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Judicialização da Pandemia

Frente a essa realidade, vários meios de comunicação estão questionando a responsabilidade do Estado em relação aos óbitos ocorridos. O tema é recorrente não só em nosso país, mas no mundo, visto que a pandemia assola toda a humanidade.

19/8/2020

Segundo dados do Ministério da Saúde, no presente momento, o Brasil ultrapassou o número de 108 mil mortes1 em virtude da pandemia causada pelo coronavírus.

Frente a essa realidade, vários meios de comunicação estão questionando a responsabilidade do Estado em relação aos óbitos ocorridos. O tema é recorrente não só em nosso país, mas no mundo, visto que a pandemia assola toda a humanidade.

A imprensa brasileira noticiou que na Itália já existem demandas nesse sentido, relatando que em junho do corrente ano (2020) “Um grupo de parentes de vítimas do coronavírus entrou nesta quarta-feira com uma queixa no tribunal de Bérgamo, no norte da Itália, por negligência e erros na gestão da pandemia que matou mais de 34 mil pessoas no país2.

Destacou ainda que “É a primeira ação legal em grupo movida na península, que está entre os países mais atingidos pelo coronavírus”.

O fenômeno observado está sendo denominado judicialização da pandemia, ou seja, trata-se das consequências da pandemia e sua repercussão no mundo jurídico, focando, principalmente, nas decisões proferidas pelo Poder Judiciário versando sobre o tema.

Quanto a atuação da União em relação a determinação de medidas restritivas, o Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema3, em maio deste ano (2020), na fase inicial da pandemia em nosso país:

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão realizada nesta quarta-feira (6), decidiu que estados e municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências. Por maioria de votos, os ministros deferiram medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 6343, ajuizada pelo partido Rede Sustentabilidade, para suspender parcialmente a eficácia de dispositivos das Medidas Provisórias (MPs) 926/20 e 927/20.

Segundo a decisão, a União também tem competência para a decretação das mesmas medidas, no âmbito de suas atribuições, quando houver interesse nacional.

Ademais, a Corte decidiu que a adoção de medidas restritivas relativas à locomoção e ao transporte, por qualquer dos entes federativos, deve estar embasada em recomendação técnica fundamentada de órgãos da vigilância sanitária e tem de preservar o transporte de produtos e serviços essenciais, assim definidos nos decretos da autoridade federativa competente.

Ou seja, o Supremo Tribunal Federal não isentou a União de adotar medidas restritivas da circulação de pessoas em âmbito nacional visando o combate ao coronavírus, caso fosse necessário. Nesse cenário, observa-se a responsabilidade comum de todos os entes (União, Estados e municípios) para adoção de tais medidas, desde que pautadas em dados científicos.

Entretanto, não é só com medidas restritivas da circulação de pessoas que se combate a pandemia e seus efeitos, mas também com estratégia e gestão eficiente dos recursos públicos, para que, assim, o Sistema Único de Saúde – SUS possa atender a todos os doentes.

Ou seja, a emergência em saúde pública tem que ser encarada através do viés preventivo e do tratamento dos doentes, possibilitando, assim, minorar seus efeitos sociais e econômicos.

Tal atividade requer a ação coordenada do executivo em suas três esferas (federal, estadual e municipal).

Em âmbito federal, através da portaria do Ministério da Saúde 188, de 03 de fevereiro de 20204, a União declarou emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência da Infecção causada pelo coronavírus (2019-nCoV).

Sendo que, posteriormente, ocorreu a edição de vários atos normativos tratando da pandemia, propiciando mecanismos de enfrentamento a doença.

O mesmo se pode dizer, de forma geral, em relação aos Estados e municípios que também atuaram nesse sentido. Todavia, o que se questiona é se tais estratégias foram válidas, efetivas no sentido de salvar vidas e se o Estado, em sua acepção mais ampla, tem responsabilidade pelas mortes ocorridas em virtude da pandemia.

É sabido que o Estado tem que ser eficiente, nos termos do que determina Constituição Federal de 1988 em seu artigo 37, constituindo tal preceito elemento basilar da administração pública.

Nos moldes do que determina o mesmo dispositivo constitucional, em seu parágrafo sexto, “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Ou seja, o Estado, em qualquer âmbito (federal, estadual e municipal), responde de forma objetiva pelos atos de seus agentes, ou seja, independentemente da existência de culpa.

Trata-se da teoria do risco administrativo, aceita e praticada pelo Supremo Tribunal Federal como regra geral em relação a responsabilidade estatal.

Hely Lopes Meirelles afirma que a “...teoria do risco administrativo faz surgir a obrigação de indenizar o dano do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração. Não se exige qualquer falta do serviço público, nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem o concurso do lesado5.

Ou seja, por ato comissivo ou omissivo o Estado somente não responde se houve a comprovação de culpa exclusiva do administrado, do cidadão, o que dificilmente ocorrerá em relação as mortes decorrentes do coronavírus.

Nessa perspectiva, caso a atividade estatal não seja suficiente ou adequada no tratamento ou prevenção da doença causa pelo coronavírus, valendo-se de nossas previsões legais em vigor, em tese, é possível pleitear indenizações pela ocorrência de mortes ou sequelas deixadas pela doença.

Outras medidas também podem ser cobradas judicialmente do Estado, tais como a disponibilização de leitos de UTI's, respiradores, dispensação de medicamentos entre outras, desde que haja respaldo científico, ou seja, comprovação de eficácia.

Casos extremos6 foram relatados no Brasil que, por adequação típica, são passíveis de responsabilização do Estado, alguns dos municípios do Estado do Amazonas em abril deste ano (2020) passaram por tais situações, sendo tal realidade reportada pela imprensa.

Sem acessos por meio terrestre, municípios do Amazonas localizados na floresta amazônica estão enfrentando uma série de dificuldades para receber materiais e insumos para a saúde pública, o que dificulta o enfrentamento da covid-19 em meio à pandemia. Além disso, as cidades sofrem pela falta de estrutura para tratar casos mais graves, e os pacientes precisam ser transferidos de avião para Manaus. Os relatos são de dias dramáticos. "Aqui falta tudo, inclusive sangue para os demais procedimentos. As logísticas ficaram comprometidas pela falta de lancha", diz Francisco Ferreira Azevedo, secretário de Saúde de Santo Antônio do Içá, município que registrou o primeiro caso de um índio.

A Carta Magna, em seu artigo 196, preceitua que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Firme nesse e em outros preceitos constitucionais, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou o projeto de lei 2.033/20, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, o qual determina que, no período de emergência decorrente da covid-19, os herdeiros de pessoa falecida por falta de leitos de UTI possam ter direito a indenização de R$ 60 mil por membro da família e a pensão por lucros cessantes7.

Independentemente da aprovação do projeto de lei citado o questionamento do Estado em virtude das mortes pelo coronavírus é uma realidade em nosso sistema jurídico, do civil law.

Assim, a União, os Estados e os municípios podem ser responsabilizados pelas mortes advindas da pandemia do coronavírus, desde que sejam omissos ou adotem medidas ineficazes ao combate da doença, tratando-se de uma realidade jurídica, e as pretensões nesse sentido podem ser individuais ou coletivas.

É certo que vidas não tem valor econômico, contudo, o direito decorrente de possíveis indenizações pode representar a subsistência de famílias que foram desfeitas pela ineficácia estatal no combate a pandemia.

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1 Site do Ministério da Saúde acessado em 17/8/20. Clique aqui

2 Site do Correio Brasiliense acessado em 14/8/20. Clique aqui

3 Site do Supremo Tribunal Federal acessado em 14/8/20. Clique aqui

4 Site da Imprensa Nacional acessado em 14/8/20. Clique aqui

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 42º Edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.

6 Site de notícias UOL acessado em 14/8/20. Clique aqui

7 Notícias do Senado acessado em 14/8/20. Clique aqui

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*Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior é pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado, professor universitário, sócio fundador escritório SME Advocacia, conselheiro da OAB/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO, membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB NACIONAL e árbitro da CAMES.


*Tiago Magalhães Costa é especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogado, professor universitário, sócio fundador do escritório SME Advocacia. Vice-presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO e vice-presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/GO.

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