Signo da maturidade civilizatória de qualquer comunidade política, a institucionalidade encontra, na crise, o seu mais decisivo teste de resistência. Abaladas as condições ordinárias de vida, alterados os problemas cotidianos e o receituário conhecido de suas soluções, a prevalência dos arranjos institucionais passa a conviver com a incerteza do novo cenário e, não raro, com a presença proativa - e até bem intencionada, muitas vezes - de agentes e instâncias políticas ávidos por entregar alguma resposta (qualquer que seja ela) ao período crítico que se esteja a enfrentar.
Iniciativas formais, boas intenções e proatividade não são um problema em si. Muito pelo contrário. Envolvimento e presteza são o que se espera de instituições públicas em momentos delicados. Validade e legitimidade, entretanto, é o que lhes ampara a existência no Estado de Direito. Fora da crise e, nela, com redobrado vigor. De modo que ao Direito e à institucionalidade, o que cabe, notadamente nas situações críticas, é submeter as iniciativas políticas ao mais apurado filtro de validade, a fim de que a crise não se converta em caos, que boas intenções não resultem em gravosas (e inesperadas) consequências ao que se pretende proteger e que ambientes temporários não produzam rupturas permanentes.
Com esse pano de fundo, a pandemia da covid-19 chegou ao setor elétrico nacional por dois modos bem distintos. Um deles, trilhado pela Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL e pela própria União, titular dos serviços do setor. Outro, bem diferente, traçado pelas instâncias políticas dos estados. A prevalência de um ou de outro será decidida pelo STF em uma série de ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica – ABRADEE, a começar pela ADIn 6.406/PR, cujo julgamento será retomado no dia 19 de junho.
Pois bem. No ambiente técnico e especializado da ANEEL, logo no início de tudo, em 24 de março de 2020, produziu-se uma resposta regulatória formal, institucionalizada e coordenada à crise: a resolução 878/20, destinada a reger o serviço de distribuição de energia elétrica durante o período de pandemia.
Entre outras tantas disposições1, a resolução da ANEEL proibiu o corte de energia para um amplíssimo rol de usuários (os de maior vulnerabilidade), entre eles os usuários residenciais, urbanos e rurais, os que desempenham atividade considerada essencial e onde se localizem pessoas usuárias de equipamentos de autonomia limitada, vitais à preservação da vida humana e dependentes de energia elétrica. Por outro lado, a ANEEL preservou a possibilidade de suspensão do serviço, por inadimplemento, para os usuários de maior capacidade econômica, não residenciais. Ademais, manteve a aplicabilidade de outros meios de cobrança das tarifas, suspendendo a fluência de juros e a incidência de multas em hipóteses também delimitadas
O objetivo declarado da resolução da ANEEL2 foi o de conciliar uma necessária perspectiva humanista, de preservação das classes de consumidores mais expostos à crise, com uma inevitável ótica técnica e pragmática, pautada pela constatação de que a atividade distributiva de energia depende de certas condições econômico-financeiras mínimas, sem as quais também ela sucumbirá aos efeitos da crise, em prejuízo de tudo e de todos. Protegeram-se os mais expostos à crise e exortou-se a contribuição dos usuários dotados de aptidão econômica para honrar com seus débitos tarifários. Tudo isso com ampla participação da área técnica da ANEEL e consulta prévia a todos os agentes setoriais, prestigiando-se as variáveis “objetivas e subjetivas concernentes ao consumo de energia elétrica que compõe a regulamentação do setor”, como anotou o ministro Luiz Fux em recente decisão na STP 272.
Reunida em sessão extraordinária no último dia 15.06.20, a Diretoria da ANEEL ainda prorrogou o prazo de vigência da resolução 878/20 por mais um mês, uma vez que a curva de infectados pela pandemia do covid-19 não decresceu de março até o momento, situação que impossibilita os usuários, notadamente aqueles economicamente menos favorecidos, de adimplir com as suas faturas de energia3. Determinou-se, por fim, a abertura de nova consulta pública, para que sejam colhidos subsídios e aportes de todos os setores da sociedade acerca da transição gradual para o regime ordinário de suspensão do fornecimento de energia por inadimplência.
Ainda no plano federal, editou-se a medida provisória 950/20, com a qual se deu um passo adiante na proteção dos usuários mais necessitados do setor, assegurando-se, para os beneficiários da Tarifa Social, a isenção tarifária durante a pandemia. Dando-se que o resumo da normatização federal da crise para o setor elétrico é de que a ANEEL e União, a tempo e modo, criaram uma ampla rede de proteção aos usuários mais vulneráveis, mas também garantiram condições mínimas de sustentabilidade financeira para o setor elétrico.
Esse regramento federal (zeloso e tempestivo) é virtuoso também pelo fato de assegurar uniformidade de tratamento às concessionárias e aos usuários de todo o País, algo que é imprescindível num setor interligado por natureza. As distribuidoras ficam apenas com menos de 20% do total da fatura. Todo o resto é composto por tributos, encargos setoriais e remuneração dos outros segmentos da cadeia energética. Logo, incidir sobre a fatura cobrada pelas distribuidoras é incidir sobre toda a cadeia do setor elétrico. Já do ponto de vista jurídico, o que se nota é que a resolução da ANEEL cobriu todos os temas atinentes à distribuição de energia. Não há vácuo normativo no setor quanto aos efeitos da atual pandemia.
O que poderia ser apenas um belo capítulo de institucionalismo e boa atuação regulatória, porém, tem sofrido os efeitos externos de uma segunda forma de lidar com a crise pandêmica nos assuntos alusivos à energia elétrica. Diversos estados têm editado leis que tratam dos mesmos temas já versados pela ANEEL na resolução 878/20. Proibição ampla e irrestrita do corte de energia, imposição (direta ou por delegação ao governador) de algum tipo de parcelamento dos débitos tarifários, impedimento também generalizado da fluência de juros e da incidência de multas, tudo isso tem sido objeto da ânsia legislativa estadual de deixar a sua marca no enfrentamento das consequências da covid-19.
As leis têm conteúdo diverso, entre elas, contudo, todas elas se contrapõem à disciplina federal. O cenário é o pior possível: pulverização normativa, descoordenação institucional e atecnia no modo de enfrentar o problema.
Foram ajuizadas, como dito, ADIs, pelas quais se vindica a reafirmação do perfil constitucional do setor elétrico, marcado pela competência privativa da União para organizá-lo normativa e administrativamente. Uma competência que se robustece, além do mais, nas situações em que a ANEEL (ou o nível federal, como um todo) dispõe exaustivamente sobre determinado tema, como se dá na espécie, com a resolução ANEEL 878/20.
Para além da literalidade contundente e da racionalidade subjacente aos arts. 21, inc. XII, “b”, e 22, inc. IV, da Constituição Federal, as ações diretas baseiam-se em linha jurisprudencial tão antiga quanto sólida e constantemente reafirmada pelo STF. Por ela, reputam-se inconstitucionais os diplomas estaduais que tratem da prestação (e da contraprestação) dos serviços de energia elétrica, mormente na hipótese em que o tema já seja versado por norma federal.
São diversos os precedentes, mas pode-se ficar com o exemplo de dois dos mais recentes, julgados em 2019 no Plenário do STF: a) ADIn 3.866, de relatoria do min. Gilmar Mendes, pela qual se declarou inconstitucional uma lei que trazia hipóteses de proibição do corte de energia por falta de pagamento – mesmíssima matéria das ADIns referidas; b) ADIn 5.610, de relatoria do min. Luiz Fux, ocasião em que o Pleno chamou atenção para o fato de que já havia regras federais, da ANEEL, sobre a temática versada numa lei baiana. Com isso, decidiu-se pela inconstitucionalidade da lei estadual – também o caso presente.
Já em plena crise, essa jurisprudência foi reconhecida e aplicada pelo ministro Luiz Fux, na STP 272, ao consignar que o tema da suspensão de fornecimento de energia elétrica durante a pandemia já foi adequada e suficientemente normatizado pela ANEEL, entidade dotada de competência jurídica, expertise técnica e capacidade institucional para decidir questões regulatórias complexas e baseadas em prognósticos especializados.
Anotou Sua Excelência: “no exercício de sua competência privativa para legislar sobre energia (CF/88, art. 22, IV), a União editou a lei 9.427/96, mediante a qual, entre outras providências, criou entidade com competência normativa e reguladora da aludida atividade econômica - a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Nesse contexto, em atenção à presente situação de emergência de saúde e, por consequência, às medidas de restrição de circulação de pessoas no território nacional, a ANEEL editou a resolução normativa 878/20”.
No plano jurídico, portanto, essa é uma questão que tem o seu lugar muito bem demarcado pela Constituição e zelosamente garantido pelo STF. O campo valoroso e avançado da institucionalidade, aqui, é o da produção regulatória especializada, tecnicamente embasada, transparente e tempestiva. Precisamente, então, o campo normativo da ANEEL e da resolução 878/20.
Ocorre que todo esse arranjo normativo e regulatório federal, pautado pela otimização entre a proteção ampla dos usuários mais necessitados e a manutenção de patamares mínimos de sustentabilidade financeira para o setor, é severamente abalado pela entrada em vigor de leis estaduais que acabam, em última medida, por estimular a inadimplência generalizada, mesmo daqueles que podem pagar. Mais do que isso, essas leis estaduais, ao darem o mesmo tratamento aos usuários de maior e menor capacidade econômica, desprotegem os mais necessitados. Explica-se.
A suspensão da possibilidade de corte de energia (com o seu inquestionável estímulo à inadimplência), assim como a instituição de novas hipóteses de parcelamentos dos débitos tarifários e de não fluência de juros moratórios, todas essas medidas resultam em consequências financeiras para o setor elétrico. O custo da inadimplência, de um modo geral, é econômica e normativamente incorporado às tarifas futuras. Ou isso ocorre ou o setor teria de ser subsidiado por recursos públicos, às custas de todos os contribuintes – o que tenderia a ser mais gravoso para os pequenos usuários, na medida em que deixaria de ser aplicada uma relação de proporcionalidade entre o montante pago e o montante consumido.
Considerando-se, então, que a resolução ANEEL 878/20 suspendeu o corte de energia para os usuários mais vulneráveis, mas preservou essa possibilidade para os de maior capacidade econômica, o que fez a agência reguladora foi delimitar o espaço de estímulo à inadimplência por um critério tão adequado quanto justo; ou seja, limitando-a a quem, de fato, não pode pagar. Mais do que isso, a ANEEL instituiu um subsídio tão cruzado quanto virtuoso, pois a inadimplência incrementada nos usuários mais vulneráveis será revertida, como dito, em elemento tarifário futuro. Entretanto, esse elemento tarifário futuro será repartido entre todos os usuários (os mais vulneráveis e os de maior capacidade econômica), assim aliviando o impacto para as classes mais necessitadas.
O que acontece, porém, se leis estaduais ampliam a proteção ao corte, para além do que estabeleceu a ANEEL? Ora, a inadimplência aumentará, de modo generalizado, inclusive por classes de usuários que, em rigor, poderiam arcar com seus débitos tarifários. Aumentando-se a inadimplência, também será incrementada a pressão tarifária futura, agora causada por todos. De modo que, novamente, ter-se-á um subsídio cruzado, mas agora deturpado: a inadimplência estimulada dos usuários de maior capacidade econômica a ser dividida entre todas as classes de usuários, inclusive os mais vulneráveis.
Trata-se daquilo que Cass Sunstein4 denomina de “efeitos paradoxais da regulação”. Para o constitucionalista norte-americano, “por paradoxos do Estado regulador, refiro-me a estratégias que se aniquilam (self-defeating strategies)”. Isto é, estratégias que alcançam um fim diametralmente oposto àquele originariamente pretendido. Noutros termos, como afirma Grabosky5, “o velho adágio de que o caminho do inferno está coberto de boas intenções se aplica a muitos aspectos da vida, neles incluída a política regulatória”6.
Daí que, para além de manifestamente inconstitucionais e desleais do ponto de vista federativo, esses diplomas estaduais, embora dotados de boas intenções, acabam por atingir efeito oposto ao pretendido: acabam por prejudicar os usuários, notadamente os menos favorecidos economicamente.
A pandemia tem apresentado, ao País, desafios para os quais boa parte das pessoas e dos agentes políticos não estava preparada. Em momentos assim, o que se espera de uma comunidade comprometida com a institucionalidade é que a atuação de instâncias públicas competentes e especializadas seja, mais do que nunca, protegida e garantida. Pois é dessas garantias constitucionais que, nas palavras de Paulo Bonavides, ressai a “proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza".
Que o STF possa, então, proteger, a um só tempo, o perfil constitucional do setor elétrico, o espaço institucional e qualificado da ANEEL, a segurança e a sustentabilidade energéticas, os usuários mais economicamente vulneráveis e a própria e antiga e consolidada linha jurisprudencial dele mesmo, STF. Tudo isso passa, inicialmente, pela concessão da medida cautelar na ADIn 6.406, a partir do dia 19 de junho.
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1 Do modo de faturação à forma de atendimento ao público, passando pelos mecanismos de cobrança e pela imposição de uma pauta prioritária de obrigações às concessionárias, tudo é abordado na resolução 878/20 a partir do olhar técnico e especializado de uma instituição que tem na regulação do sistema de energia elétrica a sua própria razão de ser. Frisando-se que o funcionamento regular do segmento de distribuição depende do equilíbrio entre as perspectivas de todos aqueles que protagonizam a oferta e a demanda de algo tão essencial como a energia elétrica.
2 Na Reunião Extraordinária da Diretoria da ANEEL, que culminou na publicação da resolução normativa 878/20, o relator do processo 48500.001841/2020-81 (doc.7), Diretor Sandoval Feitosa, anotou: “essa decisão visa assegurar a preservação do fornecimento aos consumidores mais vulneráveis e, ao mesmo tempo, dar uniformidade ao tratamento a ser aplicado pelas empresas de distribuição de energia elétrica, uma vez que alguns Governos Estaduais e Municipais têm emitido decretos para abordar questões associadas ao fornecimento de energia, inclusive a suspensão (‘corte’).”.
3 Nas palavras da Diretora Elisa Bastos Silva, a não prorrogação da possibilidade do corte de fornecimento por inadimplência “significaria reintroduzir uma série de responsabilidades às distribuidoras, com exposição de seus quadros de colaboradores e consumidores, sem uma discussão mais aprofundada sobre quando isso deveria ocorrer, haja vista que o prazo inicialmente estabelecido no regulamento foi colocado em um momento em que os efeitos da pandemia não eram totalmente conhecidos.”
4 SUNSTEIN, C. (1990). “Paradoxes of the Regulatory State”. In: University of Chicago Law Review, 57, p. 407-441.
5 GRABOSKY, P.N. (1995). “Counterproductive regulation”. In: International Journal of Sociology of Law, v. 23, p. 347-369.
6 Na mesma linha, Alexandre Ditzel Faraco e Diogo R. Coutinho, a partir de prognósticos empíricos relativos ao setor regulado de telecomunicações no Brasil, assinalam em artigo acadêmico específico que “alterações extemporâneas de regras de regulação, mesmo quando destinadas à realização de finalidades das quais dificilmente se discorda, podem ser contraproducentes e, ao final, prejudicar justamente os interesses que se quis proteger. Isso porque — e a iniciativa de extinção da assinatura na telefonia fixa chegou a descortinar a iminência desse resultado — o abalo do compromisso regulatório pode levar a um ou mais dos três seguintes desfechos: aumento de tarifas, redução de investimentos, atraso no cumprimento de obrigações ou aumento da percepção geral de risco do investidor”.
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*Orlando Maia Neto é integrante do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia e subscritor das ADIns referidas no texto.
*Leonardo P. Santos Costa é integrante do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia e subscritor das ADIns referidas no texto.