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A legislação eleitoral é defasada e incoerente no disciplinamento da propaganda

A própria lei estabelece um regime próprio de sujeição especial aos meios de comunicação no período eleitoral crítico, desde as convenções até o dia do pleito.

18/8/2020

Uma das formas de abuso eleitoral previstas na legislação brasileira é o chamado “uso indevido dos meios de comunicação social”, previsto originalmente na lei complementar 64/90. Historicamente, este uso indevido é conceituado pelo Tribunal Superior Eleitoral como “um desequilíbrio de forças decorrente da exposição massiva de um candidato nos meios de comunicação em detrimento de outros”1.

A própria lei estabelece um regime próprio de sujeição especial aos meios de comunicação no período eleitoral crítico, desde as convenções até o dia do pleito. Dentre as limitações impostas pela lei 9.504/97 às emissoras de rádio e televisão, estão no artigo 45, a vedação de transmitirem programas comentados ou apresentados por pré-candidatos e candidatos; a proibição de usarem trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação; a ilegalidade de emitirem opinião favorável ou contrária a qualquer candidato, partido ou coligação e, de modo geral, o dever de conferirem tratamento privilegiado às pessoas e grupos em disputa no pleito. Igualmente, “a liberdade de manifestação conferida à imprensa escrita (art. 220, caput e § 6º, da CF) não é absoluta na esfera eleitoral, cujo transbordamento - de modo a privilegiar-se em excesso determinado candidato - deve ser rigorosamente punido”2.

A questão posta aqui é, no entanto, que todas essas restrições de tratamento e acesso igualitários aos players eleitorais aplicam-se unicamente aos meios de comunicação por rádio e televisão e à imprensa escrita. Estão fora desse regime especial, portanto, a internet, canais do Youtube, webradios, bem como programas transmitidos pelas redes sociais, como Facebook e Instagram. Há razões claras para tanto: primeiro, porque, como concessões públicas, os serviços de radiodifusão devem permanecer neutras em face das forças políticas em disputa; segundo, porque à época da aprovação da Lei das Eleições, em 1997, rádio e televisão eram os meios de comunicação de maior alcance e, portanto, mais tendentes a influírem sobre o convencimento do eleitor.

Desde lá, no entanto, muito mudou. Hoje, os chamados youtubers e Instagramers possuem, muitas vezes, audiências maiores e mais fiéis que os meios de comunicação tradicionais. É seguro dizer que um vídeo em um canal do Youtube com milhares ou milhões de seguidores tem uma repercussão e um impacto social muito maior. Não somente pelos seus seguidores, mas pela própria facilidade de compartilhamento de qualquer conteúdo na internet (que pode ser visto a qualquer tempo, não apenas “ao vivo”). Não é sem motivo o fato de que atualmente não existem campanhas eleitorais que deixem a internet de fora de suas estratégias.

A campanha deixou as ruas – também pelas restrições que a própria legislação eleitoral fez ao longo do tempo – para chegar aos smartphones e aos computadores de qualquer um, a qualquer tempo. O texto sai e entram em seu lugar os vídeos, áudios, fotos, memes e uma infinidade de recursos audiovisuais. Somando-se, portanto, a fácil compreensão das mídias e a facilidade de seu compartilhamento, a internet pode apresentar um poder de influência até maior sobre o cidadão na formação de suas opiniões político-eleitorais do que jornais impressos, rádio e televisão.

Todos esses fatores não são estranhos à jurisprudência do TSE. A Corte, há muito, considera que a internet é um meio de comunicação como qualquer outro para possível aferição do citado “uso indevido dos meios de comunicação social”3. A regulamentação da matéria e a preocupação com a fiscalização e reprimenda às fake news, perfis anônimos, robôs etc. também não deixa de levar em conta o poder de disseminação de conteúdos eleitorais para influenciarem o equilíbrio de forças no pleito. Mas então, por que as restrições existentes hoje aos meios tradicionais não se aplicam à internet? Por que canais do Youtube e webradios não devem ter o dever de conferir “tratamento isonômico” aos disputantes nas eleições?

É preciso deixar claros alguns pressupostos importantes.

Primeiro, em geral, os agentes e canais de comunicação pela internet estão no campo privado do livre mercado de ideias e, portanto, cabe unicamente aos cidadãos entre si regularem o debate pelo confronto aberto de suas visões de mundo. A regra é a abstenção do Estado e, segundo o próprio TSE, no pleito deve prevalecer a “menor interferência possível no debate democrático”4. Não seria cabível, portanto, trazer à internet um ambiente regulatório típico dos meios de comunicação sob regime de concessão, que mantêm sua titularidade pública, ainda que explorados pela iniciativa privada após a outorga5.

Toda propaganda do pensamento político-eleitoral é também um direito do eleitor, da sociedade. Sem um ambiente de livre circulação de ideias políticas, não há como o cidadão formar suas convicções e escolhas políticas de modo pleno. A liberdade de expressão possui, assim, uma preferred position — posição preferencial — na colisão ou cotejo com outros direitos fundamentais de igual hierarquia, inclusive o da igualdade de oportunidades. Nas palavras do próprio TSE no julgamento do Recurso Especial 5124 (Brumadinho/MG), a “proeminência da liberdade de expressão deve ser trasladada para o processo político-eleitoral, mormente porque os cidadãos devem ser informados da variedade e riqueza de assuntos respeitantes a eventuais candidatos, bem como das ações parlamentares praticadas pelos detentores de mandato eletivo”6.

Por outro lado, a própria defasagem da Lei Eleitoral explica essa contradição. Como dito acima, não era antevisto pelo legislador a ascensão dos apresentadores e veículos de comunicação exclusivamente pela internet, muito menos das mídias sociais e seus influenciadores. Mesmo com sucessivas reformas e “minirreformas” eleitorais, o assunto não foi abordado de modo expresso pela legislação, o que, todavia, pode não ficar fora do “radar” legislativo e judicial por muito tempo. A repercussão da militância política de influenciadores como Felipe Neto, que conta com mais de 30 milhões de seguidores em seu canal no YouTube, já tem incomodado o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

Não se defende nem é possível impor uma simetria regulatória perfeita entre rádio, TV e internet, como já visto. As naturezas pública e privada desses ambientes de informação não permitem qualquer leitura ampliativa do regime de concessão ao regime da liberdade que deve permear o meio virtual. Nem seria desejado, na medida em que, no geral, o policiamento do conteúdo do debate na internet gera consequências mais indesejáveis que o “problema” trazido: refúgio no anonimato, uso de canais clandestinos de discussão, financiamento oculto e ilícito de “influenciadores”, arrefecimento da própria discussão em si. Em resumo, o remédio pode ser pior que a doença.

Fato é que diversos desses canais virtuais comercializam seus espaços, seja pela monetização decorrente da amplitude de acessos, seja pela venda de comerciais de produtos e serviços. Há um mercado multimilionário relacionado aos influenciadores digitais e, consequentemente, há um elemento financeiro que não está à margem da fiscalização eleitoral. Assim, não é arriscado dizer que a aparente “contradição” normativa que o ordenamento jurídico eleitoral apresenta possa ser objeto de análise pela Justiça Eleitoral, ainda que não sob seu conteúdo, mas sob seu aspecto econômico.

Se o debate na internet é livre, é certo também que ele deve ser feito de modo aberto, transparente e, em regra, gratuito, na medida em que o impulsionamento de conteúdos é a única forma lícita de veiculação paga da propaganda eleitoral na internet (artigo 57-C, lei 9.504/977). Ou seja, o financiamento declarado, oculto ou indireto (gratuito ou aferível a partir dos preços de mercado aplicáveis a seus canais) de influenciadores e youtubers por candidatos, partidos e coligações, para que manifestem preferências eleitorais e, com isso, visem influenciar o voto do eleitor e afetar diretamente a paridade de armas na disputa, não está fora do campo de apreciação pela Justiça Eleitoral.

Essa conclusão, no entanto, não permite respostas a todas as perguntas.

Por exemplo, as que exsurgem quando o influenciador é o próprio candidato. Se considerarmos seus canais como pertencentes à pessoa física, pode ele ser veículo de exposição de suas plataformas políticas, não havendo como impor restrições a seu conteúdo no chamado período eleitoral crítico. Por outro lado, considerado o canal como veículo de exercício de atividade empresarial, profissional, de “atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966 do Código Civil), monetizado ou mediante veiculação de anúncios, não seria descabido exigir a segregação da página oficial da plataforma daquela que será utilizada para proveito eleitoral do candidato influenciador.

Igualmente, poderiam esses canais, a depender do conteúdo, serem equiparados a showmícios8, diante da natureza lúdica, teatral ou artística dos conteúdos de influenciadores? Para a Justiça Eleitoral, “evento assemelhado” a showmício seria todo aquele que tenha “utilização de apresentações de grupos artísticos como instrumento para promover a imagem de determinado candidato e angariar votos”9. Ainda que a boa hermenêutica impeça a interpretação extensiva de qualquer limitação à liberdade de expressão, a tendência histórica de proteção à paridade de armas no certame certamente permitiria a restrição à promoção das candidaturas virtuais pelo uso abusivo de lives e shows com artistas, ainda que o dispositivo legal tenha sido pensado para os “eventos” presenciais, não virtuais.

Existem, enfim, muitos pontos a serem debatidos. No entanto, ainda que não seja possível estender o regime jurídico das concessões de rádio e TV para a internet, é indispensável à Justiça Eleitoral preocupar-se com situações de possível abuso de poder a partir de uma interpretação adequada de suas formas legais típicas, perante o caso concreto. Isso tudo só torna mais evidente o anacronismo da legislação eleitoral, que tem se preocupado mais com detalhes comezinhos da propaganda de rua do que em estabelecer diretrizes mais claras à participação desses veículos e seus porta-vozes, os quais, hoje, apresentam uma aptidão muito maior de influenciar o equilíbrio de forças políticas do que adesivos fora da centimetragem legal (por exemplo). Essa omissão abre portas ao risco de punição arbitrária e desigual dessas figuras, além de retirar os esforços da JE e do MPE para o que verdadeira importa para garantir a legitimidade e a normalidade do pleito.

A preocupação com o abuso, como já previsto legalmente, deve ser maior. As manifestações políticas de influenciadores devem ser legitimadas e protegidas de tendências censuradoras, na medida em que youtubers e instagramers representam hoje veículos centrais de informação e formação de parte da população, especialmente dos jovens. Nesse esquadro, não há como impor a eles censura legal ou judicial a que expressem, de modo espontâneo e transparente, suas visões de mundo, políticas, sociais ou morais. Por outro lado, consideradas as plataformas como instrumentos de exercício de uma atividade empresarial com expressividade econômica, sua militância política certamente atrairá a atenção da Justiça Eleitoral em razão do componente financeiro. Nesse aspecto, há um claro vácuo legislativo que prejudica a segurança jurídica desses formadores e da própria sociedade. Sem uma delimitação clara do que pode ou não ser feito, do que é ou não relevante, abre-se espaço para o subjetivismo e uma perigosa censura judicial ao modo self service.

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1 TSE, Recurso Especial Eleitoral 470968, relator min. Fátima Nancy Andrighi, DJE Data 20/6/12.

2 TSE, Recurso Especial Eleitoral 41395, Acórdão, relator min. Herman Benjamin, DJE Data 27/6/19.

3 TSE, Ação de Investigação Judicial Eleitoral 060186221, Relator Min. Og Fernandes, DJE Data 26/11/19.

4 Resolução TSE 23.610/19: “Art. 38. A atuação da Justiça Eleitoral em relação a conteúdos divulgados na internet deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático”.

5 Constituição Federal de 1988: “Art. 21. Compete à União: (...) XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;” e “Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.

6 FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Novos Paradigmas do Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

7 “Art. 57-C. É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes”.

8 “Art. 39. (…) §7º É proibida a realização de showmício e de evento assemelhado para promoção de candidatos, bem como a apresentação, remunerada ou não, de artistas com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral”.

9 TRE/SC, Consulta 2225, Relator José Trindade dos Santos, DJESC Data 26/6/06.

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*Lygia Copi é advogada doutoranda em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná – UFPR. Mestra em Direito das Relações Sociais. Docente do Curso de Direito do Centro Universitário – UNIVEL.



*Luiz Eduardo Peccinin é advogado mestre em Direito do Estado. Especialista em Direito Administrativo e em Direito Eleitoral. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP, do Instituto Paranaense de Direito Eleitoral – IPRADE – e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/PR.


*Raquel Cavalcanti Ramos Machado é mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

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