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Tecnologias no Direito Imobiliário, os principais impactos no setor

As inovações disruptivas no setor imobiliário anunciam mudanças significativas nos modelos de negócios atualmente existentes, exigindo do Direito, soluções que assegurem segurança jurídica.

28/7/2020

A relação entre Direito Imobiliário e novas tecnologias é observada em inovações disruptivas que já modificaram modelos de negócios, como o uso de plataformas eletrônicas na locação para temporada, naquelas que pretendem alterar profundamente o setor, a exemplo de proptechs, smart contracts e aplicação da tecnologia blockchain nos cartórios de registros públicos, além da digitalização de atividades tradicionais, percebida, por exemplo, na realização de assembleias virtuais.

Isto importa no reconhecimento de que essas inovações ao proporcionarem benefícios alternativos quando comparados aqueles que se costumava esperar, promovem mudanças significativas, as quais, em geral, não representam uma unanimidade. Afinal, existem posturas de rejeição dogmática, euforia, adaptação e aquelas direcionadas a aproveitar janela de oportunidades específica.

Este é o cenário de desafios para empresas e profissionais, o que exige aprofundamento no tema, de maneira a organizar debate regulatório interdisciplinar vocacionado ao design de soluções negociadas na busca por equilíbrio entre os interesses das partes interessadas, simultaneamente à discussão acerca das novas habilidades e competências exigidas daqueles que atuam nesse setor.

1. Blockchain e smart contracts

A tecnologia blockchain surgiu no âmbito das criptomoedas enquanto rede para registro de transações, principalmente, com bitcoins, chamando a atenção de vários setores pela segurança que proporciona às transações, reduzindo os riscos de falsificação. Isto é possível porque a tecnologia funciona na forma de uma cadeia de blocos, cada um com sua impressão digital (“hash”), fornecida por função matemática que carrega um código com letras e números, que cresce a cada transação, gravando todos os negócios que envolveram aquele bloco. Permite-se, assim, verificar se houve qualquer alteração para que seja possível invalidá-lo, ou confirmar se o código realmente é válido.

Acompanhando a definição da literatura especializada, a expressão pode ser sintetizada enquanto rede de negócios segura, em que ativos são transferidos por meio de um livro de registro comum, que é continuamente sincronizado e do qual todos os participantes possuem cópia.

O termo smart contracts originalmente atribuído ao cientista da computação, professor Nick Szabo, foi cunhado para um banco de dados que armazenava contratos, automatizando cláusulas importantes a fim de desencorajar a violação de seus termos.

Atualmente, diz respeito a softwares criados em linguagem de programação específica e armazenados dentro de uma rede de blockchain. Essa característica é a responsável por disseminar o uso de smart contracts, reduzindo os riscos de invasão, aumentando integridade, segurança e confiabilidade por intermédio dos registros que podem ser verificados por todas as partes interessadas.

Assim, esses documentos não podem ser alterados depois de firmados, preveem cláusulas aceitas por todas as partes contratantes, que não exigem intervenção humana para avaliar ou concretizar seu cumprimento. Em síntese, há um contrato sendo executado autonomamente por software em harmonia com condições definidas previamente.

Imagine-se, por exemplo, uma compra e venda com cláusulas resolutivas expressas. O comprador transfere recursos para a rede de blockchain onde se localiza o smart contract, a qual direciona automaticamente tais quantias para o vendedor à medida que aquelas condições vão sendo superadas e, caso, alguma não o seja, os recursos retornam ao comprador.

Esta situação hipotética se torna factível com o apoio de cartórios que utilizam a tecnologia blockchain para registro de títulos de propriedade, funcionalidades de emissão de ordens de pagamento online e dispositivos que confirmem autonomamente as características da propriedade objeto da negociação.

Na China, a imprensa local noticiou a abertura em abril de 2019 do primeiro cartório habilitado para blockchain em Pequim. Naquele espaço, permite-se ao detentor de um certificado verificar o conteúdo do documento digitalizando um código, além de outras funções que visam impedir a falsificação de documentos e o aproveitamento de assimetrias informacionais por fraudadores.

Outro caso pertinente é o da República Democrática da Geórgia. Naquele país, a implementação do registro de título de propriedade baseado em blockchain iniciou-se em 2016, contabilizando mais de 100 mil títulos registrados até 2019. O procedimento inicia-se com a solicitação do serviço pelo cidadão, em seguida o oficial do cartório realiza o registro apoiado na solução de blockchain, o sistema fornece ao cidadão um certificado digital de seu ativo, suportado com prova criptográfica da originalidade, publicada na rede pública de blockchain, sendo possível aos cidadãos verificarem a legitimidade de qualquer título.

Em termos de eficiência, o relatório da Comissão Europeia “Blockchain for digital government”, publicado em 2019, explicita que a Agência Nacional de Registro Público da Geórgia conseguiu apoiado nessa tecnologia reduzir o tempo de registro de uma propriedade para minutos, o que antes levava de 1 a 3 dias; a verificação desse tipo de documento público passou a ser feita em segundos; e os custos operacionais foram diminuídos em 90%.

Além disso, já existem plataformas privadas que realizam eletrônica e automaticamente a celebração de contratos envolvendo negócios imobiliários, abrangendo espaço virtual para a oferta da propriedade, negociação, checklist, gestão, análise e auditoria de documentação, armazenamento na nuvem e assinatura digital. Do mesmo modo, outras empresas oferecem linguagem de programação customizável para diferentes tipos de contratos, prevendo antecipadamente todas as possibilidades de acontecimentos e consequências durante o prazo de vigência daquele instrumento.

No espaço legal, existe no Canadá norma jurídica sobre tecnologia da informação (“Act to establish a legal framework for information technology”) fixando garantias para os sujeitos que fazem uso de documentos pré-programados, tais quais os smart contracts. Assegura-se, dessa maneira, a obrigatoriedade de o documento fornecer instruções quanto ao seu uso, informando adequadamente acerca de erros potenciais e mecanismos para mitigá-los ou corrigi-los, bem como evitar o recebimento de produtos e serviços não solicitados devido a alguma inadequação do software.

No Brasil, tramita no Senado Federal, o projeto de lei 2.876/20 que objetiva a alteração da Lei de Registro Públicos (lei 6.015/73) para estabelecer que os registros de títulos e documentos e de imóveis sejam feitos também em “Sistema Eletrônico de Blockchain Nacional”, o qual, segundo a redação do PL, seria disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Quanto aos contratos eletrônicos, o PL 2.359/20, em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe o acréscimo ao rol do artigo 784, CPC/15, “o documento particular, assinado, manual ou digitalmente”, apoiado na decisão do STJ no REsp 1.495.920/DF, na qual compreendeu-se pela possibilidade de reconhecimento excepcional da executividade dos contratos eletrônicos quando atendidos requisitos específicos, em decorrência da “nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual”.

2. Proptechs

O acrônimo “proptech” designa “property technology”, inovações aplicadas ao setor imobiliário, das quais fazem parte “construtechs” e “contechs”, ligadas especificamente à indústria de construção, entre outras expressões. Semelhantemente ao que ocorre nos casos de “fintechs” ou “lawtechs”, as startups voltadas para esse setor oferecem produtos e padrões inovadores ou novos modelos de negócios, ambos apoiados em tecnologia.

Em 2017, quatro proptechs foram avaliadas em mais de US$ 1 bilhão. A atuação dessas empresas consiste em intermediar negociações imobiliárias, representar juridicamente em meio eletrônico compradores e vendedores, realizar a gestão de patrimônio subsidiada na análise de big data, sugestão autônoma de opções de negócios a partir das informações relativas as características do imóvel fornecidas pelo usuário, entre outras.

Inteligência artificial, realidade virtual e aumentada, blockchain e big data são algumas tecnologias utilizadas pelas proptechs para concretizar a inovação nesse setor. Exemplos de funcionalidades são variados, incluindo: definição de preços por algoritmos; análise preditiva de mercados; due diligence para transação imobiliária a partir de processamento de linguagem natural; automação de contratos; soluções inteligentes para gestão de energia, iluminação e proteção contra incêndios; assistentes virtuais; tours virtuais em 3D; rede privada de blockchain para registrar e rastrear propriedades a fim de ampliar confiança e transparência.

3. Plataformas de locação para temporada

A intermediação realizada no meio eletrônico entre proprietários de imóveis e turistas ou outros sujeitos interessados em acomodações é inovação na locação para temporada que se consolidou nos últimos anos. Sem dúvidas, constatou-se a emergência de um novo modelo de negócios, o qual, segundo estatísticas divulgadas por empresa do setor, é usado diariamente por aproximadamente dois milhões de pessoas em mais de oitenta mil cidades ao redor do mundo.

No entanto, esse fenômeno ainda causa divergência na interpretação das normas jurídicas aplicáveis. Existem posicionamentos que privilegiam as regras expressas na Convenção do Condomínio, após deliberação na respectiva assembleia geral extraordinária, proibitivas, em algumas situações, quanto a esse tipo de relação. Entendimento diverso se relaciona a ofensa ao Direito de Propriedade, enxergando nesse tipo de regra restrição inadequada sobre a unidade autônoma pertencente ao condômino.

No Senado Federal, está em tramitação o projeto de lei 2.474/19 que propõe a vedação desse tipo de locação quando “contratada por meio de aplicativos ou plataformas de intermediação em condomínios edilícios de uso exclusivamente residencial”, ressalvada autorização expressa na Convenção, a qual deve obedecer a conjunto de requisitos.

Contudo, o relatório legislativo apresentado em dezembro de 2019 votou pela rejeição do PL, fundamentado nos benefícios dessa inovação tecnológica, tais quais redução dos custos de transação, estímulo a concorrência, ampliação e dinamização dos mercados.

4. Assembleias

A Seção do Código Civil relativa à administração do condomínio, disciplinada nos artigos 1347 a 1356 daquele diploma legal, apresenta regras sobre as assembleias nesses espaços, sendo silente quanto ao uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC).

O projeto de lei 548/19 aprovado pelo Senado Federal propõe a permissão para que TIC seja aplicada nas assembleias dos condomínios. Para tanto, sugere procedimento híbrido envolvendo “votação eletrônica dos condôminos” e “segmento virtual da reunião”, quando o quórum especial não for alcançado nas convocações presenciais, explicitando os requisitos para que ocorram as assembleias virtuais (clareza quanto às modalidades, disponibilidade de aplicativo para o voto eletrônico individual, acesso ao inteiro teor da ata da etapa presencial, entre outros).

Importante lembrar que a pandemia ao acelerar a digitalização de vários segmentos da economia e sociedade provocou mudanças normativas no que toca a realização de assembleias virtuais. No Rio de Janeiro, por exemplo, a lei estadual 8.836/20, com vigência limitada ao período de restrições para enfrentamento da covid-19, proibiu a realização de assembleias presenciais nos condomínios edilícios, recomendando a utilização do meio virtual quando as deliberações forem consideradas imprescindíveis.

A tendência é que este modelo seja incorporado ao ordenamento jurídico, semelhantemente ao que ocorreu com o texto da medida provisória 931/20, aprovado pelo Senado Federal em 9/7/20, permitindo, observadas as regras específicas, a participação e votação à distância nas sociedades anônimas, sociedades limitadas e sociedades cooperativas.

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Os cenários abordados na interseção entre Direito Imobiliário e tecnologia representam chamamento aos stakeholders, partes potencialmente afetadas e sociedade civil organizada para o debate concernente à aplicação dessas inovações nesse segmento da economia.

Os benefícios são evidentes: ganho de eficiência, desburocratização, economia de tempo e recursos, aperfeiçoamento do ambiente de negócios, os quais serão ampliados à medida que se expande a digitalização e conectividade da sociedade.

Mas é indispensável apontar a necessária adaptação do ensino jurídico e dos profissionais a fim de que as demandas diferentes e extremamente específicas dos players desse segmento sejam atendidas eficazmente, observando, entre outros aspectos, os novos tipos de transações envolvendo ativos imobiliários e a necessidade de adaptação de contratos.

Igualmente oportuna é a reflexão associada a conformidade legal e regulamentar dessas soluções, às vezes transnacionais e com implicações em múltiplas jurisdições, e aos instrumentos voltados para mitigar potenciais riscos e assegurar proteção de dados pessoais e privacidade.

Enquanto não há no Brasil legislação ou regulação em nível federal, fazem-se essenciais soluções que garantam segurança jurídica às partes interessadas, sempre sob o prisma das normas atualmente existentes e aplicáveis ao setor, de modo a enquadrar esses novos fenômenos ao arcabouço axiológico e normativo a partir do qual se estruturam os negócios imobiliários. 

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*Wilson Sales Belchior é sócio do escritório Rocha, Marinho E Sales Advogados.

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