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Desmistificando a telemedicina: De instrumento predatório à efetivação de direitos fundamentais

Boa medicina também se faz de modo remoto, desde que respeitados os valores consagrados pela Ordem Jurídica Nacional, tal como já é feito nos atendimentos presenciais.

26/6/2020

A implementação de novas tecnologias na saúde sempre gerou resistências. Até mesmo o uso do estetoscópio, logo que lançado, foi encarado com reservas pela classe médica da época1, pois entendia-se que o aparelho afastaria o contato corpo-a-corpo com o paciente e, por consequência, afetar-se-ia a qualidade da relação médico/paciente.

A telemedicina, de igual modo, sempre foi vista como um instrumento nefasto, com a falsa ideia de que seu uso gera impactos negativos à assistência e à higidez do vínculo com o assistido. Tal alegação até poderia ser verdadeira, caso estivéssemos a falar de um enviesamento de sua finalidade para fins meramente mercantis ou pela transgressão de normas e protocolos preestabelecidos. Contudo, argumenta-se que, até mesmo a medicina conservadora, aqui entendida como a presencial, também apresenta resultados catastróficos se o médico não a empreender com esmero, técnica, empatia, escuta ativa e, segundo o que prevê o estado da arte.

Cediço que a pandemia da covid-19 exigiu da humanidade novos desafios, como mudanças drásticas de hábitos e rotinas. A frase de ordem para combater ou mesmo reduzir os efeitos deletérios desse vírus é “fique em casa”.

Pois é, mas e os pacientes que possuem doenças crônicas ou que então padecem de algum mal agudo, como é que ficam? Terão que abrir mão do controle ou do tratamento da sua moléstia porque estão impedidos de saírem de seus lares rumo aos consultórios? Terão que renunciar ao Direito à Saúde e à vida?

Claro que não. A prevenção, o diagnóstico, o controle e o tratamento da doença que afeta o paciente não depende, necessariamente, que profissional e paciente estejam no mesmo quadrado geográfico. Por uma tela de smartphone ou computador, a ação médica pode ser desempenhada com todo o cuidado que se exige. E vou além, os propósitos da telemedicina não se exaurem aos contextos pandêmicos ou de guerra.

Certo é que esse momento de crise é disruptivo. Uma enorme oportunidade para rompermos esse muro pesado e amargo que não tem mais razão de ser. A telemedicina não é vilã. A telemedicina não desumaniza ou mecaniza a relação com o paciente. Pelo contrário. Tem carga axiológica. É veículo de acesso e de efetivação de direitos fundamentais. É instrumento de humanização.

Nesse sentido, uma das maiores autoridades sobre a prática no Brasil, doutor Chao Lung Wen, nos assegura com assertividade que “uma das principais potencialidades da Telemedicina é sua capacidade de aumentar os relacionamentos de confiança entre profissionais da saúde, pacientes e familiares”.2

Com efeito, há muito mais motivos para amarmos a telemedicina do que para não amarmos. Até mesmo a aplicação da teleconsulta, uma de suas modalidades mais rejeitadas, constitui-se em veículo benevolente de transformação de vidas humanas. Defendo que essas consultas virtuais, inclusive, deveriam permanecer após decretado o fim da pandemia. Vale destacar que, fora do contexto da crise, a teleconsulta, infelizmente, não é permitida pelo Conselho Federal de Medicina. Em razão da covid-19, foi autorizada em regime de excepcionalidade.

As pessoas precisam conhecer a que veio este instrumento do bem. A telemedicina é muito mais que um capricho ou uma busca ambiciosa por inovações. É questão de necessidade e de dignidade.

Apenas para ilustrar, são incontáveis as pessoas que não possuem acesso a uma consulta presencial, seja porque sua cidade carece de médico ou simplesmente porque, em razão de limitações de ordem física e/ou até de logística, o indivíduo fica impedido de se deslocar até a uma unidade de saúde. Os teleatendimentos oportunizam que essa pessoa seja examinada e assistida em suas necessidades. Evita desdobramentos mais graves de um AVC, por ex., (com a introdução precoce de medicação). Possibilita acompanhamentos de pacientes crônicos, com doenças degenerativas, idosos e deficientes físicos (que tem mais dificuldades de sair de casa). Propicia intervenções no tempo oportuno. Evita agudizações de doenças.

O virtual, pela facilidade imanente, faz com que as avaliações sejam mais frequentes (isso previne danos), as prescrições mais personalizadas, além de inserir o paciente no protagonismo do seu tratamento, conferindo-lhe plena autonomia em suas escolhas de saúde. A facilidade das telas e da Internet coíbe suicídios (teleconsultas psiquiátricas) e evitam hospitalizações contraindicadas aos pacientes imunodeprimidos, suscetíveis à infecções hospitalares.

A telemedicina reduz custos e idas desnecessárias a Centros de Saúde. Significa o médico mais perto do paciente, com resgate da relação estreita e saudável.

Na inteligência acertada de Alexandre Guerra, “a telemedicina opera seus esforços no contínuo processo de humanização da Saúde”3. “É uma ferramenta com potencial para reunir as novas soluções em saúde, em como visto, diversos procedimentos podem vir a ser substituídos por tecnologias. O fato que merece destaque é que os mesmos problemas éticos que podem ser identificados no atendimento pessoa estão igualmente presentes com o emprego dos instrumentos de comunicação eletrônica.”4

Nesse ritmo de direção, a pandemia tem nos revelado muitas lições positivas (e humanísticas) da telemedicina. Está a nos mostrar que é possível, dentro das limitações e especificidades de cada caso, que o atendimento em um ambiente online é sim saudável e, por vezes, imperioso. A aplicação está beneficiando milhares de brasileiros, além de proteger o Sistema de Saúde. Se não fosse isso, teríamos mais pessoas transitando, com um aumento ainda maior da curva de contágio. As teletriagens também estão trazendo asuspiciosos resultados na alocação de recursos escassos. É a tecnologia na medicina evitando tragédias humanas.

Ademais, as teleinterconsultas, que se respaldam na troca de informações entre médicos a distância, estão sendo decisivas no combate à doença, com maiores assertividades diagnósticas e prescrições terapêuticas.

Aliás, no SUS, já contamos com ações de telediagnóstico e teleinterconsultoria. É o Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes5, que objetiva melhorar a qualidade da assistência e da atenção básica, reduzir custos, tempo de deslocamentos, agilidade aos atendimentos e otimizar recursos.

Em suma, boa medicina também se faz de modo remoto, desde que respeitados os valores consagrados pela Ordem Jurídica Nacional, tal como já é feito nos atendimentos presenciais, como a boa-fé objetiva, o respeito à autodeterminação e à intimidade do paciente, a aplicação de princípios bioéticos, além de obediência às normativas específicas que cercam o tema. Telemedicina é acesso, é eficiência, é democracia. Significa dar concretude aos desígnios do princípio do livre desenvolvimento da personalidade.

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1 Vide: Telemedicina e proteção de dados: reflexões sobre a pandemia da Covid-19 e os impactos jurídicos da tecnologia aplicada à saúde, Revista Thompson Reuters. José Luiz de Moura Faleiros Junior, Rafaella Nogarolli e Caroline Amadori Cavet

2 Chao Lung Wen, Artigo: Telemedicina e Telessaúde valorizam a humanização da relação entre profissionais de saúde, pacientes e familiares. Disponível clicando aqui. Acesso: 16.06.20

3 GUERRA, Alexandre. Responsabilidade civil e telemedicina. In: ROSENVAL, Nelson; MENEZES, Joyceane de; DADALTO, Luciana. Livro responsabilidade civil e medicina. São Paulo: Foco, 2020. p. 147.

4 Alexandre Guerra, Artigo Responsabilidade Civil e Telemedicina, Livro Responsabilidade Civil e Medicina, Nelson Rosenval, Joyceane de Menezes e Luciana Dadalto, Editora Foco, 2020. P. 151 e 152

5 Disponível clicando aqui. Acesso em 14 jun. 2020.

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*Giovanna Trad é advogada especialista em Direito Médico. Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Sócia fundadora do escritório Trad & Cavalcanti Advogados.

 

 

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