Os chamados “crimes contra a ordem tributária” foram tipificados pela lei 8.137/90, que traz disposições acerca de condutas que buscam suprimir ou reduzir tributo, contribuição social e qualquer acessório.
Em todas as tipificações, exige-se, para a caracterização do crime, o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de realizar a conduta proibida (suprimir, reduzir, sonegar, etc.). Assim, se a falta de recolhimento de tributo ou o recolhimento a menor se dá em virtude de culpa, como, por exemplo, interpretação equivocada de dispositivo legal ou desconhecimento, não há que se falar em crime.
Ressalte-se, também, que, nos crimes de sonegação fiscal, a responsabilidade penal recai somente sobre os agentes que efetivamente empregam, de forma livre e consciente, fraude para fins de suprimir ou reduzir crédito tributário.
De fato, no Brasil inexiste responsabilidade penal objetiva (sem dolo ou culpa), por presunção, por fato praticado por terceiro ou por disposição estatutária e, dessa forma, a responsabilização criminal não pode recair sobre uma determinada pessoa apenas por ela figurar nos estatutos sociais da empresa como gestora ou como responsável pelo recolhimento do tributo. Neste sentido:
“(...) o simples fato de ser sócio, gerente ou administrador de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e feito entre as imputações e a sua função na empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva. A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando inepta a denúncia”. (STJ – HC 171976/PA – Rel. Min. Gilson Dipp – 5ª Turma – Data Julg.: 2/12/10 – Publ.: 13/12/10).
Ainda, para que haja responsabilidade criminal dos sócios, administradores, etc., necessário que a autoridade fazendária noticie o Ministério Público acerca da prática de crime contra a ordem tributária, o que é feito através da “Representação fiscal para fins penais”. Tal representação somente pode ser feita após ser proferida, na esfera administrativa, a decisão final sobre a existência de crédito tributário.
Neste sentido, leciona Suzane de Farias Machado Moraes:
“Mesmo tratando-se de crimes formais ou de mera conduta, tanto quanto os crimes materiais definidos no art. 1º, os do art. 2º da Lei nº 8.137/90 necessitam da existência de um tributo devido. É preciso que exista o crédito tributário para que se possa falar em condutas tendentes a não pagá-los ou pagá-lo a menor. É necessário também que o resultado tenha sido obtido por meio de fraude e que o sujeito tenha a intenção de não pagar o tributo ou pagá-lo a menor, o que os torna dolosos. Se para a configuração dos crimes contra a ordem tributária, materiais ou formais, é preciso que exista um tributo devido, faz-se também indispensável ter havido o lançamento.” (“Prévio esgotamento da via administrativa como condição para a ação penal nos crimes contra a ordem tributária”. In Revista Dialética de Direito Tributário, nº 97. Outubro de 2003. pp. 87-88).
Outra não é a lição de Hugo de Brito Machado:
"Nos crimes contra a ordem tributária tem-se, para a configuração do tipo, a necessidade de afirmação, pela autoridade administrativa competente, da existência de tributo devido, para que se possa no juízo penal afirmar a ocorrência da conduta consistente na supressão ou redução de tributo, e assim tipificado o crime.
Podemos, portanto, afirmar que é exatamente em atenção ao princípio da autonomia das instâncias que não se poder admitir o desencadeamento da jurisdição penal antes de que se tenha manifestado a autoridade administrativa.
Pudesse o juiz penal dizer que se configurou o crime de supressão ou redução de tributo, sem respeitar a competência da autoridade administrativa para dizer se no caso existe ou não existe um tributo devido, elemento normativo daquele tipo penal, estaria violada a autonomia das instâncias. A instância judiciária teria penetrado na instância administrativa. Teria feito afirmação que constitui atribuição própria daquela.
E não se trata de mera questão formal. Trata-se na verdade de uma questão substancial da maior importância, relacionada à especialização das funções do Estado. Enquanto cobrador de tributos o Estado age corporificado por órgãos especializados nessa tarefa. Do mesmo modo, enquanto outorgante de incentivos fiscais para o desenvolvimento econômico, o Estado age corporificado por órgãos especializados nessa atividade.
A constatação da ocorrência das condutas que tipificam os crimes contra a ordem tributária constitui atribuição da autoridade administrativa. Em respeito à autonomia das instâncias, o Estado, no exercício da jurisdição penal, somente pode agir quando esteja constatada e afirmada, pela autoridade competente, aquela conduta que atinge a integridade da ordem tributária, objeto jurídico protegido nesses tipos penais”. (Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008, p. 270).
Dessa forma, percebe-se que a exigibilidade do crédito tributário somente será definitiva quando esgotadas as instâncias administrativas e os meios recursais cabíveis, somente sendo possível cogitar de crime contra a ordem tributária quando finalizadas todas as disposições sobre o lançamento do crédito tributário.
Realmente, segundo a súmula vinculante nº 24 do STF, “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Destarte, enquanto não ocorrer o lançamento definitivo, haverá comportamento desvestido de tipicidade penal, o que evidencia a impossibilidade jurídica de se adotar, validamente, contra o (suposto) devedor, qualquer ato de persecução penal, seja na fase pré-processual (inquérito policial), seja na fase processual, pois, como é sabido, comportamentos atípicos não justificam, por razões óbvias, a utilização, pelo Estado, de medidas de repressão criminal.
Neste sentido se encontra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“‘Habeas Corpus’. 1. Pedido de trancamento de inquérito policial. 2. Crime de sonegação fiscal. 3. A pendência do procedimento administrativo-fiscal impede a instauração da ação penal, como também do inquérito policial. Precedentes: PET (QO) nº 3.593/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno, unânime, DJ 2.3.2007; HC nº 84.345/PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, unânime, DJ 24.3.2006; HC (AgR) nº 88.657/ES, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, unânime, DJ 10.8.2006; HC nº 87.353/ES, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJ 19.12.2006; e HC nº 88.994/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, unânime, DJ 19.12.2006. 4. Inquérito policial instaurado antes de devidamente concluído o procedimento administrativo-fiscal. Posterior encerramento da instância administrativa fiscal e a constituição definitiva do crédito tributário não convalida o inquérito policial aberto anteriormente. 5. ‘Habeas Corpus’ deferido.” (HC 89.902/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma).
“PROCESSO PENAL E PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DELITO DE NATUREZA MATERIAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 1º DA LEI 8.137/90. IMPOSSIBILIDADE DE PROCEDER-SE A QUALQUER ATO DE CUNHO PERSECUTÓRIO PENAL ANTES DA FORMAÇÃO DEFINITIVA DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. INTELIGÊNCIA DA DECISÃO PROFERIDA NA ADI 1.571, REL. MIN. GILMAR MENDES. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO STF. ENTENDIMENTO JÁ VIGENTE À ÉPOCA DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. E HOJE CONSOLIDADO NA SÚMULA VINCULANTE 24. ORDEM CONCEDIDA.
I Os delitos previstos no art. 1º da Lei 8.137/90 são de natureza material, exigindo, para a sua tipificação, a constituição definitiva do crédito tributário para o desencadeamento da ação penal.
II Carece de justa causa qualquer ato investigatório ou persecutório judicial antes do pronunciamento definitivo da administração fazendária no tocante ao débito fiscal de responsabilidade do contribuinte.
III O entendimento fixado na ADI 1.571 reafirmou a jurisprudência do STF no sentido de que a constituição definitiva do crédito tributário configura condição necessária para o início da ‘persecutio criminis’, sendo equivocada a interpretação do julgado em questão pelo primeiro e segundo graus de jurisdição.
IV Entendimento já pacificado por ocasião do recebimento da denúncia e, hoje, consolidado na Súmula Vinculante 24.
V Ordem concedida.” (HC 97.118/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma).
Conclui-se, ao final dessa breve exposição, que, enquanto não houver o lançamento definitivo do crédito tributário na esfera administrativa, inexiste conduta típica a justificar a instauração de persecução penal por parte do Estado, sendo, portanto, ilegais a instauração de ação penal ou mesmo de investigação criminal antes de devidamente concluído o procedimento administrativo-fiscal.
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BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. BRASIL. Decreto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940.
MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Atlas, 2008.
MORAES, Suzane de Farias Machado. Prévio esgotamento da via administrativa como condição para a ação penal nos crimes contra a ordem tributária. Revista Dialética de Direito Tributário, nº 97. Outubro de 2003.
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