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CNJ aprovou a Justiça 100% digital - Ônus e bônus

Não se deve perder de vista o contraponto entre o acesso à justiça e à celeridade, por um lado, e a segurança procedimental das audiências, debates e sustentações orais, por outro, sempre com vistas à utilização das inovações tecnológicas.

19/10/2020

Imagem: Arte Migalhas

No dia 06 de outubro, em Sessão Ordinária, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça aprovou a resolução 345, autorizando a implementação do Juízo 100% Digital.

Cuida-se de um verdadeiro incentivo ao acesso à justiça digital, tendo em vista proporcionar a implementação de soluções criativas e de baixo custo que possam propiciar o oferecimento integral de serviços jurisdicionais em plataformas on-line.

Além disso, busca-se incorporar toda a tecnologia e inovação que possa agregar algum valor e facilidade na condução dos processos, gerenciamento de recursos materiais e humanos e ainda uma melhoria na qualidade da prestação jurisdicional por intermédio de inteligência artificial e gerenciamento de dados.

Foi noticiada a resolução 335 do CNJ, tendo por objetivo a promoção de uma plataforma central – o PJe – que, integrada aos diversos sistemas processuais dos Tribunais em todo o território Nacional, promoverá um funcionamento interoperável com a criação de uma espécie de marketplace para que todos possam desenvolver e aprimorar os seus sistemas de maneira horizontal, conforme as necessidades específicas de cada Região.

O processo eletrônico está em constante evolução, mas em termos de integração e interoperabilidade não houve o avanço esperado. Agora o PJe foi instituído como sistema “oficial”, no sentido de ser eleito como o padrão ideal a ser seguido em todo o país – ainda que tenha sido criado pela resolução CNJ 185, de 18 de dezembro de 2013, e que diversos problemas tenham sido encontrados pelos jurisdicionados e operadores do direito na utilização deste sistema, ainda não solucionados.

Certamente a ausência de sistemas processuais eletrônicos interoperáveis ou, ainda, a mera existência de sistemas falhos, que dificultam o acesso à justiça pelos seus usuários, passaram a ser percebidas de maneira mais evidente no isolamento social decorrente da pandemia. Tal fato explicaria o protagonismo desta temática nos Tribunais Superiores e no CNJ, vez que o meio digital se tornou o único possível à continuidade da prestação jurisdicional nestes últimos meses.

Além disso, esta submissão “forçada” de todos os operadores do direito e jurisdicionados à utilização do processo judicial eletrônico fez com que aqueles os quais ainda resistiam ou não tinham familiaridade com as ferramentas tecnológicas finalmente as conhecessem, aumentando-se o número de opiniões formadas a tal respeito.

Da mesma forma, a franca utilização do processo eletrônico judicial durante a pandemia – sem a coexistência de rotinas presenciais – serviu como uma excelente experiência para que se avaliasse a possibilidade de se manter a prestação jurisdicional exclusivamente no meio digital.

Neste contexto, a resolução 345 recentemente aprovada pelo CNJ trouxe a expressa autorização para que os Tribunais implementem o Juízo 100% Digital, nos moldes a seguir.

Em primeiro lugar, deixa-se claro que o “Juízo 100% Digital” não poderá ser imposto às partes. Caberá à parte autora, até o momento da distribuição da ação, fazer esta opção, qual seja, a de processamento no meio exclusivamente digital ou não. Manifestando-se favoravelmente, ainda será necessária posterior concordância da parte contrária. E mais: após a contestação e até a prolação da sentença, as partes poderão retratar-se, por uma única vez, da escolha pelo “Juízo 100% Digital”.

Uma vez eleito o “Juízo 100% Digital”, caberá ao Tribunal correspondente assegurar o atendimento remoto durante o expediente forense por meio de telefone, e-mail, videochamadas, aplicativos digitais ou outro meio de comunicação que venha a ser definido pelo Tribunal.

Para que se avalie a continuidade do projeto em questão, os resultados advindos da utilização do “Juízo 100% Digital” deverão ser acompanhados e monitorados pelos Tribunais responsáveis, para que ao final, decidam pela sua manutenção, descontinuidade ou ampliação das varas digitais, comunicando a sua deliberação ao Conselho Nacional de Justiça.

Estabelece o art. 5º da Resolução em apreço que todas audiências e sessões no “Juízo 100% Digital” ocorrerão exclusivamente por videoconferência, mas nada se fala na Resolução acerca da realização de perícias e outras diligências presenciais, dando-se a impressão de que, neste ponto, permanecem inalteradas.

Apresentado o “Juízo 100% Digital” e suas benesses quanto à celeridade e ao acesso à justiça, importante que se faça uma análise crítica do tema. Um primeiro ponto a ser trazido à discussão reside na escolha prematura pelo “Juízo 100% Digital”, em termos do momento processual – fase postulatória. Estarão as partes prontas e seguras quanto aos fatos e fundamentos jurídicos da demanda? Estará a lide madura e delimitada para que se possa determinar a atividade probatória necessária?

No sistema processual brasileiro, as declarações fundamentais das partes devem estar contidas na inicial e na contestação, apresentadas não com a função de meros escritos preparatórios, mas como declarações de vontade, fixando em definitivo os lindes da pretensão e da resistência. A partir daí, caso não se verifiquem as hipóteses autorizadoras do julgamento antecipado do mérito, integral ou parcial, deverá haver o saneamento e organização do processo, delimitando-se as provas necessárias. Entende-se que tão somente nessa oportunidade deveria haver a eleição ou não pelas partes do “Juízo 100% Digital”, sem cabimento de retratação posterior, com o fim de se evitar tumulto processual. Registra-se, assim, a sugestão de revisão da normativa.

Em outra seara, novas questões podem ser levantadas quanto à segurança procedimental das audiências, debates e sustentações orais, sempre com vistas à utilização das inovações tecnológicas.

Segundo Athos Gusmão Carneiro, audiência é a sessão em que o juiz pessoalmente ouve as partes, entra em contato com as testemunhas, ouve o perito, caso haja prova pericial requerida pelas partes e requerimento de esclarecimentos por meio de resposta a quesitos complementares –, escuta os debates finais e sentencia1. Necessário registrar que os debates, na praxe forense, foram substituídos pelos memoriais escritos – possibilitando ao advogado concatenar seus argumentos postulatórios com as provas produzidas e assim influenciar no julgamento da causa.

Pois bem, considerando que as partes e as testemunhas serão interrogadas por videoconferência, é possível imaginar uma série de problemas e/ou dificuldades para todos os envolvidos no processo. Logo de início, parece importante questionar até que ponto o meio digital possibilita que juiz e advogados captem a linguagem corporal do depoente, como gestos, postura, expressões faciais, movimento dos olhos, além de outras manifestações do corpo ligadas ao stress da situação – até mesmo pela alteração da verdade dos fatos –, como sudorese, tremor, inquietação das pernas, estalo dos dedos, entre outros. Não é demais registrar que as advertências relativas às sanções penais pelo falso testemunho não parecem surtir o mesmo efeito no modo remoto em contraposição com a presença física do juiz.

Vale lembrar também que os depoimentos poderão ser gravados (art. 460, NCPC), bastando que as partes ou juiz informem sua intenção. Nesse sentido, não é difícil conceber um novo meio de avaliação do teor dos depoimentos quanto à sua espontaneidade ou não, veracidade ou não, simulação ou não, qual seja, a tradução do comportamento dos depoentes registrado nas imagens – analisadas repetidas vezes – por profissionais especializados. Os resultados são hoje inimagináveis.

Um segundo ponto relevante a se observar é o princípio da incomunicabilidade. As testemunhas devem ser inquiridas de modo que uma não ouça o depoimento das outras, assim salvaguardada a hipótese de o depoimento anterior sugestionar a testemunha a ser posteriormente interrogada, influenciando-a num ou noutro sentido2.

Para as audiências, cada parte, advogado, testemunha ou perito recebe um link para uma sala virtual. Relatos de audiências trabalhistas mostram que as testemunhas não são inseridas digitalmente3 e que todos realizam a audiência no escritório de advocacia do reclamante. Os advogados da reclamada insurgem-se contra a reunião de parte, advogado e testemunhas em um mesmo ambiente físico, adotam algumas providências para minimizar a chance de transmissão de informação durante o depoimento, mas em verdade não há garantia de que não haja comunicação ou orientação por terceiros que não estejam nas salas virtuais. Esse é um controle muito difícil de ser realizado e que deve ser observado na busca da verdade e da justiça nas audiências de instrução e julgamento virtuais.

Em terceiro lugar, sem deixar de considerar a exclusão digital, há de se pensar também em fraudes e simulações de problemas técnicos, como a queda de conexão em momento de pressão das partes ou testemunhas em depoimento, tal como a situação ocorrida no processo 1000023-57.2020.5.02.0062 em trâmite na 62ª Vara do Trabalho de São Paulo, no qual o juiz de direito fixou pena por litigância de má-fé de 5% sobre o valor da causa4.

A sustentação oral nos recursos também pode ser realizada por videoconferência (art. 937, § 4.º, NCPC). Com certeza, esse é uma ferramenta que muito facilitará o acesso à justiça, uma vez que o deslocamento dos advogados para a capital do Estado, ou ainda para Brasília, pode importar em um custo totalmente fora da realidade do jurisdicionado. Nesse caso, a possibilidade de se realizar sustentação oral por videoconferência parece ser uma solução muito plausível, mas deve-se fazer o apontamento de quão difícil tem sido a atenção dos desembargadores e ministros nas sustentações orais presenciais, quanto mais nas remotas, tendo havido nesta pandemia inúmeras situações constrangedoras de ministros que cochilaram ou perderam o foco para outras atividades triviais, tudo registrado em gravações.

Em conclusão, deve-se pensar que a sociedade brasileira mudou sobremaneira nas últimas décadas, de modo que a ciência processual brasileira deve estar mais aderente à realidade social, com maior capacidade de produzir resultados práticos e em maior abrangência possível, e nesse passo as inovações tecnológicas são um caminho sem volta5.

Como tudo, há sempre um lado positivo e um negativo: as novas tecnologias podem em muito facilitar o acesso à justiça, com celeridade, mas não se pode deixar de observar a segurança na efetiva realização da justiça, nem tão pouco deixar de resguardar os princípios orientadores do processo civil.

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1 CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência de instrução e julgamento e audiências preliminares. 11 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

2 CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência de instrução e julgamento e audiências preliminares. 11 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

3 Audiência virtual ignora a exclusão digital e os direitos básicos do réu.

4 Clique aqui

5 SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Novas perspectivas sobre a oralidade no processo. Revista Ibero-americana de Derecho Procesal, jul/dez 2015.

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*Flávia Pereira Ribeiro é pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestra em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Sócia de Flávia Ribeiro Advocacia.




*Cristiane Rodrigues Iwakura é doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professora de Direito Processual Civil de Processo Administrativo Sancionador. Procuradora Federal lotada na CVM atualmente em exercício como Coordenadora da Escola da AGU na 2ª Região.

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