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A rejeição tácita da MP 928 e o retorno da fluência dos prazos nos processos administrativos sancionadores

Há o recente caso da medida provisória 928, de 23 de março deste ano de 2020, que dispôs sobre as “medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” e que, no último dia 21, perdeu sua eficácia ao ser rejeitada tacitamente.

28/7/2020

As medidas provisórias são peças delicadíssimas, talvez as mais delicadas de todo o mecanismo de interdependência e harmonização dos Poderes da Constituição Federal de 88”. Essas lúcidas palavras proferidas pelo min.  Sepúlveda Pertence, por ocasião do julgamento da ADIn 221, em 1990, reverberam até hoje, audíveis em diversos precedentes julgados pela Suprema Corte e demais tribunais pátrios.

A natureza peculiar das medidas provisórias sempre desencadeou embates no meio jurídico, especialmente no tocante aos seus efeitos em situações concretas, quando não há a sua conversão legislativa.

Nesse contexto, há o recente caso da medida provisória 928, de 23 de março deste ano de 2020, que dispôs sobre as “medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus” e que, no último dia 21, perdeu sua eficácia ao ser rejeitada tacitamente.

A matéria a ser enfrentada brevemente a seguir cinge aos efeitos da referida medida provisória, notadamente no que tange ao art. 6º-C, caput e parágrafo único, inserido no bojo da lei 13.979/20. In verbis:

Art. 6º-C. Não correrão os prazos processuais em desfavor dos acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o decreto legislativo 6, de 2020.

Parágrafo único. Fica suspenso o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na lei 8.112, de 1990, na lei 9.873, de 1999, na lei 12.846, de 2013, e nas demais normas aplicáveis a empregados públicos.

A asserção normativa no sentido de que os prazos processuais nos processos administrativos sancionadores estariam suspensos “enquanto perdurar o estado de calamidade de que trata o decreto legislativo 6/20”; ou seja, até o dia 31 de dezembro de 2020, vem levantando questionamentos nos administrados quanto à manutenção dos efeitos da medida provisória, mesmo após a sua rejeição tácita.

Todavia, como acentuou a min. Rosa Weber no julgamento da ADIn 5.709a eficácia da medida provisória é temporal e limitada (...) e está sujeita à condição resolutiva do processo legislativo, que a converterá em lei ou a rejeitará, de forma expressa ou tácita”.

Para melhor explicitação da questão, nas palavras do min. Celso de Mello:

A superveniência de medida provisória, com efeito abrogante, pendente ato normativo da mesma espécie, somente poderá gerar dois efeitos. O primeiro efeito, de caráter material, consistirá na mera suspensão de eficácia jurídica da anterior medida. (…) Não se operando, porém, a sua conversão legislativa, restaurar-se-á a eficácia jurídica, até então meramente suspensa ou paralisada, dos diplomas afetados pela superveniente edição do ato normativo provisório. Essa restauração de eficácia – inconfundível com o instituto da repristinação – será ex tunc, ou seja, desde a data da edição da medida provisória não convertida” (STF. ADIn 221, rel. min. Moreira Alves, DJe 29/3/90)

Ou seja, a MP 928/20 apenas possuiu efeitos em um espaço temporal limitado ao período de sua vigência, de modo que ao ter sido rejeitada tacitamente, não se operando a sua conversão legislativa, restaurou-se a situação jurídica anterior a sua entrada em vigor, com a fruição normal dos prazos processuais.

Essa construção, todavia, não se traduz em prejuízo às relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante a sua vigência, nos moldes do art. 62, § 11, da Constituição Federal,1 de forma que a rejeição da medida provisória não alcança os casos em que os administrados se valeram da suspensão dos prazos e não praticaram atos processuais durante a vigência da MP.

Dúvida prática reside no retorno da contagem dos prazos processuais, diante da rejeição tácita da MP, bem como se haveria ou não por parte da Administração Pública o dever de notificar novamente o interessado para a prática do ato.

Em verdade, haja vista que o art. 6º-C, caput e parágrafo único, inserido no bojo da lei 13.979/20, pela MP 928/20, versa sobre a suspensão de prazos no âmbito de processos administrativos sancionadores, por meio dos quais a Administração Pública exerce o seu jus puniendi, os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório (incisos LIV e LV do artigo 5º) devem ser plenamente observados na retomada dos prazos processuais.

Nesse contexto, seria inapropriado conceber o retorno desses prazos processuais sem a devida comunicação aos administrados. Isso porque, conforme esclareceu o min. Luís Roberto Barroso, os atos do poder público devem se reger pela boa-fé e pela razoabilidade, que aliados à segurança jurídica se afiguram limites jurídicos à ação discricionária do poder estatal.2

Dessa forma, tendo em vista a necessidade de se propiciar “adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados” (art. 2º, IX, da Lei do Processo Administrativo Federal - LPA)3, bem como a incidência do princípio da oficialidade no processo administrativo,4 que é mais amplo do que o impulso oficial no processo judicial5 e que implica à administração o poder-dever de impulsionar, de ofício, o processo administrativo (art. 2º, XII, da LPA)6, não deve a Administração Pública considerar automaticamente o retorno dos prazos em face dos administrados, sem nova intimação, sob pena de cerceamento do direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório, bem como de violação ao princípio da boa-fé e da segurança jurídica.

Além do mais, vale relembrar que nem mesmo o desatendimento de eventual intimação importa no reconhecimento da verdade dos fatos ou na renúncia a direito do administrado, nos moldes do que dispõe o art. 27, da LPA,7 devendo a Administração, no prosseguimento do processo, garantir o direito à ampla defesa e ao contraditório ao interessado (art. 27, parágrafo único, da LPA).8 9

Por fim, a necessidade de nova intimação que assegure a certeza da ciência do interessado quanto ao retorno do prazo e ao ato a ser praticado se torna ainda mais evidente tendo em vista o momento atual de restrições impostas aos investigados e acusados em razão dos grandes impactos decorrentes da pandemia do covid-19, que podem representar dificuldades operacionais extraordinárias aos acusados.

_________

1 Art. 62, § 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

2 BARROSO, Luís Roberto. Recurso extraordinário. Violação indireta da Constituição. Ilegitimidade da alteração pontual e casuística da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. V. III. Disponível em clique aqui. Acesso em 23/7/20.

3 Art. 2º, § único, IX - adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;

4 Cfr.: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 13ª edição, 2001, p. 504.

5 Cfr.: NETO, Floriano de Azevedo Marques. Princípios do Processo Administrativo. 2004. Disponível em Clique aqui. Acesso em 23/7/20.

6 Art. 2º, § único, XII - impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados;

7 Art. 27. O desatendimento da intimação não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia a direito pelo administrado.

8 Art. 27. Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de ampla defesa ao interessado.

9 Sobre o direito constitucional à ampla defesa e ao contraditório, confira-se: STF. MS 24268, Relatora Min. Ellen Gracie, Relator p/ Acórdão:  Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 5/2/04, DJ 17/9/04

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*Ticiane Moraes Franco é mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos, especialista em regulação pela Universidade de Brasília. Advogada do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.





*Derick de Mendonça Rocha é mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em corporate governance pela mesma instituição. Advogado do escritório Rolim, Viotti & Leite Campos Advogados.

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