O ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com relação a aspectos envolvendo o Direito Civil e Comercial, busca inspiração na legislação europeia, razão pela qual vale ter em mente as normas que estão sendo editadas e como as instituições as estão aplicando no continente Europeu. Diante disso, destacamos abaixo uma regulamentação que entrou em vigor recentemente e que se refere a alguns agentes do comércio eletrônico, sobretudo aos chamados marketplaces.
É bem possível que as instituições brasileiras, tanto as responsáveis por criar normas como as que fiscalizam a atuação de empresas no marcado, tomem medidas inspiradas em tal regulamentação.
No dia 12 de julho de 2020 entrou em vigor na União Europeia o regulamento (UE) 2019/1150 (regulamento), aprovado pelo parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia em junho de 2019. O regulamento tem como principal objetivo estabelecer regras para a promoção de equidade e transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação online estabelecidos na União Europeia e que ofereçam bens e serviços a consumidores situados nos seus países-membros.
Nos últimos anos, tornou-se ainda mais evidente a relevância das empresas intermediadoras de serviços no cenário econômico e social. Tais empresas trouxeram novas formas de estabelecer relações comerciais e jurídicas, principalmente com a criação dos marketplaces, espaços virtuais em que terceiros podem anunciar para venda produtos ou serviços das mais diversas categorias.
Com a consolidação dos marketplaces, a União Europeia decidiu regular as relações entre as empresas de intermediação online e os terceiros que ofertam seus produtos ou serviços. É nesse contexto que foi aprovado esse novo regulamento Europeu.
A justificativa para a regulamentação é a manutenção de um ambiente online equitativo, responsável e transparente que contribui para melhorar tanto as relações comerciais entre empresas quanto a confiança dos consumidores na economia digital.
Nesse sentido, vale frisar que o regulamento prevê expressamente que suas regras não devem ser interpretadas para limitar o potencial de inovação das empresas que oferecem esse tipo de serviço de intermediação, o que revela o objetivo de, além de proteger as partes envolvidas na relação, fomentar o crescimento do setor.
Vale mencionar, também, que o regulamento não tem como foco a relação entre os consumidores e os vendedores ou entre os consumidores e os intermediadores de serviços, pois isso é objeto de normas consumeristas há muito estabelecidas.
O regulamento é aplicável a serviços de intermediação online, a utilizadores profissionais e a utilizadores de sites de empresas estabelecidas na União Europeia. No âmbito de aplicação do regulamento estão abrangidos, entre outros, os "mercados de comércio eletrônico, nomeadamente os de caráter colaborativo em que os utilizadores profissionais se encontrem ativos, as aplicações de software em linha, como as lojas de aplicações, e os serviços de redes sociais em linha, independentemente da tecnologia utilizada para prestar esses serviços", aplicando-se, inclusive, a serviços prestados por meio de tecnologias de assistência de voz.
Dessa forma, a nova regulamentação é aplicável, notadamente, aos marketplaces, que conectam um "utilizador profissional" (ou vendedor) a um "consumidor", visando a assegurar um ambiente justo e sustentável para os envolvidos.
Muitos intermediadores de serviços online, principalmente aqueles que já possuem mais expressividade econômica, já possuem em sua estrutura, suas normas e suas políticas procedimentos que cumprem, total ou parcialmente, as disposições do regulamento, como: o aviso prévio para a entrada em vigor de alterações contratuais; o envio de justificativa para a tomada de decisões referentes a vendedores e sistemas internos de recursos para resolução de controvérsias com vendedores. De qualquer forma, o regulamento vem para trazer critérios mínimos aplicáveis aos agentes de mercado na Europa.
Considerando a importância dos serviços de intermediação online para a manutenção e o desenvolvimento da atividade econômica dos utilizadores profissionais (vendedores), o regulamento prevê regras como a obrigatoriedade de notificação, pelos intermediadores, a respeito de alterações às cláusulas contratuais gerais, para que os vendedores possam fazer adaptações técnicas ou comerciais e, assim, continuar em conformidade com as regras de uso dos serviços de intermediação.
Por isso, as alterações contratuais devem ser comunicadas, em regra, com pelo menos quinze dias de antecedência aos utilizadores profissionais, devendo ser concedido prazo maior caso as adaptações necessárias para o cumprimento da alteração demandem mais tempo.
Também são detalhadas certas regras a respeito da interrupção da prestação de serviços pelos intermediadores aos vendedores (ou seja, da limitação ou cessação da possibilidade de os vendedores listarem produtos ou serviços nas páginas ou aplicativos dos intermediadores).
O regulamento impõe aos prestadores de serviço de intermediação a obrigação de, em suas cláusulas contratuais, estabelecer os critérios e motivos para a tomada de decisões relativas à suspensão, cessação ou imposição de qualquer outro tipo de restrição aos usuários profissionais (vendedores) dos marketplaces.
Evidentemente, os efeitos de decisão de suspensão, restrição ou cessação da utilização dos serviços de intermediação online por descumprimento de cláusulas contratuais afetam diretamente os interesses dos vendedores, motivo pelo qual o regulamento determina que eles deverão receber a fundamentação deste tipo de decisão antes ou na data em que a restrição ou suspensão produza efeitos, para que possam, inclusive, questioná-la.
A fundamentação da decisão restritiva ou terminativa da prestação de serviços deve indicar os motivos que levaram à aplicação de tal medida com base nas cláusulas contratuais e mencionar, de forma adequada, as circunstâncias relevantes do caso específico, inclusive reclamações e notificações de terceiros.
No caso da cessação permanente, o prestador de serviços de intermediação deve comunicar tal decisão ao utilizador profissional pelo menos trinta dias antes da cessação produzir efeitos.
Contudo, tal prazo de aviso prévio não é exigido nas situações em que o utilizador profissional em questão tenha violado repetidamente as cláusulas contratuais gerais aplicáveis. Exemplos desse tipo de situação podem ocorrer, por exemplo, quando um vendedor: oferta produtos contrafeitos; não envia os produtos adquiridos por clientes; entrega produtos fora do prazo estipulado; lista produtos proibidos ou que demandem autorização específica do intermediador; ou pratique atos para contornar restrições estabelecidas no contrato com o intermediador.
Os prestadores de serviços de intermediação também devem facultar a possibilidade de questionamento da decisão pelo vendedor mediante a utilização de um procedimento interno de tratamento de reclamações. Isso tem como objetivo possibilitar o estabelecimento de um "contraditório" aos utilizadores profissionais, a fim de resolver conflitos e minimizar o impacto de medidas restritivas em suas atividades profissionais.
As regras específicas sobre o procedimento interno de tratamento de reclamações instituem um importante meio de resolução dos mais diversos tipos de conflitos envolvendo a relação entre intermediadores e utilizadores profissionais e poderá ter como efeito prático a redução do número de litígios judiciais a respeito do tema.
Em que pese a possibilidade de questionamento da decisão por parte dos utilizadores profissionais, é permitido ao intermediador manter a decisão em vigor na pendência da análise da reclamação formulada pelo vendedor.
Tais medidas mostram-se razoáveis para o estabelecimento de uma relação comercial transparente entre os intermediadores de serviços online e os utilizadores profissionais, na medida em que ampliam os canais de comunicação entre as partes a respeito de decisões e controvérsias que impactam suas atividades comerciais.
Outro ponto relevante a respeito da transparência na prestação de serviços de intermediação online diz respeito aos critérios utilizados para a classificação dos produtos ou serviços em buscas realizadas por clientes em sites e aplicativos. O regulamento prevê que os prestadores de serviços de intermediação devem estabelecer, em suas cláusulas contratuais gerais, os principais parâmetros que determinam a classificação dos bens e serviços oferecidos pelos vendedores.
No entanto, com o objetivo de salvaguarda dos segredos de negócio que possuem tanto valor da economia digital, o regulamento é claro ao ditar que os prestadores de serviços de intermediação não são obrigados a tornar público o modo de funcionamento dos mecanismos de classificação, assim como os algoritmos ou informações confidenciais. Assim, uma descrição geral a respeito de como funciona a classificação de produtos e serviços é suficiente para o cumprimento da norma.
Com relação a dados, pessoais ou não, também há preocupações relevantes na norma as quais mais uma vez ressaltam a importância dos dados como um forte ativo na economia digital. Por exemplo, o regulamento obriga a inclusão, nas cláusulas contratuais gerais, de descrição do acesso (ou não), por parte dos utilizadores profissionais, a quaisquer dados pessoais ou outros dados que os próprios vendedores ou os consumidores forneçam para fins de utilização dos serviços de intermediação online ou gerados no âmbito de sua prestação.
Além disso, os prestadores de serviços de intermediação devem fornecer informações aos utilizadores profissionais sobre se possuem acesso a dados pessoais ou outros dados fornecidos pelos vendedores ou pelos consumidores, quais as categorias de dados e quais as condições do seu acesso, bem como informações sobre a comunicação de dados a terceiros, caso tal comunicação não seja necessária para o bom funcionamento do serviço de intermediação.
É evidente, portanto, a preocupação do regulamento com o tratamento de dados, ficando claro que ele não afasta a aplicação das disposições do regulamento geral sobre Proteção de Dados da União Europeia (regulamento UE 2016/679, de 27 de abril de 2016, em vigor desde 25 de maio de 2018).
Por fim, vale mencionar que o regulamento em questão constitui um passo relevante para a regulamentação das atividades dos prestadores de serviços de intermediação online, em especial os marketplaces, e objetiva propiciar a criação de um ambiente favorável à inovação e ao desenvolvimento econômico neste setor de serviços na União Europa.
Nos próximos anos será possível observar os impactos concretos das normas criadas no cenário econômico Europeu, para avaliar, por exemplo, se houve resultados benéficos com relação aos critérios de transparência e eficiência ou se a medida resultou em engessamento do setor.
É bem possível, diante da experiência europeia e com base nos resultados concretos a serem observados, que venham a ser adotadas no Brasil normas inspiradas no regulamento Europeu, por exemplo, na forma de leis ou decretos, ou mesmo que, na ausência de tais normas, entidades da Administração ou do Judiciário adotem entendimentos que reflitam aqui os princípios do regulamento de transparência e equidade na relação entre intermediadores e vendedores.
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*Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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