distrito Federal, que foi imediatamente rejeitada por este órgão jurisdicional, sem análise do mérito. Não satisfeito, interpôs recurso de revisão contra o decisum do Sétimo Juizado, contudo, o apelo foi inadmitido pela Suprema Corte de Justicia de la Nación (órgão máximo do Poder Judiciário Mexicano).
Em 12 de outubro de 2005, Castañeda apresentou petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), alegando, entre outros argumentos, que: i) os partidos políticos não são os únicos veículos com competência para que os cidadãos postulem a cargos eletivos, conforme as normas da CADH, e precedentes da Corte IDH, especialmente o caso Yatama vs. Nicarágua; ii) não é legítima qualquer restrição ao exercício dos direitos políticos fora daquelas hipóteses previstas no artigo 23, 2, da CADH, que utiliza a expressão “exclusivamente” para reforçar a inviabilidade de outas limitações; e iii) as candidaturas avulsas são necessárias e constituem válvula de escape diante da pouca credibilidade dos partidos políticos.
Nesse cenário, em 21 de março 2007, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu à apreciação da Corte IDH demanda contra os Estados Unidos Mexicanos, pleiteando a sua responsabilização por ofensa ao artigo 25 da Convenção. Confira-se a redação do preceito normativo:
Artigo 25. Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados Partes comprometem-se:
a. a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do
Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b. a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.
Alegou-se, em síntese, que o Estado não assegurava a seus cidadãos um recurso rápido, simples e efetivo para proteção dos direitos políticos.
A CIDH sustentou que um recurso judicial, para ser considerado efetivo, deve ter o mérito da controvérsia apreciado, o que não ocorreu com os recursos interpostos por Castañeda Gutman. Consignou, ainda, que o recurso judicial não tem de resultar em decisão a favor da parte, entretanto, a efetividade assegurada na CADH implica que o mérito da causa seja devidamente valorado pelo julgador.
Não obstante a CIDH ter ajuizado demanda contra o México por ofensa ao artigo 25 da Convenção, a Corte IDH, ao julgar o caso, enfrentou a temática envolvendo candidaturas avulsas ou independentes à luz do artigo 23 da Convenção, que trata dos direitos políticos. Confira-se o teor do dispositivo convencional:
Artigo 23. Direitos políticos
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a. de participar na direção dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
b. de votar e ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual e por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c. de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
2. A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.
Passo a expor os principais fundamentos jurídicos presentes na sentença proferida em 6 de agosto de 2008.
O artigo 23, 2, da CADH estabelece que “a lei pode regulamentar o exercício e o alcance dos direitos políticos, exclusivamente em razão da idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil, ou condenação, por juiz competente, em processo penal”. A Corte IDH assentou que o dispositivo delimita as hipóteses pelas quais se é possível restringir o exercício dos direitos políticos, e a razão do preceito normativo é evitar qualquer discriminação contra indivíduos no processo político-eleitoral. Ressalta-se que, no ponto, existe um mandado geral ao Estado-parte a fim de que se observe a obrigação de assegurar o gozo dos direitos políticos sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou condição social, nos moldes do artigo 1º, 1, da CADH.
Dessa forma, acrescentou que, se as normas eleitorais internas observarem a proporcionalidade e a razoabilidade, as restrições impostas pelo Estado-parte serão legítimas.
O sistema eleitoral de determinado Estado-parte, para estar de acordo com a Convenção, deve viabilizar a celebração de eleições periódicas e autênticas, realizadas mediante sufrágio universal e voto igualitário e secreto, que assegurem a liberdade de expressão e a livre vontade dos eleitores.
No âmbito dos direitos políticos, o dever de cada Estado é especialmente relevante e se concretiza mediante a existência de aspectos organizacionais que envolvem todo o processo eleitoral e se dão por meio da elaboração de normas, bem como pela adoção de medidas materiais de infraestrutura. Só assim os direitos reconhecidos no artigo 23 da Convenção serão verdadeiramente implementados. Vale dizer que, sem a prestação positiva do Estado, os direitos de votar e ser votado não poderão ser exercidos.
Os direitos políticos e outros previstos na Convenção, como o direito à proteção judicial (artigo 25), são inoperantes por natureza. Exigem-se, desse modo, detalhada regulamentação normativa e completo aparato institucional, econômico e humano para se assegurar eficácia e aplicabilidade que tais direitos reclamam.
Com efeito, se não há códigos e leis eleitorais, partidos políticos, meios de propaganda, centros de votação, juntas eleitorais, agenda com datas e prazos para o exercício do sufrágio, é forçoso reconhecer que os direitos políticos, isoladamente, serão ineficazes, da mesma maneira que não se pode exercer o direito à proteção judicial sem a existência de tribunais e normas processuais que o torne possível de aplicabilidade.
A Corte IDH, mencionando o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, assentou que existem diversas maneiras de organizar e implementar sistemas eleitorais em um país, haja vista seu desenvolvimento histórico, diversidade cultural e pensamento político prevalecente. Consignou que o Tribunal Europeu tem enfatizado a necessidade de se avaliar a legislação eleitoral com enfoque no grau de evolução do Estado, o que tem levado à conclusão de que aspectos inaceitáveis no contexto de um sistema podem ser plenamente justificados em outros.
Nessa esteira, afirmou-se que a Convenção Americana, assim como ocorre em outros tratados internacionais de direitos humanos, não estabelece obrigatoriedade na implementação de um sistema eleitoral determinado, tampouco possui um mandado específico acerca das modalidades em que os Estados-partes devem seguir para regulamentar o exercício dos direitos políticos de seus cidadãos.
A Corte IDH observa que, à luz do direito eleitoral comparado, o registro de candidatura pode ser implementado de duas maneiras: i) mediante o sistema de registro de candidatos de forma exclusiva pelos partidos políticos, exigindo-se, portanto, a filiação partidária do candidato; ou ii) por meio do sistema misto, em que haja o registro de candidaturas por partidos políticos ao lado da possibilidade de registro de candidaturas independentes ou avulsas, o que ficaria à escolha do candidato.
Por fim, a Corte IDH concluiu que ambos os sistemas, um construído exclusivamente de partidos políticos, e outro, que admite também candidaturas independentes, podem ser compatíveis com a CADH. A decisão entre qual sistema adotar está nas mãos dos Estados-partes, conforme a definição política de suas respectivas normas constitucionais.
A Corte IDH não ignora a existência de uma profunda crise de representatividade, tanto dos partidos políticos quanto das casas legislativas, o que leva à necessidade de um imperioso e reflexivo debate sobre participação e representação política, transparência das instituições e fortalecimento da democracia.
A sociedade civil e o Estado devem levar a cabo essa reflexão mediante a realização de propostas com o objetivo de reverter a situação de crise de representatividade. Nesse sentido, os Estados-partes devem valorar, de acordo com seu desenvolvimento histórico, político e social, as medidas que permitam fortalecer os direitos políticos e a democracia. A candidatura independente pode ser um dos mecanismos entre muitos outros.
Diante dos argumentos expostos, a Corte IDH considerou que a exigência de filiação partidária não caracteriza restrição ilegítima para o exercício regular dos direitos políticos, razão pela qual não condenou o México por violação do artigo 23 da CADH (direitos políticos).
De outra parte, a responsabilização do Estado mexicano se deu por ofensa ao artigo 25 da Convenção (garantias de proteção judicial), porquanto a Corte IDH considerou que Castañeda Gutman não teve os recursos jurídicos devidamente apreciados pelos órgãos jurisdicionais do país.
Desse modo, consoante o entendimento da Corte IDH no caso Castañeda Gutman vs. México, conclui-se que a exigência de filiação partidária para o registro de candidatura não é incompatível com a CADH. As normas constitucionais que estruturam o sistema de partidos políticos e implementam a filiação partidária como requisito à elegibilidade, desde que proporcionais, razoáveis e não discriminatórias, não ofendem o pacto de São José da Costa Rica.
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*Luis Victor Tebar Donegá é analista judiciário no Tribunal Superior Eleitoral. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP, e especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – FDUC.