Migalhas de Peso

Prescrição e decadência: momentos de apreciação em 1ª instância e variabilidade recursal

O texto pretende enfrentar a natureza juridical do pronunciamento judicial de 1ª instância que aprecia prescrição e decadência e o recurso cabível.

10/8/2020

Este ensaio pretende enfrentar questão de grande importância prática, que passa pelo enfrentamento da seguinte indagação: quando prescrição e decadência são apreciadas (acolhidas ou rejeitadas), no curso do feito em tramitação na 1ª Instância, em especial no julgamento conforme o estado do processo, estão sujeitas à interposição imediata de agravo de instrumento (art.1.015, II, do CPC) ou a irresignação deve ser feita na futura apelação ou contrarrazões recursais, na forma do art. 1009, §1º, do CPC?

Algumas observações iniciais devem ser apresentadas, visando o correto enfrentamento do tema. É de se destacar, por exemplo, que o CPC/15 atingiu o regime de preclusão temporal, tendo em vista que, à exceção das hipóteses expressamente previstas no art. 1015, as interlocutórias proferidas na fase cognitiva do procedimento não são recorríveis de imediato, mas apenas como um capítulo preliminar do recurso de apelação interposto contra a sentença ou nas contrarrazões recursais1.

A restrição da recorribilidade imediata gera, como consequência, a ampliação do efeito devolutivo do recurso de apelação, não deixando sujeitas à preclusão imediata as questões resolvidas na fase de conhecimento, que não se enquadrem no rol do art. 1015, do CPC.

Aliás, o STJ, ao apreciar os REsp repetitivos 1.696.396 e 1.704.520 (Tema 988 - Corte Especial – Rel. Min. Nancy Andrighi – J. em 05.12.18) fixou, por maioria, a seguinte tese para a recorribilidade das interlocutórias que não se encontram no art. 1.015, do CPC:

“O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação”.

Assim, de acordo com entendimento da Corte da Cidadania, proveniente do Tema 988, o rol do art. 1.015, do CPC é de taxatividade mitigada, pelo que, nos casos de urgência ou inutilidade de julgamento do capítulo decidido em futuro recurso de apelação, é admitida a interposição de agravo de instrumento.

Entendo que, pelo menos de forma direta, o que fora decidido no Tema 988/STJ não se aplica à apreciação da prescrição e decadência. Nestes casos, a rigor, não se está discutindo a eventual inutilidade da apelação futura, mas sim a interpretação do art. 1.015, II, do CPC: versar sobre o mérito do processo inclui apenas o objeto litigioso do processo ou os fundamentos que, mesmo não sendo de mérito direto, são aptos à formação de coisa julgada?

É necessário fazer uma afirmação e duas indagações: se prescrição ou decadência for acolhida em demanda com objeto litigioso único, a decisão tem natureza sentencial e o recurso cabível é a apelação (art. 487, II, do CPC); por outro lado, se for rejeitada, trata-se de decisão interlocutória de mérito para fins de agravo de instrumento (art. 1.015, II, do CPC) ou a recorribilidade será apenas no momento do recurso de apelação ou nas contrarrazões recursais? E se for acolhida apenas para um dos pedidos cumulados, qual será o recurso cabível?

A leitura do art. 1.015, II. do CPC (agravo de instrumento contra a decisão interlocutória que versa sobre mérito do processo) refere-se não apenas à resolução de parte do objeto litigioso, alcançando todas as decisões que formam coisa julgada, dentre as quais as elencadas no art. 487, II, do CPC – prescrição e decadência.

A interpretação conjunta dos arts. 354, §único; 356; 487, II; 1009, §1º e 1015, II, do CPC,  permite apresentar as seguintes variáveis: a) acolhimento de prescrição e decadência para a extinção total do processo recurso de apelação; b) acolhimento da prescrição e decadência com a extinção parcial do processo, prosseguindo o feito em relação a outros capítulos ainda não apreciados  recurso de agravo de instrumento; c) rejeição da prescrição e decadência no momento do julgamento conforme o estado do processo,  demanda com um ou mais pedidos cumulados – recurso de agravo de instrumento. Caso não seja interposto o apelo cabível, a decisão interlocutória ou sentença será atingida pela preclusão e, em alguns casos, pela própria coisa julgada, dentro dos limites do que foi decidido.

É razoável afirmar, portanto, que a hipótese do art. 1.015, II, do CPC, não trata apenas do mérito direto. Aliás, o STJ reconhece o cabimento de Agravo de Instrumento nos casos de rejeição de prescrição, fazendo leitura conjunta dos arts. 487, II c.c 1.015, II, do CPC, senão vejamos:

“RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE AFASTA A PRESCRIÇÃO. DECISÃO DE MÉRITO QUE DESAFIA O RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. ART. 487, II, C/C ART. 1.015, II, DO CPC/15. 1. Segundo o CPC/2015, nas interlocutórias em que haja algum provimento de mérito, caberá o recurso de agravo de instrumento para impugná-las (art. 1.015, II). 2. No atual sistema processual, nem toda decisão de mérito deve ser tida por sentença, já que nem sempre os provimentos com o conteúdo dos arts. 485 e 487 do CPC terão como consequência o fim do processo (extinção da fase cognitiva do procedimento comum ou da execução). 3. As decisões interlocutórias que versem sobre o mérito da causa não podem ser tidas como sentenças, pois, à luz do novel diploma, só haverá sentença quando se constatar, cumulativamente: I) o conteúdo previsto nos arts. 485 e 487 do CPC; e II) o fim da fase de cognição do procedimento comum ou da execução (CPC, art. 203, § 1°). 4. O novo Código considerou como de mérito o provimento que decide sobre a prescrição ou a decadência (art. 487, II, do CPC), tornando a decisão definitiva e revestida do manto da coisa julgada. 5. Caso a prescrição seja decidida por interlocutória, como ocorre na espécie, o provimento deverá ser impugnado via agravo de instrumento. Já se a questão for definida apenas no âmbito da sentença, pondo fim ao processo ou a capítulo da sentença, caberá apelação nos termos do art. 1.009 do CPC. 6. Recurso especial não provido” (REsp 1.778.237/ RS – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª T – J. em 19.02.19)

“CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA QUE REJEITA A ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO ARGUIDA PELO RÉU. RECORRIBILIDADE IMEDIATA POR AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE. CABIMENTO DO RECURSO COM BASE NO ART. 1.015, II, DO CPC/2015. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA. QUESTÕES DE MÉRITO, SEJA NO ACOLHIMENTO, SEJA NA REJEIÇÃO. 1- Ação proposta em 27/10/2007. Recurso especial interposto em 26/09/2017 e atribuído à Relatora em 08/05/2018. 2- O propósito recursal consiste em definir se a decisão interlocutória que afasta a alegação de prescrição é recorrível, de imediato, por meio de agravo de instrumento interposto com fundamento no art. 1.015, II, do CPC/2015. 3- O CPC/2015 colocou fim às discussões que existiam no CPC/73 acerca da existência de conteúdo meritório nas decisões que afastam a alegação de prescrição e de decadência, estabelecendo o art. 487, II, do novo Código, que haverá resolução de mérito quando se decidir sobre a ocorrência da prescrição ou da decadência, o que abrange tanto o reconhecimento, quanto a rejeição da alegação. 4- Embora a ocorrência ou não da prescrição ou da decadência possam ser apreciadas somente na sentença, não há óbice para que essas questões sejam examinadas por intermédio de decisões interlocutórias, hipótese em que caberá agravo de instrumento com base no art. 1.015, II, do CPC/2015, sob pena de formação de coisa julgada material sobre a questão. Precedente. 5- Provido o recurso especial pela violação à lei federal, fica prejudicado o exame da questão sob a ótica da divergência jurisprudencial. 6- Recurso especial conhecido e provido” (REsp. nº 1.738.756/MG – Rel. Min. Nancy Andrighi – 3ª T – J. em 19.02.19).

Vale transcrever, no Resp 1.738.756/MG, passagem do voto da min. Nancy Andrighi, ao interpretar o art. 487, II, do CPC:

“O conceito de “decidir sobre a ocorrência” é claramente mais amplo do que apenas “reconhecer a existência de”, motivo pelo qual é correto afirmar que o art. 487, II, do CPC/15, passou a abranger, indiscutivelmente, o acolhimento e também a rejeição da alegação de prescrição ou decadência, com aptidão inclusive para, em ambas as hipóteses, formar coisa julgada material sobre essas questões”.

Em suma, é possível definir assim a interpretação do problema aqui tratado: em caso de acolhimento ou rejeição da prescrição e decadência, haverá decisão de mérito, para fins de recorribilidade pela apelação (se for o caso de obstar o prosseguimento da fase cognitiva do procedimento) ou agravo de instrumento (quando não impedir o prosseguimento da relação processual e com o objetivo de evitar a preclusão)2.

Como conclusão, é mister seja feita análise específica quanto ao momento de apreciação da prescrição e decadência, partindo de uma premissa: o art. 1.015, II, do CPC refere-se aos casos de desmembramento do objeto litigioso, como nas situações previstas nos arts. 354, §único, do CPC (extinção parcial); art. 332 (improcedência liminar parcial)3, art. 356, do CPC (julgamento antecipado parcial de mérito – decisão parcial de mérito). Por outro lado, caso a sentença acolha, total ou parcialmente, a prescrição ou decadência (art. 487, II, do CPC), o recurso cabível é a apelação.

Outrossim, se o acolhimento for parcial, para atingir apenas um dos capítulos do objeto litigioso do processo, estará sujeito ao agravo de instrumento, por expressa previsão legal (art. 354, §único, art. 487, II e art. 1.015, II). Em caso de rejeição da alegação de prescrição e decadência, o recurso também deve ser o agravo de instrumento, com uma leitura ampliativa da redação do art. 1.015, II, do CPC, sob pena de preclusão.

Encerra-se o texto com passagem da Ementa do AgInt nos EDcl no AREsp 848766/RJ (Rel. Min. Moura Ribeiro – J. em 15/10/18 - DJe 18/10/18), onde 3ª Turma da Corte da Cidadania tratou especificamente da questão ligada à preclusão, asseverando que: “constou  expressamente  na  decisão  agravada  que nos termos da jurisprudência  do Superior Tribunal de Justiça as matérias de ordem pública,  tais  como prescrição e decadência, podem ser apreciadas a qualquer tempo nas instâncias ordinárias. Todavia, existindo decisão anterior, opera-se a preclusão consumativa se não houver impugnação no momento processual oportuno”.

__________

1- “Entendemos que tal inovação possui o condão de simplificar a recorribilidade das decisões interlocutórias. Afinal, se, sob a égide do CPC de 1973, cabe à parte ratificar o agravo retido na preliminar de apelação/contrarrazões, mais simples se afigura dispensá-la de interpor previamente o recurso de agravo retido, concentrando a impugnação das decisões interlocutórias no próprio recurso de apelação”. HILL, Flávia Pereira. Breves comentários às principais inovações quanto aos meios de impugnação das decisões judiciais no novo CPC. In Novo CPC doutrina selecionada, v. 6: processo nos tribunais e meios de impugnação às decisões judiciais. DIDIER JR, Fredie (coordenador geral); MACÊDO, Lucas Buril de; PEIXOTO, Ravi; FREIRE, Alexandre (organizadores). Salvador: Podivm, 2015, p. 367.

2- Na mesma toada, entende Araken de Assis que “tampouco subsiste qualquer dúvida quanto à natureza das questões relativas à prescrição e à decadência. Elas integram o mérito; por isso, são prévias apenas no plano lógico, no itinerário racional do julgamento. Essas questões, uma vez acolhidas, ensejam sentença definitiva (art. 487, II); rejeitadas, constituem decisões interlocutórias. No primeiro caso, cabe apelação; no segundo, agravo de instrumento” ASSIS, Araken de. Cabimento de agravo de instrumento contra decisão sobre prescrição e decadência proferida no saneamento do processo (CPC, art. 1.015, II). In Aspectos polêmicos dos recursos cíveis e assuntos afins. NERY JUNIOR, Nelson; ALVIM, Teresa Arruda; OLIVEIRA, Pedro Miranda. São Paulo, Revista dos Tribunais, vol. 14, 2018, p. 84.

3- Fredie Didier Júnior e Leonardo Carneiro da Cunha escrevem que: “no curso do procedimento, é possível haver decisões de mérito. O juiz pode, por exemplo, rejeitar a alegação de prescrição ou de decadência, determinando a instrução probatória. De decisões assim cabe agravo de instrumento, tal como prevê o art. 1.015, II, do CPC”. E concluem: “o disposto no art. 1.015, II, do CPC confirma a possibilidade de ser proferida, no processo civil brasileiro, decisão interlocutória de mérito definitiva. Se o dispositivo prevê agravo de instrumento contra decisão de mérito, está, em verdade, a admitir a existência de decisão interlocutória que trate do mérito com caráter de definitividade. Se o agravo de instrumento não for interposto, haverá coisa julgada. Não será possível impugnar a decisão interlocutória de mérito ou a decisão parcial de mérito na apelação a ser interposta da sentença que ainda será proferida”. Curso de Direito Processual Civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. V. 3. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016. pp. 213 e 214.

__________

*José Henrique Mouta Araújo é pós-doutor (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), doutor e mestre (Universidade Federal do Pará), Professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), procurador do estado do Pará e advogado.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024