Diante da Pandemia de Covid-19, os campeonatos de futebol oferecidos pelas Federações Estaduais e pela Confederação Brasileira de Futebol foram suspensos, empurrando o futebol para sua maior crise financeira: sem espetáculo esportivo, não há receita de bilheteria, patrocinadores, cotas de TV.
O medo da pandemia não foi suficiente para manter a suspensão. Amparada em recados de apoio do governo federal (notório crítico do isolamento social), a pressão de dirigentes de clubes e federações deu resultado: os campeonatos retornaram.
Os cartolas talvez não tenham compreendido (ou, se compreenderam, decidiram ignorar) a consequência do retorno dos campeonatos neste momento, nem a amplitude de responsabilidade que estão trazendo para dentro de seus clubes.
Vivemos a maior crise sanitária e humanitária do século. Então, inescapável a discussão sobre a influência da Covid-19 no ambiente do trabalho, em especial, se pode ou não ser considerada uma doença ocupacional. O Presidente da República saiu a editar medidas provisórias, dentre elas, a MP 927, trazendo consigo o famigerado artigo 29, cujo teor era que “os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”.
Em 29 de maio de 2020, julgando Ações Diretas de Inconstitucionalidade, o STF suspendeu a eficácia do artigo 29, daí retirando o obstáculo a tomar a Covid-19 como doença ocupacional.
É verdade que o STF não deu reconhecimento ocupacional genérico à Covid-19, mas deu o nítido recado de que a MP 927 não seria usada como escudo protetor.
Da interpretação dada pelo STF, volta-se à lei 8.213/91, que, por excelência, regula a matéria. O seu artigo 20, inciso II, define doença do trabalho como aquela “adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente”. O §2º do artigo 20 autoriza a ser considerada em caráter ocupacional de excepcionalidade, uma doença não prevista na relação normativa, mas que tenha resultado das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.
Há poucos dias, em 19 de julho de 2020, sem confirmação pelo Congresso Nacional, essa MP 927 perdeu validade. Mas o debate continua. E o STF saiu na frente, dando o conteúdo interpretativo no âmbito trabalhista e previdenciário da Covid-19, levando de arrasto os demais Tribunais.
Isto não impede o surgimento de teses rejeitando a natureza ocupacional da Covid-19. Utilizam-se da alínea “d” do §1º do artigo 20 da lei 8.213/91, pela qual não se considera doença ocupacional a “doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho”.
Essa tese de exclusão evidentemente poderá ser utilizada com sucesso nas relações laborais de trato comum, partindo da premissa que o empregador adota as normas sanitárias e a natureza da atividade não implique em exposição anormal a risco ou contato direto com a doença. Mas não no futebol.
O futebol profissional é diferente. Sua essência é justamente o contato, o esbarrão, o suor. No futebol, se empurram, se abraçam; a marcação exige proximidade, é inevitável. A bola passada nas mãos suadas de um, vai a cabeça de outro, encontrando o corpo de mais outro.
Não existe futebol em isolamento. A prevenção ao contágio, neste ambiente, é impossível. Então, sendo o Covid-19 uma doença de alto contágio, qualquer medida adotada para dar segurança aos jogadores em uma partida será ineficaz.
A natureza da atividade gera a exposição anormal a risco e o contato direto. E este fato independe de prova, sendo público e notório, daí se mostra inútil eventual defesa patronal baseada em mero ônus probatório.
A não ser que promovam a partida utilizando de EPI suficiente à neutralização do contágio (roupas anticontaminação, visualmente simulando uma partida entre astronautas), o que é impensável, o Covid-19, no futebol, deverá ser considerado doença ocupacional.
E a repercussão dessa natureza jurídica para os clubes é fatal. Confirmada pelo Tribunal, haverá responsabilidade de envergadura, incluindo aí danos materiais e morais, sem contar ações regressivas do INSS, ações civis públicas, dentre outras.
Não há defesa possível a se esquivar desta responsabilidade. Expor os jogadores a uma partida nesse momento de calamidade, com o conhecimento notório do alto grau de contágio da Covid-19, inclusive de sua alta taxa de mortalidade (já passamos a marca dos 100 mil mortos e nada indica que irá estacionar), os clubes assumem o risco à integralidade.
Na jurisprudência, os clubes terão dificuldade de encontrar tese que satisfaça seus interesses. E a coisa fica pior para clubes que não contratam seguro de acidentes de trabalho desportivo. Pelo artigo 45 da lei 9.615/98, “as entidades de prática desportiva são obrigadas a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva, para os atletas profissionais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos”.
Seu valor, conforme dispõe o § 1º do mesmo artigo 45, chega a um mínimo de 13 vezes a remuneração, ou no texto oficial: “A importância segurada deve garantir ao atleta profissional, ou ao beneficiário por ele indicado no contrato de seguro, o direito a indenização mínima correspondente ao valor anual da remuneração pactuada”.
E mais, o clube fica responsável por toda a logística, contratação e atendimento médico em um momento em que faltam UTI’s suficientes para atender a população. É o teor do §2º do artigo 45: “A entidade de prática desportiva é responsável pelas despesas médico-hospitalares e de medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta enquanto a seguradora não fizer o pagamento da indenização a que se refere o § 1o deste artigo”.
Para se ter uma ideia do risco apenas financeiro, um atleta de primeiro escalão, que disputa a Série A do Campeonato Brasileiro promovido pela CBF, recebe salário mensal de 500 mil reais. Logo, no caso de morte do profissional, somente a título de indenização substitutiva por seguro não contratado, o clube já inicia com responsabilidade de 6,5 milhões de reais. E não para por aí. As indenizações materiais e morais também levarão em conta o valor desse salário. No final, para um único jogador, um clube poderá se tornar devedor de valores superiores a 15 milhões de reais.
Não será uma surpresa se os clubes repassarem parte dessa dívida às entidades de administração do futebol estadual e nacional, uma vez que as partidas estão sendo realizadas por imposição dessas entidades, logo, poderão ser consideradas solidariamente responsáveis pela reparação, por força do artigo 942 e parágrafo único do CC.
É por tudo isso, que o retorno do futebol profissional, nesse cenário, implica em risco objetivo à integridade física e à vida dos atletas e suas famílias, repercutindo em passivo trabalhista portentoso a impactar no já combalido cofre dos clubes de futebol.
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