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Ainda a telemedicina – É inconstitucional a renúncia do Congresso em favor do CFM para legislar sobre a matéria

A telemedicina se refere, grosso modo, à utilização de tecnologia para prestação de serviços médicos e apesar de a discussão parecer recente, o tema já foi objeto de regulamentações anteriores, havendo acendido debate sobre os limites até então impostos pelo CFM.

3/9/2020

O Congresso Nacional derrubou em 13 de agosto último o veto do presidente da República ao art. 6º da lei 13.989, de 15 de abril 2020, que dispõe sobre o uso da telemedicina na pandemia. Esse dispositivo prevê que superada a “crise ocasionada pelo coronavírus”, a regulamentação da Telemedicina competiria ao Conselho Federal de Medicina – CFM, que tinha sido vetado pelo Presidente sob a justificativa de que a matéria deveria ser tratada por lei.

A telemedicina se refere, grosso modo, à utilização de tecnologia para prestação de serviços médicos e apesar de a discussão parecer recente, o tema já foi objeto de regulamentações anteriores, havendo acendido debate sobre os limites até então impostos pelo CFM, especialmente quanto à teleconsulta1.

Em 2018, o CFM editou a resolução 2.217/18, que disciplinaria a telemedicina no país de forma mais clara e expressa, não fosse a circunstância inusitada de ter sido revogada antes mesmo de entrar em vigor.

Com a natural pressão da sociedade civil decorrente da pandemia, diante da inelutável necessidade de isolamento social, o CFM autorizou extraordinariamente, em 19 de março de 20202, a telemedicina abrangendo Teleorientação, Telemonitoramento e Teleinterconsulta.

A ausência de teleconsulta no rol dos procedimentos autorizados produziu – e não poderia ser diferente – fortes críticas por médicos e pacientes, por ser o único procedimento que autoriza prescrições e requisições diagnósticas.

A solução não veio do CFM, mas do Ministério da Saúde que editou a portaria MS 467/20, aprovando a telemedicina de forma mais ampla e autorizando a emissão de receita e atestados com uso da tecnologia.

Depois disso é que se editou a lei 13.989/20, exclusivamente voltada à prática da medicina e de efeitos temporários (durante a crise da pandemia, ou seja, ao menos até 31 de dezembro de 2020), definindo telemedicina como “o exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoções de saúde”.

Por ser de vigência temporária, é intuitivo se perguntar o que aconteceria quando se expirasse a validade da norma. Com a agora derrubada do veto ao seu art. 6º, a rigor e ao menos nos termos da Lei, caberia ao CFM editar regulamentação sobre a telemedicina.

No entanto, essa outorga irrestrita de atribuições ao Conselho Federal de Medicina é inconstitucional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende que os Conselhos Profissionais, como o CFM, têm natureza jurídica de autarquia (MS 22.463 e ADIn 1.717), portanto, entidades de direito público que devem respeito aos princípios constitucionais próprios da Administração Pública, inclusive o da legalidade.

Lei, no sentido empregado pela Carta Magna, é aquela em sentido formal e material, assim compreendida como a elaboração normativa oriunda do Poder imbuído constitucionalmente dessa tarefa e que possua caráter geral, abstrato e obrigatório, com a finalidade de ordenamento da vida coletiva.3

Ao Chefe do Executivo cabe regulamentar a lei, o que faz por decreto (art. 84, inciso IV da Constituição). Para os ministros de Estado e demais autoridades públicas, restou editar instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos, em cumprimento ao contido no art. 87, § único, inciso II, da Constituição Federal.

A delegação ampla do Legislativo ao Executivo para elaboração de normas, com apoio na Constituição de 1967, foi suprimida e os resquícios desse procedimento foram disciplinados pelo art. 25, inciso I, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988.

Não existe nenhuma lei, em sentido formal e material, que tenha inaugurado previsão sobre telemedicina, seja para autorizá-la ou proscrevê-la, antes da e após o término da pandemia.

O que o Congresso Nacional fez ao aprovar o art. 6º da lei 13.989/20 foi se demitir das competências que a Constituição Federal lhe outorgou e transferir, às inteiras e sem qualquer balizamento prévio, para o Poder Executivo (autarquia) a aptidão de romper ineditamente no ordenamento jurídico com o tratamento que melhor lhe aprouver sobre questão relevantíssima, que toca importantes direitos fundamentais (do médico e do paciente) e cujo dever de zelar lhe foi confiado pelos princípios que inspiram o próprio ideal democrático.

Ainda que quisesse renunciar a essa prerrogativa constitucional, o Congresso Nacional só poderia fazê-lo de acordo com o design definido no art. 68 da Carta Política e reservado para a denominada Lei Delegada, aprovada por Resolução do Congresso (que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício) e não por lei ordinária.

A renúncia ao poder de legislar, como operada na lei 13.989/20, contraria a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, no particular, tem entendido que “o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado (...) produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar”.4

O Conselho Federal de Medicina é uma autarquia naturalmente dotada de autonomia administrativa e financeira, mas que tem por único poder normativo atribuído pela lei 3.268/57 (editada antes da Constituição Federal de 1988), votar e alterar o Código de Deontologia Médica.

Por isso enaltecer a jurisprudência em relação a esses Conselhos que “as resoluções, como atos infralegais, não se prestam a impor comportamentos não disciplinados por lei, haja vista que a função do ato administrativo restringe-se a complementar esta, de modo a permitir sua concreção, jamais instaurando, primariamente, qualquer forma de cerceio a direitos de terceiros”5

Não se pode, ainda nesse aspecto, comparar a posição do Conselho Federal de Medicina em relação às denominadas Agências Reguladoras, que são autarquias especiais, que detêm detendo atribuições executivas, decisórias e normativas.

Isso porque, dentre outros motivos, há distinção entre os poderes de regulação exercidos pelas agências reguladoras e a regulamentação de lei para seu estrito cumprimento pelas autarquias e, ademais, mesmo no caso das agências reguladoras, seu poder normativo está intrinsecamente atrelado às definições prévias estabelecidas em lei, que inexistem no caso da telemedicina.

Segundo bem anotado pela e. min. Rosa Weber, no julgamento da ADIn 4.874/DF, reconhece-se que o legislador deve definir as metas a serem perseguidas pelas autarquias especiais, os princípios a serem observados, os limites de atuação, os contornos das atividades, estabelecendo a margem de atuação dessas entidades.

É possível afirmar, portanto, que a renúncia do Congresso Nacional em regulamentar a matéria em favor do Conselho Federal de Medicina contraria os princípios da separação dos poderes e da legalidade, oferecendo a norma à nulificação por sua inconstitucionalidade.

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1 Resolução CFM 2.217/18. [...] Capítulo V - RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES

É vedado ao médico:

Art. 37 Prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente, salvo em casos de urgência ou emergência e impossibilidade comprovada de realizá-lo, devendo, nesse caso, fazê-lo imediatamente depois de cessado o impedimento, assim como consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa.

§ 1º O atendimento médico a distância, nos moldes da telemedicina ou de outro método, dar-se-á sob regulamentação do Conselho Federal de Medicina.

§ 2º Ao utilizar mídias sociais e instrumentos correlatos, o médico deve respeitar as normas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina.

Resolução CFM 1.643/02. Define e disciplina a prestação de serviços através da telemedicina.

Parecer CFM 17/18, Processo-Consulta CFM 8732/09

Resolução CFM 2.264/18, define e disciplina a telepatologia como forma de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias.

Resolução CFM 2.107/14, define e normatiza a telerradiologia

2 Ofício CFM 1756/20, disponível clicando aqui

3 FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, FORENSE, 5ª ed., Rio de Janeiro: 1975

4 ADI 1296 QO, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 21/9/95, DJ 1/8/03 PP-00108 EMENT VOL-02117-20 PP-04139.

5 TRF-1ª Região, Apelação Cível 2000.38.00.016656-0, Relª. Desª. Federal Maria do Carmo Cardoso, DJe de 22/5/09.

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*Wesley Bento é sócio advogado do escritório Bento Muniz Advocacia.






*Teresa de Souza Dias Gutierrez é sócia advogada do escritório Machado Nunes Advogados.


 

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