Com as recentes sugestões da OMS para que a ONU promova uma reclassificação da cannabis no rol de drogas, excluindo-se da lista derivados como o canabidiol (princípio ativo reconhecidamente medicinal), além de praparados e compostos farmacêuticos dos quais não se possa resgatar o THC (princípio ativo considerado alucinógeno, embora também com propriedades terapêuticas para determinacos casos clínicos), reacende-se a discussão a respeito da moral estatal e dos fins das penas na “guerra” contra tais substâncias.
O vigente sistema de classificação de drogas é permeado de incoerências e incompreensíveis parcialidades históricas, notadamente o fato de que várias das substâncias arroladas como “drogas” ilícitas, assim como a cannabis, não passavam por avaliação a quase oito décadas. Permanecem sujeitas a um rótulo vexatório de marginalidade sem amparo em informações científicas atuais.1
Esperava-se que a questão fosse aprecidada na 63ª Sessão da Comissão sobre Drogas Narcóticas - CND, ocorrida entre 2 e 6 de março, em Viena. Contudo, a celeuma não teve solução ante às divergências na comunidade internacional, restando adiada a votação para dezembro de 2020.
Nota Técnica da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, vinculada ao Ministério da Cidadania, evidencia o posicionamento contrário do Governo brasileiro à reclassificação sugerida2.
Permanece, pois relevante e contemporâneo o debate sobre o tema, que tem ganho novos contornos e suscitado iniciativas no Congresso Nacional voltadas à abertura do mercado e legalização do cultivo de maconha para fins medicinais3. Todavia, no Brasil, ainda são incriminadas uma série de condutas correlatas ao consumo de drogas, segundo previsão do art. 28, da lei 11.343/06, embora não se possa mais punir o consumo por si só, pois que, como preceitua a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, da qual o país é signatário, passou-se a dispensar ao mero consumidor um tratamento preventivo e terapêutico.
Em que pese a abordagem normativa mais humanitária voltada para o usuário de drogas, o texto vigente é polêmico, pois às condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, embora não demadem sanção corpórea - com restrição da liberdade do indivíduo, estão sujeitas a penas de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Percebe-se, então, manifesta ideologia repressiva na lei, que despenaliza o consumo em si, ao passo que mantém sob a pecha de delinquente aquele que, por exemplo, adquira ou traga consigo substância para o uso próprio, estando previstas penas alternativas à prisão com caráter eminentemente comunicador da moral do Estado a ser observada pelos indivíduos4. Isso para não aprofundar as frequentes distorções praticadas em operações policiais, que resultam em indiciamentos e denúncias de simples usuários como sendo traficantes, problema esse agravado com a política criminal de combate às drogas, “cujo campo de batalha” eleito pelas autoridades é quase sempre a favela ou periferia mais pobre das cidades, ainda que não se desconheça de todo o consumo de entorpecentes nas camadas sociais mais privilegiadas.
Não obstante, a matéria também traz reflexos inafastáveis sobre a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo, podendo-se inclusive dizer de uma já evidenciada tendência à mudança de paradigma pelo STF, dissonando da tradicional jurisprudência inferior punitivista. Frise-se que, até o momento, os votos externados para julgamento do RE 635.659/SP, a que se conferiu repercussão geral, reconhecem a inconstitucionalidade da norma incriminadora do porte de drogas para consumo pessoal, porquanto violadora da intimidade, da autonomia da vontade, da razoabilidade e, sobremaneira, do princípio da proporcionalidade.
Contudo, enquanto pendente o deslinde do caso pelo Pretório Excelso, importa, ainda, questionar se, efetivamente, a norma incriminadora exerce influência preventiva do consumo de entorpecentes na sociedade ou se busca representar apenas o modelo penal foucaultiano, expiatório, voltado a dissuadir a conduta tida como desviante por meio de mecanismos constrangedores e impositivos de uma moral estatal.
Ora, não cabe ao Estado, nas constituições que seguem o modelo Democrático, impor uma pretensa ética ou ideologia moralista valorada em si mesma, menos ainda fundar um Direito voltado ao constrangimento pela imposição dessa moral estatizada, com violação ao princípio da necessidade da pena5, em detrimento de preceitos inerentes à liberdade do indivíduo e ao razoável exercício da autonomia da vontade.
É cediço que a proteção de bens jurídicos pela lei penal visa à prevenção geral ameaçadora, de modo a intimidar os indivíduos e, assim, inibir o cometimento de delitos. Todavia, deve-se considerar a quem as normas limitantes das condutas individuais em sociedade devem ser dirigidas, porquanto tem elas por destinatário aqueles que dominam o acontecimento do fato lesivo do bem jurídico6.
Nesse ínterim, levando-se em conta a justificativa adotada pelo Estado brasileiro para incriminar condutas afetas à posse ou porte de drogas ilícitas ou irregulares destinadas ao consumo pessoal pelo indivíduo, cabe refletir se o usuário é efetivamente autor de lesão de um bem jurídico, in casu, a segurança ou a saúde públicas. Frise-se que não se incrimina o usuário de drogas sob o argumento de autolesão, mas afirma-se que põe ele em risco toda a coletividade.
A questão divide a doutrina, especialmente sobre se a norma possui natureza penal e, por conseguinte, se pode exercer força preventiva contra o indivíduo.
Vale destacar que a 1ª turma do STF, através do então ministro Sepúlveda Pertence, no exercício da relatoria do RE 430.105/RJ, expressou o entendimento de que houve despenalização das condutas relativas ao consumo com o advento da lei 11.343/067. No entanto, não se deu o enfrentamento do mérito sobre a inconstitucionalidade do art. 28 da lei sobre drogas, pois, à unanimidade, por questão de ordem processual, restou prejudicado o julgamento do recurso.
Para além desse entendimento, vozes relevantes enfatizam que sem previsão de pena corpórea (prisão) não se pode admitir a existência de infração penal, atribuindo semelhança das condutas descritas no art. 28 da lei sobre drogas às infrações administrativas puníveis por sanções de natureza administrativas, alheias ao Direito Penal8.
Ademais, a proibição do uso de drogas representa uma exorbitante ingerência estatal na vida privada e na intimidade da pessoa, máxime quando os eventuais males advindos do consumo constituem não mais do que autolesão, o que não legitima, tampouco autoriza a intervenção proibitiva do Direito Penal num Estado Democrático de Direito. Vale consignar, ainda, que maus costumes não representam necessariamente conduta criminosa, ainda que possam ser consideradas imorais. Sua punição é, pois, ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Outrossim, dados estatísticos atualizados do Centro Europeu de Monitoramento de Drogas e Dependência - EMCDDA9, revelam que, na Europa - continente com maior adoção de políticas descriminalizadoras do consumo de drogas -, desde 2003, tem-se notado um declínio no uso de substâncias entorpecentes.
Logo, percebe-se que não é a utilização do Direito Penal como instrumento impositivo de um sistema moral de comportamento, limitante das liberdades individuais, em particular da manifestação da autonomia da vontade e do exercício da intimidade pelo indivíduo, um elemento garantidor da prevenção geral almejada.
A incriminação de condutas voltadas ao uso de substâncias consideradas drogas ilícitas viola os direitos fundamentais à liberdade e à intimidade na vida privada, além de ofender o princípio da alteridade e forçar, de modo indevido, transcendência da conduta do agente e de suas consequências eminentemente pessoais para bem jurídico diverso e coletivo (segurança e saúde pública).
Não cabe ao Estado, sobretudo o Estado laico – como é o Brasil, cujo texto constitucional estabelece como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre justa e solidária, além da erradicação da pobreza e da marginalização, exercer o papel de censor moral da intimidade e da autonomia das vontades individuais, promovendo uma marginalização irrazoável de pessoas, em grande parte integrantes de parcela economicamente fragilizada e, assim, acentuar desigualdades e estigmas sociais.
No caso específico da cannabis, aproveita mais ao bem-estar social o reconhecimento de suas propriedades medicinais e de suas outras utilidades na indústria, além de que a possível reclassificação da maconha pela ONU, conforme sugere a OMS, virá a pôr termo à desproporcinal e desarrazoada (inconstitucional) perseguição às condutas de usuários da substância, à sua penalização moral, bem como dar ensejo a uma demanda por comércio legalizado, com recolhimento de tributos e geração de postos de emprego formal, com promoção de perspectiva de vidas dignas, em vez de segregação e marginalidade.
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1 HUGHES, Brendan; WINSTOCK, Adam R. Controlling new drugs under marketing regulations. Addiction, 107(11), 2012, pp. 1894–1899, p. 1. Disponível Clique aqui
2 Vide Nota Técnica 14/20, disponível Clique aqui
3 O Projeto de Lei 5295/19 determina a regulamentação da produção da cannabis medicinal e do cultivo do cânhamo industrial.
4 Nesse sentido, Cf. Luís Carlos Valois: “Na história de formação do regime inernacional de combate às drogas, vimos poucas referências ao Brasil, como o próprio Brasil faz poucas referências à sua participação nessa construção. Seguidor das diretrizes norte-americanas, comerciais e morais, o Brasil não incomoda e permanece submisso, até mais submisso na questão das drogas, ou seja, na questão moral.” In: VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas – 2ª Ed. – 1. Reimp. – Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 329-330.
5 Cf. PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas. Lisboa: AAFDL, 2019, p. 56.
6 Na mesma esteira: SCHÜNEMANN, Bernd. Direito penal, racionalidade e dogmática – sobre os limites invioláveis do direito penal e o papel da ciência jurídica na construção de um sistema penal racional. 1ª Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 76.
7 Recurso Extraordinário 430105/RJ, julgado em 23/2/07. Consulta disponível Clique aqui
8 GOMES, Luiz Flávio (coordenador). Nova Lei de drogas comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 109.
9 Disponíveis Clique aqui
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CUNHA, Paulo Ferreira. A constituição do crime – a substancial constitucionalidade do direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1998.
GOMES. Luiz Flávio (coordenador). Nova Lei de drogas comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
HUGHES, Brendan; WINSTOCK, Adam R. Controlling new drugs under marketing regulations. Addiction, 107(11), 2012, pp. 1894–1899, p. 1. Disponível em: <_https3a_ _doi.org2f_10.11112f_j.1360-0443.2011.03620.x="">
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas – 2ª Ed. – 1. Reimp. – Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017.
PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da lei penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas. Lisboa: AAFDL, 2019.
SCHÜNEMANN, Bernd. Direito penal, racionalidade e dogmática – sobre os limites invioláveis do direito penal e o papel da ciência jurídica na construção de um sistema penal racional. 1ª Ed. São Paulo: Marcial Pons, 2018.
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*Diogo de Oliveira Gomes é defensor Público do Estado de Pernambuco. Mestrando e especialista em Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidade de Lisboa.