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Audiências telepresenciais na Justiça Cível e sua compatibilidade com o Devido Processo Constitucional

As audiências telepresenciais pela plataforma Cisco Webex foram desenvolvidas como forma de se manter a marcha processual. Resta analisar se estas audiências são compatíveis com o devido processo constitucional.

23/7/2020

Embora a prática de atos processuais de forma eletrônica não seja uma novidade no ordenamento jurídico, a pandemia da Covid-19 acelerou a sua operacionalização.

A lei 11.419 dispõe sobre a informatização do processo judicial, possibilitando ao Poder Judiciário, desde 2006 (ano de sua promulgação), desenvolver sistemas tecnológicos capazes de implementar o processo judicial eletrônico.

Esta lei provocou um grande avanço no que se refere à celeridade, pois enxugou os chamados tempos mortos que a prática dos atos em processos físicos gerava nos procedimentos. Atos como distribuição e juntada de petição passaram a ser realizados pelo próprio procurador da parte.

Entretanto, mesmo com o processo eletrônico, alguns atos ainda eram realizados de forma presencial, como as audiências.

Mesmo com a promulgação da lei 13.105/15 (Código de Processo Civil), que possibilitou a oitiva de testemunhas e a colheita do depoimento pessoal das pessoas que residiam em comarcas distintas daquela em que tramita o processo por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão e recepção de sons e imagens em tempo real, estes recursos eram pouco explorados pelos magistrados. Tais atos eram realizados por carta precatória, primordialmente.

A necessidade de se reduzir o contágio da Covid-19, diante da impossibilidade de se promover a continuidade da marcha processual pelos meios presenciais convencionais, inclusive a realização das audiências,  passaram a ocorrer de forma telepresencial.

A Resolução 314/20 do Conselho Nacional de Justiça, instituiu como ferramenta preferencial para a realização das audiências a plataforma Cisco Webex, disponibilizada por meio de seu sítio eletrônico na internet.

É claro que a continuidade da marcha processual deve ser comemorada, pois inúmeros jurisdicionados estão à espera de um provimento judicial que resolva os seus litígios. Entretanto, existem alguns desafios a serem enfrentados, de forma a garantir o devido processo constitucional.

Serão analisados, pontualmente, os desafios para a realização das três modalidades de audiência na esfera da Justiça Comum (de conciliação ou mediação, de saneamento comparticipativo e de instrução e julgamento).

Em relação às audiências de conciliação e mediação da Justiça Comum, as audiências telepresenciais podem solucionar alguns problemas que obstaculizam o seu êxito (assim considerado quando resultam numa solução autocompositiva).

A pesquisa Mediação e conciliação avaliadas empiricamente: jurimetria para proposição de ações eficientes1, da série ‘Justiça Pesquisa’, do CNJ, teve como um dos seus objetivos identificar e analisar os fatores relevantes para o sucesso de uma conciliação e/ou mediação.

Um dos fatores apontados pelos pesquisadores como influenciadores do sucesso ou insucesso de uma audiência de conciliação/mediação é a falta de orçamento para a estruturação dos CEJUSCs, bem como a inexistência de remuneração aos conciliadores, que limitariam a atuação de profissionais com mais experiência e qualificação.

A implementação das salas de conciliação e mediação virtuais permitiriam a redestinação das verbas gastas com a estrutura física na qualificação de remuneração do pessoal que atuam nos CEJUSCs, observando-se sempre as condições materiais e operacionais dos sujeitos do processo para a realização destas, bem como a isonomia entre as partes quanto à justificativa para sua ausência e a carência de recursos tecnológicos.

No âmbito dos juizados especiais cíveis, a presença de procurador deve ser exigida neste formato de audiência e não se deve aplicar a pena de confissão, revelia ou extinção do procedimento sem a resolução do mérito para a parte ausente em audiência telepresencial de conciliação/mediação de forma automática. É necessário dar à parte a oportunidade de se justificar. Isto para garantir que nenhum direito ou garantia da parte possa ser suprimido.

A audiência de saneamento e organização do processo apenas sofre objeção procedimental para que seja realizada pelo meio virtual, quando envolver a realização de interrogatório das partes, a fim de se impedir que a parte ré tenha acesso ao depoimento da parte autora e prejudique a obtenção de confissão.

A audiência telepresencial de instrução de julgamento é a que apresenta as maiores dificuldades. As principais dificuldades que podem ser apontadas são: a) a ausência de publicidade; b) a dificuldade de manutenção de incomunicabilidade no depoimento pessoal; c) a dificuldade de identificação das testemunhas; d) a dificuldade de intimação, incomunicabilidade e inquirição das testemunhas; e) a valoração da prova pelo magistrado; e f) a instabilidade de tráfego de dados.

Para se ter acesso ao link da audiência, é necessário que o serventuário autorize a participação, que fica restrita às partes e aos seus procuradores. Há, portanto, uma violação do art. 188 do CPC e um impedimento à fiscalização dos atos procedimentais e jurisdicionais por terceiros.

Quanto ao depoimento pessoal e a inquirição de testemunhas, tem-se a dificuldade da incomunicabilidade. Será um desafio fazer com que as partes ou as testemunhas respondam às perguntas formuladas pelo juiz e pelos advogados das partes, sem que haja interferência de outras pessoas ou impedindo que elas se sirvam de escritos previamente preparados. Isso poderá ocorrer e o juízo nem perceberá, pois estará em um ambiente virtual totalmente parcial e limitado ao que captam as câmeras dos computadores.

Outra dificuldade é que, no ambiente virtual, quanto ao depoimento pessoal e à oitiva de testemunhas, deve-se garantir que a outra parte e as demais testemunhas não estejam presentes na sala virtual quando do colhimento do depoimento umas das outras. O réu não deve assistir ao depoimento pessoal do autor e as testemunhas devem participar na sala virtual uma a uma.

Além disso, há uma dificuldade na conferência, de forma efetiva, a identidade da testemunha e se ela representa realmente quem ela alega ser. A análise da carteira de identidade e seus critérios de validade, seriam mais fáceis de burlar.

Outro ponto sobre o depoimento das testemunhas é que poderá a parte se comprometer a levar a testemunha independentemente de intimação. Mas, caso a testemunha não consiga acessar o sistema Cisco Webex, no horário marcado para a realização da audiência telepresencial, isso poderá levar o juízo a entender que o não acesso da testemunha no sistema seria uma desistência da parte em sua inquirição.   

Quanto à valoração da prova, pode-se imaginar que o distanciamento entre o juízo e a prova (depoimento pessoal e testemunhal) pode impedir a captação de elementos e situações que com a proximidade podem ser mais perceptíveis. A leitura corporal é importantíssima neste quesito.

. Segundo Rosemiro Pereira Leal, a valoração da prova é, num primeiro momento, perceber/ indicar a existência do elemento de prova nos autos do procedimento. Num segundo momento, pela valorização, o juízo, através de argumentos apresentará a importância do elemento de prova para a formação do convencimento e o teor significativo de seus aspectos técnicos e lógico-jurídicos de inequivocidade material e formal (LEAL, 2009, p. 135). Nas audiências virtuais, estas impressões ficariam prejudicadas.

Por fim, é preciso lembrar que, para a realização das audiências telepresenciais, é necessário que haja recursos técnicos. É imprescindível que os sujeitos do processo possuam computador ou celular, acesso à rede mundial de computadores com tráfego de dados de alta qualidade e que não podem falhar quando da realização da audiência telepresencial.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet.2 Além disso, a maioria delas utiliza-se de pacotes de dados limitados, de acordo com o plano a que aderiram.

Portanto, entende-se que as audiências telepresenciais de conciliação e mediação, bem como as de saneamento, como regra, representam um avanço das técnicas processuais e podem fomentar a qualidade e otimização desses atos.

As audiências de instrução e julgamento, entretanto, diante das diversas falhas apontadas nesta pesquisa, devem ser realizadas apenas por exceção ou desde que vencidos os obstáculos aqui apontados, sob pena de ferir o devido processo constitucional.

Qualquer falha no sistema, em quaisquer das audiências telepresenciais, não poderá gerar nenhum prejuízo para as partes, pois a necessidade da continuidade da marcha processual não pode implicar na supressão de direitos e garantias fundamentais.

Assim, o devido processo constitucional somente será considerado observado, caso respeite o contraditório, a ampla defesa, a isonomia, a publicidade e a fundamentação das decisões.

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BAHIA, Alexandre; NUNES, Dierle; PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria Geral do Processo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 314, de 20 de abril de 2020. Prorroga, no âmbito do Poder Judiciário, em parte, o regime instituído pela Resolução nº 313, de 19 de março de 2020, modifica as regras de suspensão de prazos processuais e dá outras providências. Diário de Justiça Eletrônico – CNJ, Brasília, DF 28 mai. 2014. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 10 mai. 2018.

CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Mediação e conciliação avaliadas empiricamente: jurimetria para proposição de ações eficientes. Brasília: CNJ, 2019. 

DELFINO, Lucio. Reflexões sobre as providências preliminares no novo CPC. Revista Brasileira de Direito Processual Civil- RBDPro. Belo Horizonte, v. 92, out/dez. 2015.

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DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias; SOARES, Carlos Henrique; BRÊTAS, Suzana Oliveira Marques. DIAS, Renato José Barbosa; BRÊTAS, Yvonne Mól. Estudo Sistemático do CPC (Com alterações introduzidas pela Lei 11.256 de 4/2/2016. 2ª.ed., Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2016.

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SOARES, Carlos Henrique. Litigância de Má-fé no Direito Processual Brasileiro. Revista do Direito de Língua Portuguesa. Lisboa – PT, Ano II, Número 3, p. 7-36, janeiro/junho 2014.

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1 RELATÓRIO ANALÍTICO PROPOSITIVO - JUSTIÇA PESQUISA. Acesso em: 09 jul. 2020.

2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Acesso em 22 jul. 2020.

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*Carlos Henrique Soares é doutor e mestre em Direito Processual (PUC/MG), Professor de graduação em Direito Processual Civil (PUC/MG), Professor de Pós-Graduação. Professor Colaborador do Mestrado em Direito Processual (PUC/MG), Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil (IEC-Barreiro), Professor de Graduação da Escola Superior Dom Helder Câmara, Palestrante. Advogado Militante. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto Panamericano de Direito Processual. 

*Lucélia de Sena Alves é mestre em Direitos Fundamentais, da linha de Direito Processual Coletivo, pela Universidade de Itaúna (2014). Possui experiência em pesquisa empírica em Direito. Professora Universitária. Professora da Escola Superior da Advocacia de Minas Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogada no escritório Sena & Alves Advocacia.

 

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