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A reforma tributária e a reflexão a respeito do país que o Brasil quer ser

Discutir reforma tributária é também discutir e debater a reforma do Estado. É preciso ter claro que não poderá haver mudanças significativas na legislação fiscal, se não há alteração da própria concepção de sociedade.

23/9/2020

“A tributação é a expressão financeira da boa ordem que uma comunidade dá a si mesma. Ela reflete a compreensão do Estado, define as suas tarefas e a esfera de liberdade dos cidadãos. É a base para os deveres mais importantes do povo, modera as diferenças de rendimento e riqueza resultantes das liberdades econômica e concorrenciais, e cria a base para a segurança, a infraestrutura e os serviços sociais garantidos pelo Estado1” [...].

O trecho acima destaca-se por sua capacidade de sintetizar as funções da tributação em um Estado Constitucional. Paul Kirchhof nos lembra que um sistema tributário é o reflexo financeiro da sociedade em que ele está inserido.

De fato, um Estado “grande” e “controlador”, responsável por promover benefícios em prol de sua população, dificilmente poderá ter uma carga tributária reduzida. Os serviços públicos e programas assistenciais custam caro e o seu preço é pago com os recursos obtidos por meio de tributos.

A organização do Estado está calcada, também, na configuração do seu sistema tributário. Como pensar em uma república federativa, se os entes federados não possuírem capacidade de criarem e arrecadarem seus tributos? Uma federação exige autonomia dos seus componentes, o que depende de uma justa divisão das parcelas do poder de tributar.

O sistema tributário é capaz de demonstrar, ainda, as prioridades de um país. Basta observar as políticas fiscais por ele empreendidas. A concessão de benefícios privilegia, em tese, valores considerados importantes por determinada comunidade, que devem ser incentivados.

Portanto, discutir reforma tributária é também discutir e debater a reforma do Estado. É preciso ter claro que não poderá haver mudanças significativas na legislação fiscal, se não há alteração da própria concepção de sociedade. Dissociar esses dois aspectos torna qualquer tentativa de mudança já frágil em sua origem.

Neste ponto, a experiência brasileira tem sido pródiga. Os debates sobre a reformulação de como tributamos ganharam força e protagonizam a pauta política do país.

A mídia noticia propostas para alteração na tributação da renda, da folha de salários e, principalmente, do consumo. Esta última será objeto desse texto, que apresenta algumas reflexões sobre o tema.

Os tributos incidentes sobre a comercialização de bens e serviços são apontados como a principal causa da complexidade do nosso sistema tributário. As origens deste mal não são difíceis de serem compreendidas.

Optamos por repartir a competência tributária sobre o consumo com Estados, municípios, Distrito Federal e União. Eles exercem seus poderes de tributar simultaneamente, submetendo os contribuintes a uma excessiva quantidade de obrigações fiscais, em diversas localidades do país.

A depender do porte de uma empresa, ela pode ser contribuinte da União, de alguns Estados e de centenas ou milhares de municípios. Cada um com suas legislações complexas e peculiaridades. Saber a quem e o quanto pagar quase sempre é tarefa difícil.

Por isso a ordem do dia é a simplificação. As propostas em trâmite no Congresso Nacional dizem visar tornar mais fácil a apuração dos tributos e sua incidência mais racional.

Os projetos de emenda à constituição 45 e 110, que tramitam na Câmara e no Senado, respectivamente, propõem a unificação de impostos e contribuições que oneram o consumo. A primeira acaba com o ICMS, o ISS, o IPI, o PIS e a Cofins. A segunda avança mais, e além dos já mencionados extingue o IOF, a CIDE-Combustíveis e o salário-educação.

O Governo Federal também apresentou sua contribuição. Enviou ao Congresso o projeto de lei 3.887/20, que cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em substituição ao PIS e a Cofins.

O ponto comum entre as propostas é a instituição de uma tributação sobre o valor agregado, semelhante ao que ocorre na maioria dos países do mundo. Neste modelo, os fatos sujeitos à tributação são amplos, pois a incidência depende mais da existência de uma atividade econômica, e menos de sua classificação ou denominação. Se há consumo, há o pagamento do tributo.

Os projetos para a nova tributação sobre o valor agregado defendem uma ampla não-cumulatividade e a concessão de incentivos fiscais deve inexistir, ou ser bastante limitada. Esses dois elementos permitiriam, segundo seus defensores, que o sistema tributário caminhe para neutralidade e transparência. A tomada de créditos em todas aquisições sujeitas ao tributo viabiliza arrecadação limitada à parcela de valor que o agente econômico agregou ao produto. Assim como, a ausência ou limitação de incentivos fiscais mitiga o surgimento de regimes diferenciados, que implicam complexidade e não permitem que o consumidor final saiba, exatamente, a carga tributária incidente sobre determinada mercadoria ou serviço.

Com relação a essas questões, há convergência entre as três sugestões. Apesar das diferenças pontuais, as premissas inerentes à instituição de um IVA são respeitadas.

O problema é que entre elaboração de um texto normativo e sua concretização há um caminho a ser percorrido. No caso da reforma tributária, este percurso é bastante longo.

O Brasil, até agora, mostrou-se refratário aos ideais que norteiam alterações na tributação sobre o consumo. Por aqui, o crédito físico é a regra, com debates infindáveis acerca do que gera ou não direito a crédito. A eficácia da não-cumulatividade é negada rotineiramente. Tornaram-se habituais interpretações das administrações tributárias que apequenam o mandamento constitucional e restringem sobremaneira o direito dos contribuintes. As instruções normativas do Fisco Federal 247/02 e 404/04, que buscaram definir o conceito de insumo para apuração da base de cálculo do PIS e da Cofins são exemplos paradigmáticos.

O ano em que discutimos reforma tributária é o mesmo em que adiamos, pela 6° vez, o direito ao crédito na aquisição de mercadoria destinada ao uso ou consumo por contribuintes do ICMS. A promessa que estava marcada originalmente para ser cumprida em 1998, agora apenas será realizada em 2033. É esperar para (não) ver.

O Brasil caminha em sentido contrário aos valores da reforma também no que se refere a incentivos fiscais. Fez-se política econômica com tributos. Gostemos ou não, criamos diversas regiões dependentes desta espécie de incentivo. A política fiscal do país causou guerra fiscal, que corrompeu a federação e criou insegurança jurídica para os contribuintes.

Apesar dos problemas causados, o recurso aos benefícios tributários não pode ser criticado, sem a compreensão do contexto em que está inserido: a necessidade de atração de investimentos para regiões com menor investimento industrial, por negligência de sucessivos governos. Atualmente, os incentivos fiscais cumprem esse papel, justificando diversos empreendimentos produtivos nas regiões Nordeste, Norte e Centro Oeste do Brasil. Sua extinção, compreensível para a realidade de países ricos, pode ser insustentável para uma nação pobre, fortemente marcada por persistentes desigualdades sociais e regionais2.

Aos exemplos acima, muitos outros poderiam ser somados. O que leva a seguinte conclusão: se é verdade que as propostas legislativas estão de acordo com os princípios de uma tributação sobre o valor agregado, o mesmo não se pode afirmar com relação à postura e realidade do Brasil frente a esses princípios.

E esta constatação é de suma importância. Uma reforma desta magnitude exige um pacto entre os entes federados e a sociedade civil. Ou incorpora-se os “valores” desse novo sistema, ou ele estará fadado ao fracasso. A qualidade técnica das propostas não será suficiente para conter as investidas políticas, que realizará verdadeiro desmonte do novo modelo nos levando, talvez, para situações piores que as atuais.

As mazelas do sistema tributário vigente são conhecidas. As que poderão surgir em razão da desconfiguração do novo, não. Ao final, a população será a maior prejudicada, pois eventual redução da carga tributária sequer é cogitada, em razão dos gastos públicos, cada vez mais elevados.

Estamos convencidos que os debates sobre a reforma tributária não devem estar restritos aos aspectos técnicos. Nada disso bastará se o Estado não compreender o seu papel e respeitar os direitos dos contribuintes. Mais importante que a aprovação da reforma é decidirmos que tipo de país o Brasil quer ser.

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1 Kirchhof, Paul. A Ética da justiça fiscal. Tradução de Pedro Adamy. Revista de Direito Tributário Atual, n. 44. São Paulo: IBDT, 1° semestre de 2020. Quadrimestral. Disponível clicando aqui.

2 Sobre a importância de a reforma tributária conciliar a necessidade do combate às desigualdades sociais e regionais, conferir: Andrade, José Maria de. Reforma tributária não pode ignorar diferenças entre as regiões.

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*Gabriel Moreira é colaborador da área tributária do escritório da Fonte, Advogados.

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