No encontro mensal do “Capítulo Brasília” da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, recebo, das mãos de Gabriel Matos da Silveira um lindo presente enviado por seu irmão Miguel: Uma segunda edição do Migalhas” da obra – Goffredo Telles Junior - A FOLHA DOBRADA - LEMBRANÇAS de um ESTUDANTE- (reminiscências do Mestre sempre se intitulando estudante), em 100 capítulos e 1.120 páginas, testemunhando 50 anos da trepidante vida do mais autêntico filósofo do Direito Brasileiro.
Chegando em casa, mergulho na leitura, surpreendendo-me, a cada passo, com a incrível caminhada do menino nascido de culta família paulista que o dotou de um sólido arcabouço cultural, facultando-lhe que, desde os primeiros anos escolares, lesse, no original, obras de autores como Daniel Defoe; Harriet Beecher Stower; Rudyard Kipling, De Amicis; Maurice Maeterlink: Julio Verne: Alexandre Dumas, com a mesma intensidade e emoção com que lia “Guarani”, “Iracema” “Ubirajara” e “O tronco do Ipê de José de Alencar. (fls.86/87)
De repente, chego ao capítulo da sua vida acadêmica na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que assim se inicia com enfáticas declarações:
“Fiz política intensa, durante todo o meu tempo de estudante.
Desde o 1 ano eu andava descrente dos Partidos Políticos de minha terra. O mesmo acontecia com um grande grupo de meus colegas”
“Nós nos havíamos convencido de que a Democracia, em nossa terra, se tornara um regime de pressupostos, de preconceitos e de ficções”.
Quatrocentas e dezesseis páginas depois, vejo que o Mestre volta a analisar o sistema político brasileiro, ao expor minuciosamente o conteúdo de sua ”Aula Magna”, proferida, então como professor, vinte e três anos depois da sua inicial visão acadêmica, intitulando-a – “AS FONTES DO DIREITO E A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA”.
O relato é tão precioso em seus detalhes que permito-me sugerir sua leitura na integra no livro “A FOLHA DOBRADA – Lembranças de um estudante - Edição Migalhas.
Pinço aqui apenas as assertivas que considero essenciais para o início de qualquer debate sobre o sistema democrático brasileiro.
Como acadêmico
Estado
“Chamamos Estado Moderno o Estado Ético, anti-individualista e antitotalitário, Sem ser princípio nem fim ele é o Estado que se subordina à hierarquia natural das coisas.
Ele não se arvora enfim último da existência humana. Porque a sua verdadeira missão é o de ser meio pelo qual cada homem e cada grupo de homens procuram atingir seus respectivos fins particulares. Ele reconhece no homem um ser dotado de uma personalidade intangível.” (pag. 158/159).
Democracia
“Para nós a Democracia era o regime político que procura assegurar a permanente penetração e influência da vontade dos governados nas decisões legislativas dos governantes.” (pág.159).
Partidos políticos
“De fato, o que verificávamos era que os Partidos Políticos brasileiros - observados não em tese, não em doutrina, não em abstrato, mas em concreto, isto é, em seu real funcionamento – constituíam meras siglas, simples rótulos, vazias embalagens, sem nenhum conteúdo doutrinário sem programas e sem bandeiras, incapazes, portanto, de orientar a opinião de quem quer que fosse, sobre os problemas nacionais. Serviam apenas de instrumento para o registro de candidatos no tribunal competente. E serviam para o que o povo denominava “cambalachos e trambiques” parlamentares.” (pág. 161).
Sufrágio universal
“Quanto ao sufrágio universal, o que víamos era que esse processo, no Brasil, longe de assegurar a representação do povo no Governo, nem sequer assegurava que os eleitos representassem seus próprios eleitores. Pois o sufrágio universal fazia tabula rasa de tudo quanto situava o eleitor dentro da sociedade; desconsiderava a oposição das convicções políticas fundamentais e a desigualdade das condições em que viviam as pessoas. Era um sufrágio cego, uma espécie de masseira ou amassadeira, pelo qual todas as diferenças humanas eram confundidas, pelo qual o povo, que os imperativos naturais dividiam em universos mentais diversos e em corpos sociais distintos, era desfigurado e transformado em massa”
Como professor AULA MAGNA
Povo e democracia
“Iniciei minha aula citando o artigo 1° da Constituição: “Todo, poder emana do povo e em seu nome será exercido”.
Precioso princípio este – disse eu. Mas que alcance teria exatamente?
Revelei que o problema da representação do povo, ou seja, da representação política, vinha sendo uma das minhas grandes preocupações, desde o meu tempo de estudante. Sempre alimentei a convicção – disse eu – de que a eficiência do regime democrático dependia, em grande parte, da legitimidade dessa representação. (pag.582/583).
Relatei que, em 1944 – precisamente um ano antes de minha eleição – eu lera nos matutinos do Dia de Natal, uma precursora Mensagem de Pio XII, sobre “O Problema da Democracia”. O que mais me impressionou nesse documento – informei – foi a diferença estabelecida pelo Pontífice, entre povo e massa. (pag. 583)
“Povo e multidão amorfa, povo e massa, são dois conceitos distintos. O povo vive e se move por sua vida própria; a massa, por si, é inerte, e não pode ser movida a não ser de fora.” (Papa Pio XII pág. 583)
Lembrei a lição de Maurice Hauriou, em seu “Compendio de Direito Constitucional”. Ensina o constitucionalista francês que a sociedade é feita de instituições, e cada instituição apresenta três notas essenciais: uma ideia a realizar; uma organização interna; e um governo. O citado mestre foi quem, primeiro, mencionou e analisou esses três elementos. Cada parte do povo é um corpo social organizado, com seus objetivos, sua forma, sua especialidade e sua fisionomia. (1ª parte, Cap II, secção 3ª, § 2º). (pag.584)
Maurice Hauriou observa em seu “Compêndio” que o povo é mais feito de instituições do que de indivíduos isolados.(pág. 584)
O representante do povo
Uma verdade que me saltava aos olhos – verdade por mim vivida na Câmara dos Deputados -, era de que os Partidos Políticos, mesmo somados uns aos outros, não conseguiam exprimir toda a realidade, pluralista e heterogênea, das sociedades humanas.”(pág.585).
Mas não era só isto. O que a realidade me vinha demonstrando – disse eu em minha aula – era que muitas entidades sociais se organizavam e lutavam, na defesa dos interesses de seus integrantes, à revelia dos Partidos. Em consequência, os delegados do povo – Senadores, Deputados, Vereadores – estando filiados a Partidos Políticos, não se achavam vinculados a um imenso número de entidades, instituições e comunidades, de que o povo é formado. (pág. 585/586).
Com toda convicção, sustentei, naquela Aula Magna de Abertura dos Cursos Jurídicos, que a expressão vontade dos governados, usada em nossa definição de Democracia, não significava vontade da massa, vontade da multidão. O que ela significava era: vontade ORGANIZADA dos governados. E a vontade organizada dos governados significava: vontade dos governados expressa por seus ÓRGÃOS legítimos, em cada caso de ordenação legislativa. (pag.590)
A proposta
A pergunta que eu aqui me colocava era a seguinte: Como se faria a permanente penetração dos grupos sociais nas decisões legislativas dos governantes? (pág. 590).
Então, qual a resposta pergunta formulada?
A minha resposta era a seguinte: o único meio de se fazer a permanente penetração da vontade dos grupos sociais nas decisões legislativas do Governo é a de se conferir a esses grupos a iniciativa das leis que lhes dizem respeito. (pag. 591)
“O que eu ousava propor era que a lei discriminasse as diversas categorias de atividades, exercidas por tais grupos e designasse as associações que estivessem em condições de ser representantes dos grupos em cada categoria. Estas associações poderiam receber o nome de Instituições Representativas” (pag. 591)
Como me dedico à análise desse tema constitucional a longo tempo (publiquei o primeiro estudo em 1993 – O Poder em Suas Mãos - ed. Edicon), Vi, com clareza, que o obstáculo maior que se opôs à implantação de sua tese, até agora, não residiu nos seus fundamentos jurídico-políticos, que são impecáveis e incontroversos, mas na dependência da vontade dos deputados, uma vez que carece de Lei para o seu nascimento.
Sua aprovação teria que enfrentar o monopólio e o “compadrismo”, já estabelecidos de longa data pelos Partidos Políticos que, obviamente, nunca aprovariam sua criação.
Para contorná-lo, deveríamos oferecer aos Partidos Políticos algo que mantivesse sua integral atuação, sua dignidade e funcionalidade específica para que aceitassem o ingresso de concorrentes em seu “clube”, até então exclusivo.
Imaginei então que poderíamos caminhar por etapas, tomando medidas pontuais que pudessem levar ao objetivo colimado.
A primeira delas seria obtermos o apoio popular para a alteração da redação do inciso V do §3º da Constituição Federal que elenca a “filiação partidária”, como “condição de elegibilidade”.
Acredito que esse seria um caminho rápido e factível uma vez que já existem várias manifestações, quer na forma de Propostas de Emenda à Constituição, (Senado – PEC 41 – 2011, do Senador José Sarney e PEC 6 – 2015 do Senador José Reguffe) - quer na forma de peticionamentos ora em análise no Supremo Tribunal Federal.
As PECs referidas mantem a exigência da filiação partidária, acrescentando apenas a possibilidade adicional de registro de candidato apoiado por lista de assinaturas, v.g. PEC6 – 2015, do Senador Reguffe: “a filiação partidária ou mediante o apoio de um por cento do eleitorado da circunscrição, na forma da lei”.
Entretanto, para que se concretizasse vontade dos governados expressa por seus ÓRGÃOS legítimos, em cada caso de ordenação legislativa. (pag.590) prelecionada pelo Mestre, esse “apoio” sugerido pelo senador deveria ser legitimamente organizado.
O primeiro passo então deveria ser o de obter-se autorização legal para que o “corpo social organizado” registrasse o seu candidato para concorrer, em pé de igualdade, com os candidatos registrados por Partidos Políticos.
Uma vez registrado, o candidato seria submetido à votação do povo, em igualdade de condições aos demais candidatos, podendo ser eleito ou não, em respeito ao sistema majoritário.
Assim, a implantação da proposta do Mestre não dependeria da lei imposta por um Governo refén de um Congresso espúrio, mas surgiria, naturalmente, da voz do povo que, tendo mais escolha, determinaria como gostaria de ter composto os órgãos legislativos do país, podendo votar, desde logo, no candidato da associação representativa de sua atuação profissional, ou no candidato de outra associação que, a seu ver, mereceria participar da feitura das leis, como, por simples exemplo, dos professores, médicos, economistas, etc..., ou ainda no candidato filiado ao Partido Político que representasse seus ideais de governança.
Das minhas pesquisas sobre o tema, cheguei a uma sugestão de redação para o inciso V do § 3º do art. 14 da Constituição Federal que acredito atenderia ao requisito fundamental do mestre, qual seja a da participação permanente dos “corpos sociais organisados” na feitura das leis.
Art.14 A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:
§3º - São condições de elegibilidade na forma da lei:
V – A inscrição como candidato feita por partido político ou órgão representativo de atividade profissional regularmente constituído na forma da lei que atenda aos requisitos exigidos pela legislação eleitoral.
Nesse caso, o candidato dos “corpos sociais organizados” teria o fim específico de representar a vontade dos governados expressa por seus ÓRGÃOS legítimos, em cada caso de ordenação legislativa. (pag.590)
Falta-lhe assim, a independência mental para o exercício de uma das atividades, consideradas pelo mestre como indispensáveis dos partidos políticos: a de formar um Poder apto a refrear o Poder”. (pag.586)
Por outro lado, parece-me justo prestigiar a atuação dos Partidos Políticos, enquanto geradora e mantenedora do bem comum, dentro das suas atribuições, o que vale dizer, do exercício daqueles atos que se baseiam na visão universal do Bem Comum.
Assim, ficariam reservados exclusivamente aos eleitos por Partidos Políticos os cargos e incumbências que exigissem total desvinculação de interesses pessoais, regionais ou de atividades específicas.
Acredito que essa distinção entre os candidatos, poderá atenuar a relutância dos atuais deputados em aceitarem novos pares que, por sua natureza, serão refratários aos “cambalachos e trambiques” parlamentares.(pág. 161) repelidos pelo Mestre desde seus tempos de acadêmico.
Por sua vez, em homenagem ao princípio da transparência, o candidato dos “corpos sociais organizados” deveria ser contratado pela entidade que irá representar, através de documento registrado em cartório, contendo claramente as incumbências, deveres e responsabilidades pelo cumprimento de seu mandato, ao qual seria dado plena e ampla publicidade.
Renda-se, mais uma vez, homenagem ao Mestre pelo seu agudo descortínio, na coleta dos princípios e dos bons exemplos para transmitir aos seus alunos.
“O eminente Kelsen, com todo o seu saber e sua velha experiencia de constitucionalista, nos haveria de advertir um dia: “Para estabelecer uma verdadeira relação de representação, não basta que o representante seja nomeado ou eleito pelo representado. É necessário que o representante esteja juridicamente obrigado a executar a vontade do representado e que o cumprimento dessa obrigação seja garantido juridicamente (teoria Geral do direito e do Estado 2ª parte IV B,g.” (pag.165)
Seria também muito salutar, para as finanças públicas, que o pagamento do deputado eleito com candidatura registrada por órgão social fosse de responsabilidade da entidade que o registrou a qual se responsabilizaria também pela atividade de seu representante, orientando-o e até propondo sua substituição em caso de mau cumprimento do mandato.
Essa medida, além de dar o bom exemplo de um comportamento participativo dos “corpos sociais” com o Governo, repartindo custos em benefício do bem comum, determinaria, por consequência, um maior rigor, por parte da entidade, na escolha de seu representante o que, afinal, iria resultar na elevação do nível intelectual e ético dos futuros candidatos, quer das “associações organizadas”, quer dos Partidos Políticos o que, finalmente, livraria a nação dos candidatos ineptos que vem sendo guindados ao mister de fazer as leis em razão tão somente da sua popularidade, não importando a razão dessa “fama”, ainda que efêmera e destrutiva da moral e da ordem social.
Corolário
De todo o aqui escrito, aflora o permanente, pertinente, urgente e inarredável anseio de todos os povos deste planeta, de que seja reconhecido àqueles que através de suas atividades diárias agem; pensando; executando; orientando; avaliando: experimentando; criando riqueza, em suma, trabalhando para seu sustento e de sua família e, por consequência, em benefício da coletividade, o direito de participação, organizada e permanente, na feitura das leis das suas respectivas nações.
Esse anseio, tão bem descrito pelo Papa Leão XIII eu sua Encíclica “RerumNovarum” acompanhou “pari passu” a existência do Mestre e esteve presente não só nas pesquisas e estudos como nas ações da vida quotidiana, impelindo-o a ingressar no Partido Integralista, quando jovem, e no Partido dos Trabalhadores, quando professor, desligando-se dos mesmos ao constatar que essas instituições não visavam realizar seu sonho de justiça.
A concretização da proposta aqui exposta, liberta a intelectualidade humana da trama filosófica insidiosa, tecida por ocasião da revolução industrial, que pretendia resumir a vida em sociedade em uma eterna luta entre as figuras de patrão e empregado, a qual, graças ao advento da tecnologia de informação, ficou provado que a formação do “Capital” que, diga-se de passagem, nunca se originou da “mais valia” mas sim do “maior consumo”, passa, nessa nova era, a se originar do “maior conhecimento”, que possibilita acessos gratuitos a toda humanidade, retribuindo com grande riqueza seus criadores sem que lhes possa ser imputada a pecha de “exploradores do suor alheio” e gerando justo relacionamento que permitirá a concretização do anseio de paz social.
Esse mesmo anseio me embala agora, na perspectiva de que a mensagem deixada pelo Mestre, com tanto carinho e detalhes, possa ser entendida pelos brasileiros, para tornarmos o Brasil uma nação verdadeiramente Democrática!
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*Vadim da Costa Arsky é advogado.