Embora a prática de atos processuais de forma eletrônica não seja uma novidade no ordenamento jurídico, a pandemia da Covid-19 acelerou a sua operacionalização.
A lei 11.419 dispõe sobre a informatização do processo judicial, possibilitando ao Poder Judiciário, desde 2006 (ano de sua promulgação), desenvolver sistemas tecnológicos capazes de implementar o processo judicial eletrônico.
Esta lei provocou um grande avanço no que se refere à celeridade, pois enxugou os chamados tempos mortos que a prática dos atos em processos físicos gerava nos procedimentos. Atos como distribuição e juntada de petição passaram a ser realizados pelo próprio procurador da parte.
Entretanto, mesmo com o processo eletrônico, alguns atos ainda eram realizados de forma presencial, como as audiências.
Mesmo com a promulgação da lei 13.105/15 (Código de Processo Civil), que possibilitou a oitiva de testemunhas e a colheita do depoimento pessoal das pessoas que residiam em comarcas distintas daquela em que tramita o processo por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão e recepção de sons e imagens em tempo real, estes recursos eram pouco explorados pelos magistrados. Tais atos eram realizados por carta precatória, primordialmente.
A necessidade de se reduzir o contágio da Covid-19, diante da impossibilidade de se promover a continuidade da marcha processual pelos meios presenciais convencionais, inclusive a realização das audiências, passaram a ocorrer de forma telepresencial.
A Resolução 314/20 do Conselho Nacional de Justiça, instituiu como ferramenta preferencial para a realização das audiências a plataforma Cisco Webex, disponibilizada por meio de seu sítio eletrônico na internet.
É claro que a continuidade da marcha processual deve ser comemorada, pois inúmeros jurisdicionados estão à espera de um provimento judicial que resolva os seus litígios. Entretanto, existem alguns desafios a serem enfrentados, de forma a garantir o devido processo constitucional.
Serão analisados, pontualmente, os desafios para a realização das três modalidades de audiência na esfera da Justiça Comum (de conciliação ou mediação, de saneamento comparticipativo e de instrução e julgamento).
Em relação às audiências de conciliação e mediação da Justiça Comum, as audiências telepresenciais podem solucionar alguns problemas que obstaculizam o seu êxito (assim considerado quando resultam numa solução autocompositiva).
A pesquisa Mediação e conciliação avaliadas empiricamente: jurimetria para proposição de ações eficientes1, da série ‘Justiça Pesquisa’, do CNJ, teve como um dos seus objetivos identificar e analisar os fatores relevantes para o sucesso de uma conciliação e/ou mediação.
Um dos fatores apontados pelos pesquisadores como influenciadores do sucesso ou insucesso de uma audiência de conciliação/mediação é a falta de orçamento para a estruturação dos CEJUSCs, bem como a inexistência de remuneração aos conciliadores, que limitariam a atuação de profissionais com mais experiência e qualificação.
A implementação das salas de conciliação e mediação virtuais permitiriam a redestinação das verbas gastas com a estrutura física na qualificação de remuneração do pessoal que atuam nos CEJUSCs, observando-se sempre as condições materiais e operacionais dos sujeitos do processo para a realização destas, bem como a isonomia entre as partes quanto à justificativa para sua ausência e a carência de recursos tecnológicos.
No âmbito dos juizados especiais cíveis, a presença de procurador deve ser exigida neste formato de audiência e não se deve aplicar a pena de confissão, revelia ou extinção do procedimento sem a resolução do mérito para a parte ausente em audiência telepresencial de conciliação/mediação de forma automática. É necessário dar à parte a oportunidade de se justificar. Isto para garantir que nenhum direito ou garantia da parte possa ser suprimido.
A audiência de saneamento e organização do processo apenas sofre objeção procedimental para que seja realizada pelo meio virtual, quando envolver a realização de interrogatório das partes, a fim de se impedir que a parte ré tenha acesso ao depoimento da parte autora e prejudique a obtenção de confissão.
A audiência telepresencial de instrução de julgamento é a que apresenta as maiores dificuldades. As principais dificuldades que podem ser apontadas são: a) a ausência de publicidade; b) a dificuldade de manutenção de incomunicabilidade no depoimento pessoal; c) a dificuldade de identificação das testemunhas; d) a dificuldade de intimação, incomunicabilidade e inquirição das testemunhas; e) a valoração da prova pelo magistrado; e f) a instabilidade de tráfego de dados.
Para se ter acesso ao link da audiência, é necessário que o serventuário autorize a participação, que fica restrita às partes e aos seus procuradores. Há, portanto, uma violação do art. 188 do CPC e um impedimento à fiscalização dos atos procedimentais e jurisdicionais por terceiros.
Quanto ao depoimento pessoal e a inquirição de testemunhas, tem-se a dificuldade da incomunicabilidade. Será um desafio fazer com que as partes ou as testemunhas respondam às perguntas formuladas pelo juiz e pelos advogados das partes, sem que haja interferência de outras pessoas ou impedindo que elas se sirvam de escritos previamente preparados. Isso poderá ocorrer e o juízo nem perceberá, pois estará em um ambiente virtual totalmente parcial e limitado ao que captam as câmeras dos computadores.
Outra dificuldade é que, no ambiente virtual, quanto ao depoimento pessoal e à oitiva de testemunhas, deve-se garantir que a outra parte e as demais testemunhas não estejam presentes na sala virtual quando do colhimento do depoimento umas das outras. O réu não deve assistir ao depoimento pessoal do autor e as testemunhas devem participar na sala virtual uma a uma.
Além disso, há uma dificuldade na conferência, de forma efetiva, a identidade da testemunha e se ela representa realmente quem ela alega ser. A análise da carteira de identidade e seus critérios de validade, seriam mais fáceis de burlar.
Outro ponto sobre o depoimento das testemunhas é que poderá a parte se comprometer a levar a testemunha independentemente de intimação. Mas, caso a testemunha não consiga acessar o sistema Cisco Webex, no horário marcado para a realização da audiência telepresencial, isso poderá levar o juízo a entender que o não acesso da testemunha no sistema seria uma desistência da parte em sua inquirição.
Quanto à valoração da prova, pode-se imaginar que o distanciamento entre o juízo e a prova (depoimento pessoal e testemunhal) pode impedir a captação de elementos e situações que com a proximidade podem ser mais perceptíveis. A leitura corporal é importantíssima neste quesito.
. Segundo Rosemiro Pereira Leal, a valoração da prova é, num primeiro momento, perceber/ indicar a existência do elemento de prova nos autos do procedimento. Num segundo momento, pela valorização, o juízo, através de argumentos apresentará a importância do elemento de prova para a formação do convencimento e o teor significativo de seus aspectos técnicos e lógico-jurídicos de inequivocidade material e formal (LEAL, 2009, p. 135). Nas audiências virtuais, estas impressões ficariam prejudicadas.
Por fim, é preciso lembrar que, para a realização das audiências telepresenciais, é necessário que haja recursos técnicos. É imprescindível que os sujeitos do processo possuam computador ou celular, acesso à rede mundial de computadores com tráfego de dados de alta qualidade e que não podem falhar quando da realização da audiência telepresencial.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet.2 Além disso, a maioria delas utiliza-se de pacotes de dados limitados, de acordo com o plano a que aderiram.
Portanto, entende-se que as audiências telepresenciais de conciliação e mediação, bem como as de saneamento, como regra, representam um avanço das técnicas processuais e podem fomentar a qualidade e otimização desses atos.
As audiências de instrução e julgamento, entretanto, diante das diversas falhas apontadas nesta pesquisa, devem ser realizadas apenas por exceção ou desde que vencidos os obstáculos aqui apontados, sob pena de ferir o devido processo constitucional.
Qualquer falha no sistema, em quaisquer das audiências telepresenciais, não poderá gerar nenhum prejuízo para as partes, pois a necessidade da continuidade da marcha processual não pode implicar na supressão de direitos e garantias fundamentais.
Assim, o devido processo constitucional somente será considerado observado, caso respeite o contraditório, a ampla defesa, a isonomia, a publicidade e a fundamentação das decisões.
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1 RELATÓRIO ANALÍTICO PROPOSITIVO - JUSTIÇA PESQUISA. Acesso em: 09 jul. 2020.
2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Acesso em 22 jul. 2020.
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