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Lei da pandemia e análise da sanção presidencial

O projeto de lei 1.179/20, que deu origem à norma, foi apresentado pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG) e aprovado pela Casa Revisora, Câmara dos Deputados, com parecer do deputado Enrico Misasi.

30/6/2020

Entrou em vigor em 12 de junho de 2020 a lei 14.010/20, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19).

O projeto de lei 1.179/20, que deu origem à norma, foi apresentado pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG) e aprovado pela Casa Revisora, Câmara dos Deputados, com parecer do deputado Enrico Misasi.

Submetido à sanção presidencial, o projeto de lei foi vetado parcialmente pelo presidente Jair Bolsonaro, por considerar determinados dispositivos inconstitucionais e contrários ao interesse público.

O novo diploma legal traz como objetivo a flexibilização das relações jurídicas privadas, a fim de garantir a segurança jurídica e atenuar as consequências socioeconômicas durante a pandemia, de modo a preservar contratos, suspender prazos e evitar uma judicialização em massa de processos, por meio do estabelecimento de normas com caráter emergencial e transitório, cuja vigência se encerrará a princípio em 30 de outubro de 2020.

O texto cria regras transitórias que suspendem temporariamente algumas exigências legais, repercutindo em institutos de grande importância e alterando regras previstas em diferentes normas, incluindo o Código Civil, Código de Defesa do Consumidor, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e a Lei do Inquilinato.

Quanto à parte já sancionada pelo presidente, destaca-se, inicialmente, a alteração mais relevante e expressiva da nova norma, relacionada à prescrição e decadência, cujo objetivo principal consiste em resguardar os interesses dos credores em geral durante o período de pandemia. Por força do artigo 3º, entre a data da entrada em vigor da lei e 30 de outubro de 2020, consideram-se impedidos ou suspensos os prazos prescricionais e decadenciais, não se aplicando enquanto perdurarem as hipóteses de impedimento, suspensão e interrupção previstas no ordenamento jurídico nacional.

Preocupou-se o legislador em estender tais regras de paralisação e de interrupção ao instituto da usucapião, suspendendo os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária.

Entre as principais mudanças promovidas pela lei, vale frisar a prorrogação do início da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) para 1º de agosto de 2021, quanto aos artigos 52, 53 e 54, que dispõem sobre as sanções administrativas aplicáveis.

A respeito do regime concorrencial, a lei suspende a eficácia de determinados dispositivos da lei 12.529/11 (Lei do CADE) durante o período de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo decreto legislativo 6 de 20 de março de 2020.

Cabe ressaltar ainda a isenção de condutas anticoncorrenciais, que, durante o referido período, não caracterizarão infrações à ordem econômica, tais como a venda de mercadoria ou prestação de serviços abaixo do preço de custo e a cessação parcial ou total das atividades da empresa sem justa causa comprovada. Fica, ainda, suspensa a obrigatoriedade de notificação de contrato associativo, consórcio ou joint ventures, celebrado e com vigência no mesmo período, desde que tenham ocorrido para combater ou mitigar as consequências da pandemia do coronavírus.

Dentre os temas endereçados na lei, verifica-se a permissão de realização de Assembleia Geral por meios eletrônicos, até 30 de outubro de 2020, independentemente de previsão nos atos constitutivos da pessoa jurídica e inclusive para os fins de destituição dos administradores e alterar o estatuto.

No que se refere às relações de consumo, fica suspenso o direito de arrependimento previsto no Código de Defesa do Consumidor, na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, até 30 de outubro de 2020.

Alterou-se no âmbito do Direito de Família a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes do Código de Processo Civil, que, durante o período da pandemia, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. E, por fim, no que concerne ao Direito das Sucessões, definiu-se pela extensão do prazo de abertura e de conclusão de inventários e partilhas.

Não se ignora o fato de que a lei 14.010/20, que prevê medidas emergenciais voltadas às relações privadas durante a pandemia, foi sancionada pelo presidente com dezesseis vetos de cunho político e jurídico, tendo sido excluídos dispositivos nucleares e polêmicos do projeto de lei original.

Dentre os dispositivos vetados pela Casa Civil da presidência da República, destaca-se a exclusão de todo o capítulo relacionado à resilição, resolução e revisão dos contratos, cujos dispositivos vedavam efeitos jurídicos retroativos e desconsideravam como fatos imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário. Também impediam o uso do Código de Defesa do Consumidor para relações estabelecidas exclusivamente entre empresas ou empresários.

O suprimento do referido capítulo foi justificado pelo fato de que “o ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos apropriados para modulação das obrigações contratuais em situação excepcionais, tais como os institutos da força maior e do caso fortuito e teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva.” 

Eliminou-se, ainda, dispositivo que restringia, até 30 de outubro, a realização de reuniões e assembleias presenciais para associações, fundações e sociedades, sob o fundamento de que, em relação a estas últimas, a matéria já foi regulamentada pela medida provisória 931/20.

Quanto aos condomínios, destaca-se o veto ao artigo que concedia autoridade aos síndicos para restringir o uso de áreas comuns e proibir reuniões e festividades em áreas de propriedade exclusiva dos condôminos. A sua exclusão do texto normativo foi justificada pelo fundamento de que tal poder retiraria a autonomia e a necessidade das deliberações por assembleia, limitando a vontade coletiva dos condôminos.

Havia, ainda, no texto uma propositura legislativa que vedava a concessão de liminar de desocupação de imóvel urbano em ações de despejo ajuizadas a partir de 20 de março até 30 de outubro de 2020. O Ministério da Justiça e Segurança Pública se manifestou pelo veto do referido dispositivo, acatado pela presidência da República, sob o argumento de ofensa ao interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento e conceder proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública, juntamente com o Ministério da Economia e a Advocacia-Geral da União, acrescentaram o veto a todo o capítulo relacionado às diretrizes da política nacional de mobilidade urbana, que previa a redução das taxas cobradas por empresas dos motoristas de táxi e aplicativos de transporte em ao menos 15%, sob o argumento de que tal medida violaria a livre iniciativa.

Por fim, o Ministério da Infraestrutura opinou pelo veto do dispositivo que autorizava a flexibilização pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran) de normas do Código de Trânsito Brasileiro, tendo em vista que o seu conteúdo violava o princípio da interdependência e harmonia entre os poderes.

Considerando que o veto da presidência da República ao projeto de lei foi apenas parcial, a parte sancionada da lei entrou em vigor na data de sua publicação, ocorrida na última sexta-feira, 12 de junho. Quanto à parte vetada, é preciso que o presidente comunique suas razões e argumentos ao Congresso e retorne o projeto para uma nova avaliação do Plenário.   

O veto presidencial será, portanto, apreciado pelos senadores e deputados em sessão conjunta do Congresso Nacional, sendo necessária a maioria absoluta dos votos de cada casa para a sua rejeição.

Não obstante a lei 14.010/20 tenha trazido questões importantes para as relações jurídicas de Direito Privado, entendemos que o tema de maior destaque e relevância do ponto de vista processual, mantido pela sanção presidencial, diz respeito à suspensão dos prazos prescricionais e decadenciais, previsto no artigo 3º da referida lei (Capítulo II).

Tal alteração foi feita sob a justificativa de assegurar os interesses dos credores em geral, especificamente para formular pretensão em juízo, tendo em vista os impactos causados pela pandemia no funcionamento regular do Poder Judiciário, bem como na submissão da advocacia privada às restrições de quarentena e isolamento social, o que poderia dificultar, em determinadas regiões, a reunião de documentação e a própria distribuição de novas ações judiciais.

Contudo, o texto contido na regra traz a possibilidade de interpretações divergentes, e já vem trazendo discussões. Isso porque o caput do artigo se refere apenas às hipóteses de impedimento e suspensão da interrupção. Em seguida, o parágrafo primeiro já inclui a interrupção da prescrição, sem que o caput preveja tal instituto. E, ao final, o parágrafo segundo complementa trazendo que o artigo também se aplicaria à decadência.  

Diante da incerteza gerada por essa situação específica, recomenda-se a adoção da postura mais conservadora possível, evitando-se, assim, discussões acerca de interpretações divergentes.

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*Rodrigo Figueiredo da Silva Cotta é advogado do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados e membro da Associação Brasileira de Direito Marítimo (ABDM).






*Mariana Dantas de Medeiros
é advogada do escritório Kincaid | Mendes Vianna Advogados.

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