Em pleno clima pandêmico, com as garras do coronavírus alcançando cada vez mais um número maior de infectados, a população brasileira enfrenta, de um lado, o receio da contaminação e, do outro, a ausência de medicamento para o efetivo combate. Mesmo assim, surgem propostas de cura que, como o vírus, contaminam a boa-fé popular, em contraste com a recomendação científica. Dentre elas, a que causa maior repercussão é a utilização da hidroxicloroquina e da cloroquina.
E a pergunta que ainda pulula no ar é se o médico, no âmbito da autonomia da vontade do paciente, e a pedido dele, pode prescrevê-las como medicamento de controle especial àquele não contaminado ou até mesmo para o contaminado pelo vírus.
Para melhor alicerçar a resposta convém recordar o caso da fosfoetalonamina. O laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, produziu uma substância que foi inicialmente divulgada boca a boca, mas, com o engrossamento das informações, ganhou as redes sociais que se encarregaram de alardear os benefícios para a cura de diversos tipos de cânceres. A própria Justiça, abraçando a bandeira e a convicção popular, no âmbito de sua discricionariedade e contrariando as normas técnicas a respeito da homologação de medicamentos, assim como a opinio communis doctorum, passou a expedir ordens judiciais para a produção continuada da substância experimental. A presidente Dilma Rousseff, engrossando igual entendimento, sancionou a lei 13.269/16, que permitia a fabricação e distribuição da droga à população.
Percebe-se que a notícia de um fato que envolve interesse geral, inicialmente com repercussão restrita, atingindo somente um número reduzido de doentes, pode ganhar corpo e, como uma bolha, cresce de forma avassaladora, provocando, em consequência, o convencimento de grande parte da população, que passa a acreditar na cura da indesejável moléstia.
O Conselho Federal de Medicina, com cautela redobrada, não recomendou a incorporação da fosfoetalonamina ao arsenal terapêutico, pois as pesquisas clínicas realizadas não constataram evidência, eficácia e segurança da alegada substância, hoje comercializada como suplemento alimentar.
Feita a necessária regressão explicativa, o quadro atual demonstra que o Ministério da Saúde chegou a indicar, quando se tratar de tratamento medicamentoso precoce, a utilização da cloroquina e da hidroxicloroquina, ambas já reconhecidas como uso compassivo, nos casos graves de pacientes hospitalizados. Ocorre que estudos recentes e atualizados, principalmente a publicação feita na revista científica Lancet1, demonstraram que o uso das referidas drogas estava provocando um número maior de arritmia e mortes, retirando, portanto, qualquer benefício ao paciente. Daí que a Organização Mundial da Saúde suspendeu os estudos que vinham sendo realizados com as drogas. O Conselho Federal de Medicina, que por sua vez procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, não recomendou o uso delas, mas deixou a critério do médico a indicação, desde que seja tomada em decisão compartilhada com o paciente.
O paciente, neste patamar, ocupa lugar de destaque no Código de Ética Médica (resolução CFM 2.217/18) que, acatando o pensamento mundial que rege a matéria, estabeleceu um verdadeiro e ativo canal de comunicação entre ele e o médico. A indagação reiterada constantemente procura saber até onde alcança a autonomia da vontade do paciente. Trata-se de um ato em que o médico divide a responsabilidade com o paciente e ambos assumem a mesma empreitada na ars curandi. Pode, às vezes, não coincidir com a opinião do paciente, que opta por um determinado procedimento, em razão da liberalidade existente no Pacient Self-Determination Act.
Esta parceria de decisão que se forma a respeito do tratamento mais adequado nada mais é do que a conjugação das alternativas de ações apresentadas pelo médico e a escolha livre e autônoma do paciente. Assim é que, dentro deste contexto, a autonomia do paciente, apesar de todos os predicados legais que a vivifica, não pode ser considerada absoluta. Quando encontrar óbice com a também autonomia do profissional da saúde, este poderá eleger em seu favor a cláusula de consciência determinada por razões éticas e não aceitar a realização de procedimento sugerido pelo paciente, como, por exemplo, aborto, eutanásia e muitas outras situações de confronto ético.
Mas, no caso específico da pergunta formulada na introdução do tema sobre a cloroquina ou seu análogo farmacológico hidroxicloroquina, o médico pode sim prescrevê-la, porém deve informar ao paciente que o medicamento ainda não goza de eficácia comprovada e também a respeito dos efeitos colaterais eventuais, que podem trazer malefícios. Tudo materializado no termo de consentimento informado, peça indispensável para retratar uma decisão conjugada.
Na leitura bioética o médico vincula sua conduta pelo norte preconizado pelo princípio da beneficência, enquanto que o paciente é regido pela autonomia da sua vontade.
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