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O júri na pandemia e a resistência injustificada à videoconferência

Passados mais de quatro meses, os tribunais, ao menos naqueles em que o processo eletrônico é realidade, comemoram o uso da tecnologia, notadamente a videoconferência, com o incremento da produtividade.

7/8/2020

Em função da pandemia do Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça estabeleceu plantão extraordinário no âmbito do Poder Judiciário Nacional (Resolução 313/20). Impôs o fechamento dos fóruns e a vedação a atos presenciais. Passados mais de quatro meses, os tribunais, ao menos naqueles em que o processo eletrônico é realidade, comemoram o uso da tecnologia, notadamente a videoconferência, com o incremento da produtividade.

Essa constatação, porém, não se estendeu ao tribunal do júri, que reclama maior número de pessoas, em especial jurados, e não permite a divisão de atos. Além disso, deve obediência a caracteres próprios, a exemplo da plenitude de defesa, do sigilo das votações e, sobretudo, da incomunicabilidade do conselho de sentença. Na prática, as fórmulas que viabilizam quaisquer outros feitos, ao menos os digitais, tornaram-no inexequível. Tanto é assim que, instado, o CNJ, num primeiro momento, decidiu que a ausência de regulamentação específica e o princípio da precaução, conhecido no Direito Ambiental e à Saúde, vedavam júris quaisquer, presenciais ou virtuais1.

Hoje, com a Resolução 322/20 do CNJ, alguns tribunais permitem, com restrições, sessões plenárias, a exemplo do TJSP (art. 26, § 4º, III e IV, do Provimento CSM 2564/20). Entretanto, em muitos Estados, desde 19/03/2020 (data de publicação da Resolução n° 313 do CNJ), não se realizou júri algum. Em relação aos processos em que há acusado preso, existe preocupação com excesso de prazo (art. 5º, LXXVIII, da CF). De outro lado, se prisão houve, resultou de adequação e extrema necessidade (art. 282, § 6º, do CPP). Assim, o relaxamento e a liberação, apesar de direitos do réu, colocam em risco a sociedade. Sob outro aspecto, a liturgia do júri não permite, em função do tempo de duração, a resolução de mais de 1 (um) processo por dia. Notadamente em Varas Privativas do Plenário do Tribunal do Júri - que se encontram quase paralisadas -, a pauta já foi significativamente alongada. Isso ocasiona prejuízos à organização dos trabalhos, com atraso relevante à resposta estatal, danos à qualidade da prova e, finalmente, mas não menos importante, descrédito ao Poder Judiciário.

O período é de incerteza e o retorno dos julgamentos suscita questionamentos, inclusive de natureza política e congênere – assim como ocorre em diferentes segmentos da sociedade quando o assunto é o Covid-19. De qualquer maneira, tal qual se exigiu de todo o mundo, o Tribunal do Júri precisa de reinvenção. Uma Justiça que se pretende célere e conectada à realidade não é avessa à tecnologia ou reluta a toda e a qualquer mudança. Nesse ponto, mesmo que indispensável o debate, porque capaz de moldar arestas e de prestigiar o caráter plural típico da democracia – e, logo, de um processo penal que se quer democrático -, não se compreendem as críticas, até exageradas2, à proposta para adequar os júris à pandemia (autos de ato normativo n° 0004587-94.2020.2.00.0000, em trâmite no CNJ).

Em primeira análise, de “júri virtual”, conforme severamente se questionou, não se trata. Quando muito, a iniciativa pode ser denominada de “júri com apoio de videoconferência” – é o que descreve, aliás, o art. 1º do projeto. Seja como for, a pretensa regulamentação nada inovou. Apenas, sob leitura que tende a fugir do anacronismo, ajustou o procedimento às restrições sanitárias. O desapego a teorias que não existem na lei e, em especial, a experiência adquirida com aquilo que se vê na prática endossam essa assertiva.

O art. 93, IX, da CF assegura o caráter público do julgamento, que, porém, pode ser excepcionado, já que, “Se da publicidade (...) da sessão puder resultar (...) inconveniente grave (...), o juiz (...) poderá (...) determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes” (art. 792, § 1º, do CPP). Mesmo assim, viáveis a gravação e a difusão ao vivo pela internet, se o caso, sistemática que, há anos, existe[3]. O art. 5º, caput e § 1º, do projeto só fez adequação ao Tribunal Popular. Talvez, valha refletir sobre a extensão da transmissão, a fim de preservar o conselho de sentença, vítima, se sobrevivente, testemunhas e o próprio réu, mas nada que derrube a empreitada.

De outro ângulo, o art. 432, caput, do CPP estipula que “o juiz presidente determinará a intimação do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Defensoria Pública para acompanharem, em dia e hora designados, o sorteio dos jurados que atuarão na reunião periódica”. Na realidade dos autos digitais, embora ocorra na presença dos que comparecem, o sorteio já é feito eletronicamente. É o que se verifica, via Projudi, no Estado do Paraná, bastando que se permita ao interessado o acompanhamento virtual.

Também, a proposta em trâmite no CNJ faculta a abertura da sessão sem a presença dos jurados, que somente serão chamados fisicamente se sorteados (art. 4º, caput e § 1º). O art. 466, § 1º, do CPP, é verdade, antevê que a incomunicabilidade é exigida a partir do sorteio para a composição do conselho de sentença. Entretanto, é improvável que, no curto prazo de deslocamento até o fórum, haja alguma influência externa. Se houver, pouco importa. O processo, de regra, é público e podem quaisquer interessados, além de tomar conhecimento da pauta, previamente publicada (art. 429, § 1º, do CPP), consultá-lo (vide Resolução n° 121 do CNJ). Ademais, o contato diário com jurados revela que, de posse dos julgamentos agendados para a reunião, cuja lista é entregue por ocasião da convocação, a maioria deles já realizou buscas na internet e já chega com noção do que trata o caso – isso quando já não acessou os próprios autos. No atual estágio dos meios de informação, a incomunicabilidade a ser exigida é a posterior ao efetivo início da instrução e dos debates, quando tomam conhecimento aprofundado das provas e das teses do Ministério Público e defesa. Havendo viabilidade, a propósito, o próprio Judiciário pode buscar o jurado sorteado no local em que se encontre, por meio de veículo oficial ou, entre outros, por aplicativos de transporte. Seria apenas alargamento do que já aponta o art. 6º da Recomendação n° 55/2019 do CNJ. De mais a mais, segundo a proposta, o sorteio nesses moldes não é obrigatório, mas opção do juiz, que decidirá se assim o fará ouvindo Ministério Público e defesa. Para concluir, em nenhum ponto houve menção de que os jurados permaneceriam em casa ou longe da vigilância física do oficial de justiça (art. 466, § 2º, do CPP), a exemplo do que, erroneamente, já se admoestou em escrito especializado4.

Em acréscimo, não há - nem nunca houve, ao menos desde a lei 11.689/08 - necessidade de intimação pessoal de jurados. O art. 434, caput, do CPP prevê a convocação por “qualquer outro meio hábil”, entre os quais telefone, e-mail ou aplicativos. O art. 4º da Recomendação n° 55/2019 do CNJ é enfático ao incentivar esse tipo de medida. Igualmente, não há necessidade de intimação presencial de vítima, testemunhas e réu. Embora o tema seja novo e, por isso, acarrete desconfiança, a lei não impede intimações, via oficial de justiça, virtual e validamente. De fato, o art. 370, caput, do CPP dispõe que é aplicável à intimação o regime da citação. O art. 351 indica, assim, que a intimação será feita “por mandado”, que nada mais é do que “uma ordem escrita, assinada pelo juiz competente, a ser cumprida por oficial de justiça”5. Mesmo o cumprimento dos requisitos do art. 357, I e II, que tratam da leitura e entrega da contrafé, bem como certificação, não impõe que o ato seja presencial. Se exigisse, haveria que se ponderar que a legislação é de 1941, quando inimaginável a internet. Atualmente, a quase integralidade das comunicações e, por consequência, das relações comerciais, de ensino, familiares, sociais e semelhantes – que determinam e viabilizam a sociedade – não é presencial. Nem por isso deixa de ser realizada com legitimidade e segurança. Não pode, pois, o Judiciário, negando validade a essa premissa, deixar na mão de terceiros opção para que se sujeitem ou não aos comandos judiciais. Eventual excepcionalidade - que, como tal, não constitui regra - é analisada criteriosa e restritivamente, a fim de aferir se é a hipótese, por exemplo, de adiamento justificado do ato e/ou emprego de medidas outras (prosseguimento sem a presença do intimado, aplicação de multa, condução coercitiva, etc.). No júri, ademais, o réu já sabe que será submetido a plenário e vítima e testemunhas, de regra, já foram ouvidas no curso do procedimento. O chamado judicial online não lhes será surpresa. Por isso, a permissão do art. 6º da proposta, a autorizar intimações à distância, não comporta ressalva.

O art. 222, § 3º, do CPP, por sua vez, permite, de longa data, o uso de videoconferência. Embora trate de carta precatória, pode ser aplicado a pessoas residentes na Comarca. O art. 3º da Recomendação n° 55/2019 do CNJ, aliás, aconselha esse sistema, também presente na legislação processual civil (art. 236, § 3º, do CPC). A possível comunicação entre testemunhas (art. 210, caput, do CPP) não é - nem nunca foi - entrave. Todos os julgamentos são feitos meses ou, a bem da verdade, até década depois do fato. No plenário, já é, em princípio, pelo menos, a 3ª (terceira) vez em que ocorre a mesma inquirição (a 1ª na Delegacia de Polícia e a 2ª na fase do sumário da culpa). Na etapa antecedente, a despeito da previsão de audiência una (art. 411, § 2º, do CPP), a prática indica que a cisão de atos é corriqueira. Dessa forma, havendo intenção de concertar versões, já teria havido tempo e ferramentas suficientes. Nenhuma dessas particularidades, contudo, obsta o uso da precatória, por videoconferência ou não, e o fracionamento da coleta de provas. De igual modo, não se sustenta impedir a inquirição telepresencial em sessão popular. Ainda, para a jurisprudência, “A quebra da incomunicabilidade de testemunha é vício que justifica o reconhecimento de nulidade quando acompanhado de prejuízo”6e demanda arguição imediata (art. 571, VIII, do CPP), o que significa que o vício, se constatado, não acarreta a automática invalidade do ato. Esclareça-se, também, que, diferente de uma audiência em que os participantes apenas se encontram virtualmente, todos, à exceção da testemunha e/ou vítima, estarão - ou poderão estar - no mesmo local. Por isso, a oitiva encerra, diga-se, uma ligação individual de vídeo, hoje tão comum. Chama a atenção, outrossim, que se questione, agora, o emprego dessa medida, já que há anos é utilizada7, sem que, apesar de eventuais questões de ordem técnica, houvesse problema relevante ou mesmo arguição de nulidade de qualquer natureza. O art. 12, caput, do projeto, assim, não extrapola esse caminho, com o destaque de que, verificada negativa de oitiva online ou impossibilidade técnica, há previsão de condução coercitiva, na forma do art. 461, § 1º, do CPP, ou inquirição física em plenário (art. 12, § 3º e 4º), providência de que também se pode lançar mão se houver perspectiva concreta – e não no campo da suposição vazia - de que a videoconferência colocará em xeque a legitimidade da prova (como em situação em que há testemunha sob ameaça ou algo similar).

Em relação ao interrogatório, o projeto antecipa a presença para o réu solto e a videoconferência para o preso, em estrita observância à determinação legal. De fato, se em liberdade, cabe a ele comparecer, com o realce de que sua ausência não impede o julgamento (art. 457, caput, do CPP). Em caso de acusado preso, a hipótese é a de ouvi-lo à distância, em vista da “gravíssima questão de ordem pública” (art. 185, § 2º, IV, do CPP). Se o acusado quiser acompanhar o julgamento, poderá fazê-lo também online, com a permissão do art. 185, § 4º, do CPP, sem prejuízo do disposto no § 5º, que assegura, a todo momento, contato com o defensor. A despeito da preferência pela modalidade presencial, a autodefesa por videoconferência não é incompatível com o rito do júri. Aliás, o próprio art. 474, caput, do CPP é expresso ao dizer que “(...) será o acusado interrogado, se estiver presente, na forma estabelecida no Capítulo III do Título VII do Livro I deste Código”, com remissão, justamente, entre outros, ao regramento do interrogatório telepresencial. Entender de modo diverso reclamaria negativa de vigência ao CPP ou, necessariamente, declaração de inconstitucionalidade material, que em outra hora já não foi reconhecida pelo Plenário do STF8. Tudo no projeto (art. 11, caput e parágrafos), desse jeito, está de acordo com a expressão da lei. Não é de hoje, além disso, que se tem notícia de que júris com réus presos em outra Comarca ou Estado da Federação são realizados à distância9,10, sem que se tenha menção de intercorrência qualquer.

De outro aspecto, para o art. 485, caput e parágrafos, do CPP, a votação será feita em “sala especial”, que, no mais das vezes, é a sala de audiência ou outro cômodo em separado. No entanto, como o julgamento será realizado a portas fechadas, o escrutínio pode ser feito no plenário, apenas com a presença do juiz, Ministério Público, defesa, servidor e jurados, nos exatos limites do art. 13, caput e parágrafo único, do projeto.

Já o art. 2º, § 3º, quiçá o mais “inovador”, que prevê a participação remota do Ministério Público e do réu, se solto, e de seu defensor, nenhuma imposição faz. Faculta - leia-se: não deixa na mão do juiz, mas exclusivamente do interessado - atuar fisicamente no plenário ou por videoconferência. Em suma, se algum prejuízo puder causar, o domínio quanto à sua configuração está na vontade do pretenso prejudicado, que não poderá questioná-lo, porque “Nenhuma das partes poderá argüir nulidade a que haja dado causa” (art. 535 do CPP).

Como se nota, absolutamente nenhum item do ato normativo em discussão no CNJ invade esfera reservada à lei em sentido formal (art. 22, I, da CF) ou sugere descompasso material com a Constituição.

De resto, a magistratura não é alheia à pandemia nem ignora a prudência com que deve agir. Os primeiros julgamentos darão privilégio, certamente, a processos com réu preso, sobretudo os com prazo mais estendido, e outros que demandem breve resolução (a exemplo daqueles em que a prescrição se aproxima). Também por certo, a inclusão em pauta terá por norte, sempre que possível, feitos de menor complexidade, com menor número de inquirições e com apenas 1 (um) acusado – o que já reduz significativamente o tempo para debates (art. 477, caput e § 2º, do CPP). No mais, o art. 2º, § 3º, da Resolução n° 313 do CNJ, será utilizado extensivamente, a fim de excluir do trabalho no Tribunal do Júri todas as pessoas ali listadas (o chamado “grupo de risco”), guiando, igualmente, a leitura do “justo impedimento” a que se refere o art. 437, X, do CPP, que trata da dispensa de jurados.

Por fim, no voto vencedor proferido no pedido de providências n° 0003407-43.2020.2.00.0000, houve - e com muito fundamento - destacada preocupação com o número de pessoas articulado, bem como com os princípios que orientam a instituição. Conforme exposto no acórdão lançado no RE 627.18911, que deu suporte ao julgado do CNJ, “O princípio da precaução é um critério de gestão de risco (...), o que exige que o estado analise os riscos, avalie os custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e proporcionais”. A proposta, portanto, não se distanciou dessas variáveis. Compatibilizou o risco sério trazido pela pandemia aos custos da paralisação, em regulamentação que não prejudica as partes nem se contenta com a opção, resignada, do total e rígido impedimento à jurisdição penal nos crimes dolosos contra a vida.

__________

1- Pedido de providências n° 0003407-43.2020.2.00.0000, julgado em 22/5/20.

2- Clique aqui., acesso em 3/8/20.

3-  Clique aqui., acesso em03/8/20.

4- "Qual a garantia de que um jurado em casa, durante julgamento que, em alguns casos, pode durar mais de dia, não irá se aconselhar com seu cônjuge ou com os filhos, não sofrerá influência dos vizinhos ou até mesmo de notícias publicadas na internet?", acesso em 03.08.2020.

5- LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2020, p. 1369.

6- AgInt no AREsp 971.119/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 02/08/2018, DJe 13/08/2018.

7- Clique aqui., acesso em 3/8/20.

8- HC 90900, Relator(a): ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2008, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-04 PP-00747.

9- Clique aqui., acesso em 27/5/20.

10- Clique aqui., acesso em 3/8/20.

11- RE 627189, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-066 DIVULG 31-03-2017 PUBLIC 03-04-2017.

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*Thiago Flôres Carvalho é juiz de Direito Substituto. Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitia – 4ª Subseção Criminal – Varas do Tribunal do Júri.

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