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MP 948/20 – Interpretar é preciso…

O Objetivo da MP é afastar a regra do CDC pela qual o consumidor tem direito ao reembolso integral e em parcela única do que pagou, caso o serviço não seja prestado pelo fornecedor, ainda que por força maior ou caso fortuito (conforme doutrina consumerista: fortuito externo).

20/7/2020

Em razão da pandemia, do colapso econômico de vários setores por conta do confinamento, da redução da atividade econômica mundial (estima-se que no auge da pandemia por covid-19, 80% do PIB mundial entrou em lockdown), várias normas foram editadas para suspender ou abrandar efeitos de normas vigentes, tais como o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.

Se é verdade que o RJET – lei 14.010/20 foi de inciativa do Congresso, com apoio de um forte grupo de juristas, outras normas, menos felizes, saíram da Presidência da República. Tais normas exigem um esforço de interpretação grande, sob pena de uma distorção inaceitável do sistema vigente por meio de leituras incorretas, inconvenientes e enviesadas.

Tenho recebido, com frequência, perguntas sobre a MP 948 de 8 de abril 2020 que “Dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19)”.

O Objetivo da MP é afastar a regra do CDC pela qual o consumidor tem direito ao reembolso integral e em parcela única do que pagou, caso o serviço não seja prestado pelo fornecedor, ainda que por força maior ou caso fortuito (conforme doutrina consumerista: fortuito externo).

Pelo texto da MP 948, art. 2º, temos que “na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor”.

Para que o reembolso não ocorra, os incisos do artigo determinam o seguinte:

“I. A remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados;

II. A disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou

III. Outro acordo a ser formalizado com o consumidor”.

O parágrafo 4º merece atenção do intérprete: “§ 4º Na hipótese de impossibilidade de ajuste, nos termos dos incisos I a III do caput, o prestador de serviços ou a sociedade empresária deverá restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial – IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 2020.

Há ainda, o mal escrito, confuso e ineficaz artigo 5º, um verdadeiro acinte ao sistema e à inteligência do operador do Direito. Falaremos dele nas respostas às perguntas que recebi dos alunos e seguidores das redes sociais.

Seguem os principais questionamentos que tenho recebido por e-mail e pelas redes sociais quanto à interpretação do texto da MP 948/20:

1. Direito do consumidor ao reembolso do valor pago: existe ainda que o fornecedor assegure a remarcação do show ou evento ou disponibilize um crédito para abatimento em eventos ou shows futuros?

Como sempre digo aos alunos, interpretar é uma arte que segue princípios e tem uma lógica própria. Se possível fosse a simples leitura do texto da lei para extrair seu conteúdo, os professores de língua portuguesa que conhecem as regras gramaticais seriam melhores intérpretes que os juristas.

É por isso que a lei é lida de maneira sistemática e com base em sua finalidade (teleologia). Qual o objetivo da lei? Evitar que, com o cancelamento de shows e eventos por força das normas sanitárias que impedem aglomeração (fortuito externo), o fornecedor tenha que, de uma única vez, devolver todos os valores recebidos dos consumidores. A devolução em parcela única à vista é causa de danos econômicos graves que podem implicar a ruína do empresário.

É por isso que o artigo 2º, havendo o cancelamento do evento em razão da covid-19, “o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem: a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados ou a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas”.

A pergunta que surge é a seguinte: se o evento for remarcado para 2022 o fornecedor atende ao disposto na MP e não precisa reembolsar o consumidor?

Outra pergunta: se o fornecedor informar que o consumidor tem um crédito para qualquer show futuro, o consumidor perde o direito de reembolso?

A resposta, por óbvio, é não e só responderia sim quem não conhece o sistema jurídico. Há um ponto que norteia a interpretação das normas que cuidam de Direito do Consumidor: o risco da atividade, assim como o lucro, é apenas do fornecedor. O fornecedor não divide lucros quando os tem, e não pode dividir prejuízo se os tiver.

A força maior (fortuito externo) permite o rompimento de nexo causal e a extinção do contrato. É por isso que as partes retornam ao estado anterior, statu quo ante, e o consumidor é apenas reembolsado (não pode cobrar perdas e danos).

Agora, a MP 948 não determina que o consumidor seja obrigado a aceitar a remarcação do show (ele pode já ter morrido em 2022, ter um impedimento para a nova data, ter se mudado do país, perdido interesse no show ou evento, etc.).

Da mesma forma, o consumidor não tem, necessariamente interesse em ficar com um crédito. Imagine o professor Simão que nunca, na vida, vai a shows. Contudo, por insistência do amigo André Fígaro comprou ingressos para o show do Metalica que ocorreria em abril, em São Paulo. Ele não tem nenhum interesse em outro show e não pretende esperar que um dia o Metalica volte a São Paulo.

A única interpretação sistemática e teleológica (a gramatical deixamos aos docentes de língua portuguesa) é que o consumidor não é obrigado a aceitar a remarcação (inciso I) ou o crédito (inciso II).

Pode sim, se valer do reembolso como primeira opção, hipótese em que se sujeita à devolução em 12 meses do art. 1º, §4º. É por isso que a redação é evidente “na impossibilidade de ajuste”. O que isso quer dizer: Se o consumidor não aceitar o proposto pelo fornecedor (remarcação do show ou criação de um crédito).

Então vamos ler, de acordo com a finalidade da norma, o artigo 2º, §4º da MP 948/20:

Se o consumidor não aceitar as soluções previstas nos incisos I a III do caput, o prestador de serviços ou a sociedade empresária deverá restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial – IPCA-E, no prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 2020.”

O direito ao reembolso não deixa de existir, não some, não fica diminuído quando o fornecedor remarcar show ou lhe dá um crédito, pois o risco (e o lucro) da atividade é do fornecedor.

2. Imposição ao consumidor de penalidades, caso não manifeste sua opção (aceitar a remarcação, ficar com um crédito ou ser reembolsado) dentro de 90 dias (art. 2º, §1º da MP 948).

A dúvida a ser esclarecida aqui é a seguinte: ultrapassados os 90 dias, o fornecedor pode cobrar penalidades contratuais?

Não há qualquer problema, pois a MP autoriza a aplicação da cláusula penal mesmo sem culpa do consumidor. É uma situação atípica, pois impor perda (parcial) de parte do valor pago sem culpa é uma perversão do sistema.

Contudo, a MP pode suavizar, abrandara regra do artigo 393 do Código Civil impondo responsabilidade civil sem culpa.

Trata-se de aplicação de multa contratual (cláusula penal que já estava prevista no contrato) para a demora pelo consumidor (deixou passar 90 dias) na opção do exercício de seus direitos.

A pergunta que se faz é outra: esse prazo de 90 dias foi suspenso/impedido pelo RJET. A resposta é afirmativa e o prazo está paralisado desde 12 de junho de 2020. O prazo só se reinicia (se já tinha começado a correr) ou se inicia (se ainda não tinha começado a correr em 31 de outubro de 2020 (lei 14.010/20, artigo 3º).

A decadência trazida pela MP 948/20 foi obstada pela lei 14.010/20.

Essa multa, contudo, pode ser reduzida pelo juiz se ultrapassar o valor da obrigação principal (art. 412 do CC) ou for considerada excessiva em razão das circunstâncias do negócio jurídico (art. 413 do CC).

Se multa não houver pelo contrato firmado entre consumidor e fornecedor, não pode ser criada nesse momento.

3. O Procon pode aplicar as penalidades previstas no art. 56 do CDC, em que pese o conteúdo do artigo 5º da MP? O artigo 5º, nos termos em que redigido, tem alguma aplicabilidade prática?

Vejamos o teor do artigo 5º da MP 948/20:

“Art. 5º. As relações de consumo regidas por esta Medida Provisória caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990”

De início, a MP denota o chamado “analfabetismo jurídico”. Vamos decompor o comando legal:

Como uma relação jurídica contratual entre consumidor e fornecedor caracteriza força maior? A compra e vende um computador pela internet de uma grande loja de eletrônicos é uma relação de consumo. A contratação de um barbeiro para cortar meu cabelo é uma relação de consumo. Como que a compra e venda ou a prestação de serviço “caracterizam hipóteses de força maior”?

Caso fortuito ou de força maior, segundo a definição do Código Civil, artigo 393, parágrafo único é “o evento necessário cujo efeito não é possível evitar ou impedir”. A pandemia é a força maior. Não a relação de consumo…

A relação de consumo enseja dano moral ou punição? O que enseja dano moral ou punição é o descumprimento do contrato. É o inadimplemento da prestação pelo fornecedor.

Logo, a redação pífia, atécnica do artigo 5º, se boa e técnica fosse seria a seguinte:

“O cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública caracteriza caso fortuito ou de força maior e não sendo cabível  indenização por dano moral em favor do consumidor, nem aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990”

Cabe indenização por dano moral se o inadimplemento da prestação se deu por força maior (fortuito externo)? A resposta é negativa. Não cabe, de forma alguma, indenização.

A questão do artigo 56 do CDC é um pouco mais complexa, pois o dispositivo permite aplicação de sanções administrativas quais sejam: multa; apreensão do produto; inutilização do produto; cassação do registro do produto junto ao órgão competente; proibição de fabricação do produto; suspensão de fornecimento de produtos ou serviço; suspensão temporária de atividade; revogação de concessão ou permissão de uso; cassação de licença do estabelecimento ou de atividade; interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade; intervenção administrativa e imposição de contrapropaganda.

Qual a premissa que permite a imposição da sanção? Diz o caput do artigo 56 que são as infrações das normas de defesa do consumidor. Indago: cancelamento de shows e eventos por força da pandemia pode ser considerado uma infração? A resposta é negativa, por se tratar de fortuito externo.

Agora, a empresa fornecedora se recusar a devolver o dinheiro em 12 parcelas mensais e sucessivas nos termos do §4º do artigo 2º da MP 948/20, sob a alegação de que remarcou o show ou evento ou de que concedeu um crédito ao consumidor, interpretando a norma de maneira gramatical, ignorando a finalidade protetiva do sistema consumerista e, ainda, transferindo ao consumidor o risco de sua atividade é, claramente, infração às normas de defesa do consumidor. Cabe a imposição de multas, portanto.

__________

*José Fernando Simão é professor associado do departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo. Livre-docente, doutor e mestre em Direito Civil. Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Vice-presidente do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família São Paulo.

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