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(Im)possibilidade de determinação de medida executiva atípica de apreensão de CNH e passaporte por dívida?

A questão surge diante de um novo capítulo que se inicia sobre o tema, pois na data de 19/08/20 o STJ reconheceu a controvérsia (nº 205) que poderá ser submetida ao rito dos recursos repetitivos para fixação de tese.

14/9/2020

O artigo 789 do Código de Processo Civil, dispõe que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Aqui devemos compreender bens como sendo o patrimônio do devedor, e este sendo uma universalidade de direitos que detenham valor econômico1 - (art. 91 do CC: “constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”).

Portanto, via de regra, o devedor não sofrerá medidas de caráter pessoal por dívidas, como restrição da liberdade, ofensa a honra, liberdade ao trabalho, à privacidade, exceto nas hipóteses legais, como a prisão civil por dívida alimentícia (art. 528, §3º, CPC)2.

Não podemos negar a necessidade se flexibilizar a regra em determinadas situações para que se alcance em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, conforme preza o artigo 4º do CPC “As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.”

Não menos importante, nos termos do artigo 6º, “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” e nos termos do artigo 5º, “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.”

O que fazer então, diante das corriqueiras situações na prática forense, em que o executado tenta se furtar da responsabilidade para o cumprimento de suas obrigações em procedimento de execução? Seja ocultando bens, se comportando de má-fé, não cooperando, ou seja, em evidente intenção de frustrar a execução.

Ou então, o que fazer quando não se encontram bens e o devedor não os indicam, apesar de ostentar boa qualidade de vida?

A resposta não é fácil se a intenção é pretender aplicar medidas executivas atípicas, e aqui nos limitamos a esta análise e reflexão.

Tais condutas, evidentemente, devem ser punidas caso se configurem como ato atentatório a dignidade da justiça e, além disso, merecem de fato uma contramedida como forma de desestimular tal comportamento, servindo também de caráter pedagógico, podendo o juiz, nos termos do artigo 139, IV do CPC, “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.”

Surge então a possibilidade de “criar” medidas executivas “atípicas” através de precedente, a serem aplicadas, tais como a apreensão de passaporte, CNH, bloqueio de cartão de crédito, entre outras.

A questão que se faz é se essas medidas surtirão algum efeito prático, pois a cada caso concreto reclama-se uma medida específica, e tais medidas, se aplicadas sem critério, poderão representar tão somente uma punição aos devedores, que na maioria das vezes, de fato, não possuem patrimônio porque se encontram em situação precária.

Além disso, é duvidosa a constitucionalidade de tais medidas, criadas através de precedente, uma vez que, em primeiro lugar, estaria o judiciário legislando, ou seja, tipificando medidas executivas atípicas e, em segundo lugar, essas medidas poderiam representar graves violações aos direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, se aplicadas sem critérios.

A tarefa certamente não é fácil e, entendemos que o mais adequado seriam tais medidas executivas atípicas passarem pelo crivo do processo legislativo e eventual controle de constitucionalidade, passando por fim a integrarem a norma posta, evitando-se com isso o arbítrio e a violação de direitos fundamentais, uma vez que a cultura quanto ao respeito dos precedentes ainda não vem sendo satisfatória, conforme pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, objeto do 1º Concurso de Artigos Científicos do Centro de Pesquisas Judicias – Prêmio Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, de onde apreciamos o artigo de Eric Dore: A magistratura e a consolidação de uma cultura de precedentes3.

José Miguel Garcia Medina4: “... segundo pensamos, o juiz não “cria” o direito. Mesmo quando decide a partir de princípios, ou resolve questões à luz de textos legais que contenham expressões vagas, não está autorizado o juiz a julgar “a partir do nada”, como se legislador fosse. Deve o juiz encontrar a solução no sistema jurídico, proferindo decisão harmônica com o que se produziu na história e na comunidade jurídica.”. E sustenta ainda com relação à aplicação do artigo 139, IV do CPC: “Essa regra não pode como é intuitivo, tornar despiciendas as medidas executivas típicas, previstas na lei processual. Fosse assim, bastaria a existência de tal disposição e todo o regramento restante previsto na lei processual quanto às medidas executivas poderia ser desprezado. Ademais, como antes se observou um modelo baseado na tipicidade das medidas executivas tende a ser satisfatório, na maioria dos casos.”

Portanto, tendo o Código de Processo Civil adotado um modelo típico de medidas executivas, primando pela legalidade e segurança jurídica, inviável que sejam criadas novas medidas executivas através de precedente.

De toda sorte, sendo tais medidas executivas atípicas tema de alta indagação e de legítimas desconfianças constitucionais – por ora, indireta ou reflexa -, o STJ em 19/08/20, reconheceu a importância do tema e qualificou como candidatos à afetação e à sistemática dos repetitivos o REsp 1869395/SP5, e REsp 1866988/SP6, com a seguinte controvérsia jurídica de número 205:

(im)possibilidade de determinação de medidas executivas atípicas – suspensão de Carteira Nacional de Habilitação – CNH, bloqueio de cartões de crédito e retenção de passaporte - para assegurar o pagamento de débito reconhecido por ordem judicial, nos termos do art. 139, IV, do CPC.

É importante relembrar que o STJ entende atualmente pela possibilidade de tais medidas executivas atípicas, conforme parâmetros já fixados no RHC 97.8767.

Assim, o que temos atualmente é um tema controvertido tanto na doutrina quanto na jurisprudência e, até que se tenha uma decisão final ou suspensão na forma do artigo 1.036, 1.037 do CPC, caberá ao juiz diante de cada caso concreto enfrentar à análise da medida executiva atípica mais adequada, uma vez que não se pode negar a prestação jurisdicional.

Além disso, cumpre ressaltar que dentro do mesmo Capítulo em que está inserido o artigo 139 do CPC (que ora tratamos das medidas executivas atípicas), está também o artigo 143, que dispõe: “O juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte. Parágrafo único. As hipóteses previstas no inciso II somente serão verificadas depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência e o requerimento não for apreciado no prazo de 10 (dez) dias.”

Ainda, é importante relembrar quanto a possibilidade de determinação de medidas executivas atípicas de ofício, tema debatido e aprovado pelo Fórum Permanente dos Processualista Civis - FPPC, conforme o seguinte Enunciado 396: “(art. 139, IV; art. 8º) As medidas do inciso IV do art. 139 podem ser determinadas de ofício, observado o art. 8º. (Grupo: Poderes do juiz).”

Por fim, caso entenda o juiz, na atualidade, pelo deferimento de qualquer medida executiva atípica, seja de ofício ou a requerimento, deverá se atentar para uma adequada fundamentação, de modo a evitar abuso e violação de direitos, sempre respeitando a legalidade, o contraditório, e avaliando a razoabilidade/proporcionalidade da medida diante do caso concreto.

__________

1- VENOSA, Sílvio de Salvo, Código Civil interpretado, 4ª ed. – São Paulo: Atlas, 2019.

2- Art. 528. No cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. § 3º Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

3- Eric Dore: A magistratura e a consolidação de uma cultura de precedentes.

4- MEDINA, José Miguel Garcia, Direito processual civil moderno, 3ª ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

7- Clique aqui.

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*Vinícius Axelson Bueno é advogado. Pós-graduando em Direito Público e Privado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ.

 

 

 

 

 

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