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Da (in)constitucionalidade do crime de gestão temerária

Não importa tanto o tempo que demore para que a jurisprudência avance, o que mais interessa é o exercício do dever de indignação dos operadores do direito em face de normas flagrantemente inconstitucionais ou não recepcionados pela Constituição vigente.

17/9/2020

Uma das tarefas essenciais da doutrina é examinar diuturnamente a adequação dos tipos penais com a Constituição Federal.

Cabe a doutrina refletir acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade dos delitos e também sobre a recepção ou não da normas penais criadas antes do advento da Constituição cidadã.

Se os tipos penais forem inconstitucionais ou incompatíveis com a Lei Maior caberá a doutrina exercer seu fundamental papel de constrangimento epistemológico.1

Os argumentos que embasam a tese da inconstitucionalidade/não recepção devem ser apontados e levantados perante os Tribunais. A pressão diante dos Tribunais é exercida com a força do argumento.

Não importa tanto o tempo que demore para que a jurisprudência avance, o que mais interessa é o exercício do dever de indignação2 dos operadores do direito em face de normas flagrantemente inconstitucionais ou não recepcionados pela Constituição vigente.

Tal dever se mostra ainda mais relevante ao nos depararmos com normas incriminadoras. É o advogado o verdadeiro fiscal da lei e cabe a ele se indignar e se insurgir contra normas que violam a Carta Magna.

Não há espaço para esmorecimento ou conformação, deve-se bradar e agir, sempre pautado na força dos argumentos (não no argumento da força). A atividade do advogado criminal não admite o "sempre foi assim"/"isso é assim mesmo" (senso comum teórico dos juristas3), a luta é diária e a batalha é pelo aprimoramento do Estado Democrático e Social de Direito e pela aplicação integral das regras do jogo. Utopia hoje, carne e osso amanhã.4

Nessa ordem de ideais, convém analisar, ainda que de maneira perfunctória, a adequação do crime previsto no parágrafo único do art. 4º da lei 7.492/86 com a norma fundamental. Tal crime possui o nomen juris de gestão temerária de instituição financeira e vem disposto na lei que define os crimes contra o sistema financeiro nacional.

Para analisar o tipo penal em comento, utilizaremos o método de contraste entre os argumentos pela constitucionalidade e pela inconstitucionalidade do crime, para daí extrair uma conclusão. É dizer, do atrito entre teses pretendemos chegar à resposta adequada à Constituição Federal.5

Pois bem.

A Jurisprudência amplamente majoritária entende que o crime de gestão temerária é constitucional.

À título exemplificativo, trazemos à colação precedente do Supremo Tribunal Federal, no ARE 953.446 AgR/MG, de relatoria do ministro Dias Toffoli, no qual o art. 4º, parágrafo único, da lei 7.492/86 (gestão temerária) foi considerado constitucional.

Sintetizando, o ministro Dias Toffoli argumenta pela constitucionalidade do tipo asseverando que a:

indeterminação não se mostra em grau suficiente para configurar ofensa ao princípio constitucional da legalidade, porquanto perfeitamente apreensível no contexto das condutas de natureza formal tipificadas no âmbito do direito penal econômico,visando à coibição de fraudes e descumprimentos de regras legais e regulamentares que regem o mercado financeiro.

(...)

Ademais, conforme bem consignado no acórdão recorrido, diante da impossibilidade de o legislador prever a descrição de todos os atos temerários que poderiam ser praticados em uma instituição financeira, valeu-se desse elemento normativo do tipo - “temerária” -, o que é absolutamente válido no direito penal, especialmente nos tipos penais abertos (como exemplo clássico, temos grande parte dos delitos culposos).

A doutrina de Rodolfo Tigre Maia também sustenta a constitucionalidade sob o argumento de que não há violação do princípio da reserva legal, porquanto o tipo é perfeitamente passível de delimitação conceitual concreta.6

Ivan Lira de Carvalho igualmente aduz que não existe “lacunosidade no núcleo “gestão temerária”, pois temerário é tudo aquilo que é arriscado, imprudente, perigoso, arrojado, audacioso, precipitado, sem fundamento, sem base ou infundado"7. Conclui afirmando que “cavucar iniquidades (...), ao pueril argumento de que o preceptivo ostenta incabível largueza atentatória às garantias do cidadão, é querer - sem razão - desarmar o Estado de um sério instrumento que visa coibir o engodo em continuação que vem sendo registrado no âmbito das instituições financeiras”.8

Noutro giro, podemos afirmar que doutrina amplamente majoritária encampa a tese da inconstitucionalidade do delito de gestão temerária. Por todos, citamos Cezar Roberto Bitencourt e Juliano Breda9; Luiz Régis Prado10 e Guilherme de Souza Nucci11 que afirmam que o crime de gestão temerária é inconstitucional por violar o Princípio da Legalidade, no aspecto da taxatividade (lex certa).

A crítica comum dos mencionados doutrinadores se apoia na vagueza apresentada na redação do delito "Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira: (...) Parágrafo único. Se a gestão é temerária", plasmando um tipo penal exageradamente aberto, o que daria azo ao total decisionismo (ou seja, o juiz decidirá como quiser) e violaria a segurança jurídica do cidadão (para se conhecer o proibido não pode haver crime sem lei anterior, precisa e clara, que o defina).

Destacamos, outrossim, que em que pese a pouca aderência no acolhimento da tese da inconstitucionalidade do delito de gestão temerária pela jurisprudência, temos pelo menos uma exceção, qual seja, a sentença prolatada pelo juiz Federal Flávio Antônio da Cruz nos autos da Ação Penal 2003.70.00.039529-0/PR, na qual se declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 4º da lei 7.492/86 (controle difuso), por violação ao art. 5º, inciso XXXIX da Constituição Federal.12

Contrastando os argumentos resumidamente lançados, entendemos que é gritante a incompatibilidade do crime de gestão temerária, previsto no parágrafo único do art. 4º da lei 7.492/86, com a Constituição Federal, por violar o Princípio da Legalidade, explicitamente consagrado no inciso XXXIX do art. 5º da Lei Maior, no título dos direitos e das garantias fundamentais.

Como é sabido, o mencionado princípio confere previsibilidade da intervenção do poder punitivo estatal (Claus Roxin) e o sentimento de segurança jurídica (Eugenio Raúl Zaffaroni).13 E, a conduta, tal como descrita no tipo (se a gestão é temerária), viola, principalmente, a função da legalidade que veda incriminações vagas e indeterminadas (nulum crimen nulla poena sine lege certa)14, uma vez que o adjetivo “temerária” obviamente não é suficiente para uma delimitação conceitual concreta.

Ora, a vagueza de criminalizar a conduta de gerir temerariamente uma instituição financeira dá margem a toda sorte de enquadramentos, ficando ao livre e subjetivo critério do intérprete a subsunção ou não ao tipo penal.

O tipo é extremamente aberto e, portanto, longe de ser compatível com o Princípio da Legalidade, afinal o que seria precisamente gestão temerária em uma atividade, por vezes, arriscada, oscilante e aleatória como a do mercado financeiro?

Conduta temerária, inclusive, é sinônimo de conduta imprudente, fato que, por si só, conduz ao absurdo de possibilitar a punição de um comportamento imprudente (logo, culposo) como se doloso fosse.

É dizer, o tipo em análise exige do agente consciência e vontade de gerir temerariamente instituição financeira para caracterização do delito (elemento subjetivo é o dolo), não havendo previsão da modalidade culposa. Ou seja, a previsão genérica da conduta ilícita pode dar ensejo a punição por dolo de comportamento claramente culposo.

Nas palavras de Manoel Pedro Pimentel:

a forma culposa não foi prevista. Entretanto, e aqui reside outro perigo da exagerada abertura do tipo objetivo, os léxicos apontam, como sinônimo do vocábulo temerário, a palavra imprudente. Poderá, portanto, ser interpretada como gestão temerária a simples gestão imprudente, embora esta se caracterize por tratar-se de comportamento meramente culposo, uma vez a imprudência é uma das formas de culpa, consoante o disposto no art. 18, II, do CP. A confusão será possível, portanto, em razão da tautologia, que apresenta imprudência como causa de comportamento temerário, que, por sua vez, teratologicamente, geraria um crime doloso.15

Ressalte-se que não se está contestando a importância da criminalização de condutas abusivas perpetradas por administradores de instituições financeiras no exercício da sua atividade. Até porque, a objetividade jurídica é claramente relevante: higidez da gestão das instituições financeiras e, por consequência, tutela do patrimônio da própria instituição financeira e de seus investidores16, bem como para evitar uma “corrida bancária”. O que se objeta é a forma como o tipo penal foi redigido.

A necessidade de criminalização ou descriminalização da conduta deve ser discutida e resolvida pelo Legislativo (ouvindo evidentemente os estudiosos da matéria), havendo, a propósito, interessantes propostas de criminalização aparentemente compatíveis com a Constituição Federal, a saber: criação do crime de infidelidade patrimonial17 e exigência do elemento subjetivo específico prejuízo, nos moldes do art. 3º, inciso IX da lei 1.521/5118, por exemplo.

De qualquer forma, atualmente, o tipo penal carece de compatibilidade com a Carta Magna. A imputação do crime, portanto, não é admissível, porque exacerbadamente vago e aberto, não cabendo ao intérprete, ademais, complementar previsões defeituosas de crimes, sob pena de violação da separação dos poderes.

Além disso, é importante destacar um equívoco da doutrina ao apontar o crime de gestão temerária como inconstitucional. Não é o caso, porque tecnicamente estamos diante do instituto da recepção.

É lição básica do direito constitucional que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma é aferida no seu nascedouro em face da Constituição vigente. As normas infraconstitucionais existentes no ordenamento jurídico quando do advento de uma nova Constituição continuam produzindo seus efeitos se com ela compatíveis em seu conteúdo.

A lei 7.492 foi promulgada no ano de 1986, logo antes da entrada em vigor da Constituição cidadã.

Assim, como a norma analisada é pretérita (pré-constitucional) e não há que se falar em “inconstitucionalidade superveniente”19, afirmamos, sem medo de errar, que o parágrafo único do art. 4º da lei 7.492/86 não foi recepcionado (ou, se preferirem, foi revogado tacitamente) pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista que fere a previsão contida no art. 5º, inciso XXXIX.

A parca descrição típica do crime, portanto, é materialmente incompatível com a Lei Maior.

É essa, no nosso entender, a resposta adequada à Constituição.

No entanto, considerando a refratária jurisprudência que insiste em contrariar os ditames da Constituição Federal, é importante exigir, alternativamente ao argumento da não recepção do tipo pela ordem constitucional vigente, a interpretação restritiva como forma paliativa de redução de danos.

Assim, cumpre exigir que só haverá subsunção ao tipo penal se restar demonstrado algum prejuízo concreto: falência: insolvência; descumprimento de cláusulas contratuais com grave prejuízo, por exemplo.

Além disso, imperioso também que se adote a teoria da imputação objetiva do resultado consagrada por Claus Roxin para análise e julgamento do crime de gestão temerária, como recomendado por Tórtima.20

Possível concluir que o crime de gestão temerária, à toda evidência, não foi recepcionado pela Constituição Federal por ferir de morte o Princípio da Legalidade.

Por fim, necessário consignar que não se pode deixar de lutar pelo reconhecimento da inconstitucionalidade de normas contrárias à CF e pela inaplicabilidade de normas não recepcionadas pela atual Carta Política, afinal não vale tudo e uma dogmática penal humanizada deve cultuar a contenção do poder punitivo (a forma é uma garantia primordial do cidadão, jamais um argumento pueril que pode ser afastado para privilegiar um enigmático interesse público de punir), uma vez que, como disse certa feita o mestre Eugenio Raúl Zaffaroni: somos filhos dos Iluministas, mas netos dos Inquisidores. Então, toda atenção e cuidado são poucos!

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1 Ver verbete constrangimento epistemológico em: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017. p. 41-44.

2 Para saber mais ver: MALAN, Diogo. Advocacia criminal e dever de indignação. Acesso em 09 de setembro de 2020.

3 Ver verbete senso comum teórico dos juristas em: STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 269-271.

4 Como gosta de dizer Aury Lopes Jr. parafraseando Victor-Marie Hugo.

5 Ver verbete resposta adequada à constituição (resposta correta) em: STRECK, Lenio Luiz. Op. cit. p. 251-268.

6 MAIA, 1999, p.60 apud BITENCOURT e BREDA, 2014, p. 76-77.

7 LIRA DE CARVALHO, 1999, p. 467-468 apud PRADO, 2018, p. 141-148.

8 Ibidem.

9 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional e contr ao mercado de capitais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 76-81.

10 PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 141-148.

11 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 841-846.

12 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Op. cit. p. 80-81.

13 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Revan, 2011. 4ª reimpressão, fevereiro de 2019. p. 65.

14 BATISTA, Nilo. Op. cit. p. 75-81.

15 PIMENTEL, 1987, p. 52 apud NUCCI, 2020. p. 841-846.

16 PRADO, Luiz Regis. Op. cit. p. 141-148.

17 Vide tese de doutoramento: GRANDIS, Rodrigo de. O delito de infidelidade patrimonial e o direito penal brasileiro. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

18 BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Op. cit. p. 80, citam como proposta de nova redação a seguinte: “Art. 4º. Gerir fraudulenta ou temerariamente instituição financeira levando-a à falência ou à insolvência, ou não cumprindo qualquer da cláusulas contratuais com grave prejuízo dos interessados”.

19 Ver o leading case: ADI 2, Relator(a): PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 06/02/1992, DJ 21-11-1997 PP-60585 EMENT VOL-01892-01 PP-00001.

20 TÓRTIMA, p. 35 apud PRADO, 2019, p. 141-148.

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*Arthur Martins Andrade Cardoso é especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro voluntário do Instituto Pro Bono (IPB). Colaborador voluntário do Instituto Luiz Gama (ILG). Advogado do escritório Asseff & Zonenschein Advogados.

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