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O Estado de coisas inconstitucional no Direito Pátrio

Observa-se considerável distanciamento entre o que é previsto no Título II de nossa Constituição Federal, tratando “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e o que se constata no meio social quanto a sua materialização. As inúmeras lesões aos Direitos e Garantias Fundamentais geram incontáveis lides, geralmente envolvendo o Estado e os administrados.

27/8/2020

Os Direitos e Garantias Fundamentais apresentam papel de destaque na Constituição da República Federal de 1988, entretanto, o fato de estarem expressamente descritos na Lei Magna não os tornam necessariamente efetivos, aplicáveis imediatamente aos cidadãos em sua plenitude.

Observa-se considerável distanciamento entre o que é previsto no Título II de nossa Constituição Federal, tratando “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e o que se constata no meio social quanto a sua materialização. As inúmeras lesões aos Direitos e Garantias Fundamentais geram incontáveis lides, geralmente envolvendo o Estado e os administrados.

Em verdade, o que se infere é que diante das omissões dos Poderes Executivo e Legislativo na efetivação dos Direitos e Garantias Fundamentais, o Judiciário é motivado para que assim intervenha, determinando a adoção de medidas necessárias a efetivação de tais direitos.

As violações aos Direitos e Garantias Fundamentais citadas não são casos isolados, como regra são omissões recorrentes dos poderes e que resultam em consequências nefastas à sociedade, bem como dão origem a milhares de demandas, sobrecarregando o Poder Judiciário.

Em decorrência da urgência para se coibir as lesões aos Direitos e Garantias Fundamentais e da ausência de soluções por parte do Legislativo e Executivo, que se declara o Estado de Coisas Inconstitucional.

Uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal ao apreciar uma Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347, no ano de 2015, inseriu o instituto no sistema jurídico pátrio, constando do informativo da Corte o seguinte conteúdo1:

O Plenário concluiu o julgamento de medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental em que discutida a configuração do chamado “estado de coisas inconstitucional” relativamente ao sistema penitenciário brasileiro. Nessa mesma ação também se debate a adoção de providências estruturais com objetivo de sanar as lesões a preceitos fundamentais sofridas pelos presos em decorrência de ações e omissões dos Poderes da União, dos Estados-Membros e do Distrito Federal. No caso, alegava-se estar configurado o denominado, pela Corte Constitucional da Colômbia, “estado de coisas inconstitucional”, diante da seguinte situação: violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais; inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura; transgressões a exigir a atuação não apenas de um órgão, mas sim de uma pluralidade de autoridades. Postulava-se o deferimento de liminar para que fosse determinado aos juízes e tribunais: a) que lançassem, em casos de decretação ou manutenção de prisão provisória, a motivação expressa pela qual não se aplicam medidas cautelares alternativas à privação de liberdade, estabelecidas no art. 319 do CPP; b) que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem, em até 90 dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contadas do momento da prisão; c) que considerassem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro no momento de implemento de cautelares penais, na aplicação da pena e durante o processo de execução penal; d) que estabelecessem, quando possível, penas alternativas à prisão, ante a circunstância de a reclusão ser sistematicamente cumprida em condições muito mais severas do que as admitidas pelo arcabouço normativo; e) que viessem a abrandar os requisitos temporais para a fruição de benefícios e direitos dos presos, como a progressão de regime, o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, quando reveladas as condições de cumprimento da pena mais severas do que as previstas na ordem jurídica em razão do quadro do sistema carcerário, preservando-se, assim, a proporcionalidade da sanção; e f) que se abatesse da pena o tempo de prisão, se constatado que as condições de efetivo cumprimento são significativamente mais severas do que as previstas na ordem jurídica, de forma a compensar o ilícito estatal. Requeria-se, finalmente, que fosse determinado: g) ao CNJ que coordenasse mutirão carcerário a fim de revisar todos os processos de execução penal, em curso no País, que envolvessem a aplicação de pena privativa de liberdade, visando a adequá-los às medidas pleiteadas nas alíneas “e” e “f”; e h) à União que liberasse as verbas do Fundo Penitenciário Nacional – Funpen, abstendo-se de realizar novos contingenciamentos — v. Informativos 796 e 797.
ADPF 347 MC/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9/9/15. (ADPF-347)

A implantação do instituto surge calcada no conceito de “macrojustiça” utilizado pelo Ministro Gilmar Mendes no julgamento da STA 175-AgR/CE, em oposição a “microjustiça” representada pelas ações individuais, sendo o mesmo descrito nos seguintes termos2:

“(...) em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc. Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social, analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte, com invariável prejuízo para o todo.(...) Ainda que essas questões tormentosas permitam entrever os desafios impostos ao Poder Público e à sociedade na concretização do direito à saúde, é preciso destacar de que forma a nossa Constituição estabelece os limites e as possibilidades de implementação deste direito”

Assim, o papel do Poder Judiciário frente a essa realidade é o de coordenar os demais poderes visando a cessação das violações apresentadas, bem como obter a consecução do objeto da demanda, qual seja, a efetivação do direito violado por omissão ou ato comissivo.

Na prática, observa-se a jurisdição funcionando como um instrumento que possibilita, através de determinações e fiscalização, a adequada atuação dos Poderes Legislativo, Executivo e do próprio Judiciário no que diz respeito a concretização dos Direitos e Garantias Fundamentais.

Os questionamentos envolvendo a temática são se o Poder Judiciário, com tal conduta, está violando suas competências constitucionais, afrontando a separação e a autonomia dos poderes instituídos, ou ainda, se há desequilíbrio no mecanismo de freios e contrapesos - Checks and Balances System.

Ou seja, trata-se de instituto que reconhece a repetição em massa de lesões aos direitos descritos com o consequente ajuizamento de ações. Vale destacar que tal conduta foi conceituada com ineditismo na América do Sul pela Corte Constitucional da Colômbia, sendo tal país vanguardista na matéria.

Abordar a temática proposta, qual seja, a implementação dos Direitos e Garantias fundamentais através da aplicação concreta da teoria do Estado de Coisas Inconstitucional, exige a compreensão do que será resguardado, assim faz-se necessário o entendimento do constitucionalismo e da evolução das prerrogativas essenciais que são comuns a todo e qualquer ser humano.

Constitucionalismo é entendido como um conjunto de normas, escritas ou não, que tem por objetivo organizar um Estado, sua estrutura administrativa, impondo limites aos poderes dos governantes através da definição de seus direitos e de suas obrigações.

Assim, mais do que delimitar o poder estatal, o surgimento do constitucionalismo trouxe proteção mínima aos direitos atribuídos à população, aos cidadãos, representado verdadeiro mecanismo de limitação do exercício do poder político.

O Constitucionalismo Antigo iniciou-se na antiguidade e foi até o final do século XVIII. Em tal período observou-se as primeiras limitações do poder estatal através de princípios escritos ou costumeiros, colocando freios nos poderes do monarca.

A segunda fase do movimento ficou conhecido como Constitucionalismo Liberal, observado durante a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, quando o modo de produção passou de artesanal para o mecanizado, o que acarretou a eclosão do capitalismo em sua forma mais agressiva, com grande diminuição dos valores humanos.

O homem passou a ser entendido como uma engrenagem de uma máquina, sem qualquer direito a descanso, saúde e convívio social.

Nesse contexto, surge a primeira dimensão dos direitos fundamentais, baseada nas ideias de liberdade e autonomia pessoais, conduzida pela burguesia na busca de tentar limitar os poderes do Estado em prol do respeito às liberdades individuais.

Nesse período a liberdade é o valor maior do ser humano, inclusive para trabalhar o quanto quisesse, sem qualquer garantia resguardada. O Estado adotava uma conduta negativa, resguardando os direitos individuais sem, contudo, realizar alguma atividade para a concretização dos mesmos.

O Constitucionalismo Moderno iniciou-se no final do século XVIII, após o término da Primeira Guerra Mundial, com as superpotências em precário estado financeiro.

Após os quatro anos de batalhas a economia mundial se esfacelou e os países só conseguiram se manter economicamente saudáveis até 1929, quando houve um colapso econômico, sendo esse o principal motivador para a criação e implantação do “Estado do Bem Estar Social” (Welfare State).

O momento histórico evidenciou a necessidade de intervenção estatal para que os direitos mínimos dos cidadãos pudessem ser exercidos, como por exemplo o direito à vida, a alimentação e a moradia.

Tais preceitos moldaram o constitucionalismo em tal período, que passou a determinar que os Estados tivessem uma constituição escrita, documentos formais, dotados de coercibilidade, que pudessem colocar limites no poder público e resguardar questões éticas e morais, para que assim a Lei Magna passasse a proteger os direitos fundamentais, políticos, sociais e econômicos, característicos ao Estado de Direito.

Em tal período eclode a segunda dimensão dos direitos fundamentais.

Assim, o Estado deixa de ser abstencionista e adota uma postura ativa nas esferas individuais, de protetor de direitos, mas voltado ao coletivo, assegurando preceitos sociais atrelados ao princípio da igualdade: direitos sociais, culturais e econômicos. É o momento dos Direitos Sociais, também conhecidos como prestacionais.

Em sua última fase o constitucionalismo é denominado de Neoconstitucionalismo, e teve início com o final da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).

Com o genocídio sendo exposto e considerado em nível mundial, observou-se que era necessário humanizar, que os homens praticassem atos em favor do próximo, valorizando a dignidade que existe em cada vida humana.

Sob a perspectiva de valores atrelados a dignidade da pessoa humana, obrigações do Estado em oferecer políticas de educação e saúde, direitos fundamentais, redução das desigualdades sociais, passaram a ser redigidos nos textos constitucionais.

Nessa realidade surgem os direitos fundamentais de terceira dimensão, explicitados pela titularidade difusa ou coletiva, direitos transindividuais, visto que são destinados a proteção de grupos, de coletividades, e não do homem isoladamente, são os direitos ligados a fraternidade e solidariedade.

Analisando-se o constitucionalismo e as dimensões dos direitos fundamentais constata-se a grandiosidade dos direitos que se pretende efetivar através do Estado de Coisas Inconstitucional.

Para concretização de tais prerrogativas, asseguradas a qualquer pessoa, a República Federativa do Brasil tem como princípio basilar organizacional a harmonia e a independência entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Constituição Federal de 1988 é expressa nesse sentido, dispondo:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Com a introdução do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema jurídico brasileiro, observando-se a amplitude das medidas que devem ser adotadas para efetivação dos Direitos e Garantias Fundamentais no caso concreto, envolvendo os três poderes, incluindo atos de gestão e legislativos.

O instituto em comento muito se assemelha do movimento denominado ativismo judicial, trazendo os mesmos questionamentos quanto a sua viabilidade jurídica.

Com o ativismo judicial os juízos e tribunais, órgãos técnicos, segundo afirmam alguns doutrinadores, passam a exercer atividades atípicas da jurisdição, e, em uma análise mais ampla, atuam como entes políticos, visto que suas decisões interferem em questões econômicas e sociais que, muitas vezes, encontram no Poder Judiciário a definição de vários institutos e condutas válidas, o que em tese caberia exclusivamente ao Poder Executivo ou Legislativo.

Muito se questiona acerca da legitimidade da função jurisdicional para exercer tal atividade, pois não possuem a chancela da vontade popular, não tendo representantes eleitos pelo povo.

Faz-se necessário registrar que Poder Judiciário, para efetivar os Direitos e Garantias Fundamentais, irá coordenar os demais poderes, fiscalizar, e determinar condutas para fazer cessar a lesão ou implementar uma determinada política.

Assim, o Estado de Coisas Inconstitucional, como mais uma nuance do ativismo judicial, suscita os mesmos questionamentos, aprofundados pela possibilidade real de lesão a competência típica de cada um dos poderes através de decisões emanadas do judiciário.

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1 Informativo 798 do Supremo Tribunal Federal – Setembro de 2015.

2 Clique aqui acessado em 15/7/20. 

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ANDRÉA, Gianfranco Faggin Mastro. Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe dar a última palavra sobre o sentido da constituição? Rio de Janeiro, 2012.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível: Clicando aqui . Acesso em: 26 maio de 2020.

______. Supremo Tribunal Federal. ADI1.458/DF. Disponível: Clicando aqui. Acesso em: 20 maio de 2020.

CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2016.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno (coords). Breves comentários ao novo código de processo civil. São Paulo: RT, 2016.

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*Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior é pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado, professor universitário, sócio fundador escritório SME Advocacia, conselheiro da OAB/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO, membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB NACIONAL e árbitro da CAMES.




*Tiago Magalhães Costa é especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogado, professor universitário, sócio fundador do escritório SME Advocacia. Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/GO.

 
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