Como é sabido, o cenário jurídico brasileiro suportou diversas alterações repentinas, sobretudo na seara trabalhista, em razão da pandemia causada pela covid-19.
Tal situação, extremamente peculiar, fora motivo da edição de diversas Medidas Provisórias, que, em vários aspectos, foram alvo de acirradas discussões, especialmente em razão da grande novidade do tema.
Acerca do assunto, inicialmente se faz mister conceituar o termo “doença ocupacional”, que tem previsão no artigo 20, II, da lei 8.213/91. Vejamos:
Art. 20. Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
[...]
II - doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
Nas palavras de Martinez, tem-se a seguinte conceituação de doença ocupacional:
Doença do trabalho: deriva das condições do exercício, do ambiente do trabalho, dos instrumentos adotados, sendo própria, sobretudo, das empresas que exploram a mesma atividade econômica e não necessariamente conceituadas como fazendo como fazendo parte do obreiro.1
Dessa forma, tem-se que a doença do ocupacional possui uma ligação com o trabalho do empregado em razão da forma como este era exercido, todavia não possui necessariamente um nexo causal com este.
Explica-se: o labor do empregado, tratando-se de doença ocupacional, poderia ser exercido sem a exposição ao fator desencadeador da doença.
Dito isso, no que tange às discussões decorrentes da insegurança jurídica causadas pela pandemia desencadeada pelo coronavírus, o tema da configuração da covid-19 enquanto doença ocupacional fora uma pauta bem relevante.
Tal temática fora iniciada em razão do art. 29 da medida provisória 927, que possui redação semelhante ao § 1º, alínea d, do art. 20 da lei 8.213/91. Confira-se as redações dos referidos dispositivos legais.
Medida provisória 927/20
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
Lei 8.213/91
Art. 20. Omissis...
§ 1º Não são consideradas como doença do trabalho:
[...]
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
Tais disposições determinavam que seria ônus do empregado demonstrar que a sua contaminação ocorreu no ambiente laboral.
Ora, não restam dúvidas acerca da dificuldade da produção de tal prova, especialmente em razão da facilidade com que o referido vírus se transmite, tornando tal constatação inviável, especialmente no estágio de transmissão comunitária.
Nesse contexto, foram ajuizadas sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) contra o art. 29 da já referida Medida Provisória (muito embora tal dispositivo não tenha sido o único atacado nas ações).
As ADIn’s foram ajuizadas pelo Partido Democrático Trabalhista (ADIn 6.342), pela Rede Sustentabilidade (ADIn 6.344), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (ADIn 6.346), pelo Partido Socialista Brasileiro (ADIn 6.348), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conjuntamente (ADIn 6.349), pelo partido Solidariedade (ADIn 6.352) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (ADIn 6.354).2
Dessa forma, no dia 29/4/20, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a eficácia do artigo 29 da medida provisória (MP) 927/20.
À título de curiosidade, muito embora não seja objeto da presente pesquisa, o art. 31 da referida medida provisória também teve sua eficácia suspensa.
Tal decisão teve o condão de trazer diversos efeitos nas relações empregatícias. Isto porque, a doença ocupacional traz consigo inúmeras implicações ao empregado, especialmente a garantia de emprego, o recebimento de auxílio doença acidentário pelo empregado (desde que afastado por prazo superior à 15 dias), ambos com previsão no artigo 118 da lei 8.2133, tendo em vista a equiparação ao acidente de trabalho das doenças ocupacionais, e a possibilidade de condenação ao pagamento de indenização do empregador ao empregado.
Importante, ainda, salientar que o STF não decidiu que existindo a contaminação do empregado pelo vírus, automaticamente haveria o reconhecimento desta como doença ocupacional.
Na realidade, em nossa visão, a Suprema Corte tão somente retirou do empregado o ônus de demonstrar que a contaminação ocorreu no ambiente laboral.
Dessa forma, acreditamos que a decisão do STF busca analisar o caso concreto, de tal sorte que, para ser constatada a configuração da doença ocupacional, deve ficar demonstrado o dolo ou culpa do empregador em razão da forma com que o labor era exercido, uma vez que o nexo causal não necessariamente deve ser demonstrado.
À título de exemplo, pode ser citada a existência de exposição do empregado a aglomerações em razão do trabalho, o que demonstraria, sem dúvidas, um grande risco de contaminação o ocasionado, no mínimo, por descaso do empregado. Em contrapartida, o empregado que estivesse com o contrato suspenso não poderia buscar tal pleito, tendo em vista que sequer estava exercendo seu labor.
Nessa esteira, não existem dúvidas que a formalização das medidas de prevenção e de proteção ao coronavírus seria fator fundamental para configuração ou não da doença como ocupacional.
Ocorre, que o Ministério da Saúde publicou no dia 28/8/20 a portaria 2.309 que classificava o covid-19 como doença ocupacional.
Tal determinação fora um novo palco de diversas críticas, tendo em vista que, de forma indireta, o covid-19 seria automaticamente classificada como doença do trabalho e teria todas as consequências jurídicas cabíveis.
Nesse espeque, em nova portaria, 2.345, publicada em 2/9/20, o Ministério da Saúde tornou sem efeito a anterior, que listava a covid-19 entre as doenças ocupacionais, retornando ao status quo anterior.
Importante, ainda, salientar que, na presente data, não somente o art. 29 da medida provisória 927 está impossibilitado de ser aplicado, mas também todos os demais dispositivos desta norma, tendo em vista que seu prazo máximo de validade expirou, sem que tenha havido a conversão em lei.
Conclui-se, desta forma, que configuração ou não da covid-19 como doença ocupacional deve ser analisada conforme o caso concreto, tomando especialmente por base o cumprimento dos protocolos sanitários e as medidas tomadas pela empresa com vistas a evitar a contaminação.
3 Art. 118. O segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente.
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