Migalhas de Peso

Um Brasil só e um herói só

A história galopa um unicórnio diante dos nossos olhos. Estará em curso uma revolução global nos usos e costumes?

16/6/2020

“(...) their deathless attachment to freedom (...) the air they have of persons who never knew how it felt to stand in the presence of superiors ... the President’s taking off his hat to them not they to him ... The President is up there for you ... it is not you who are here for him ... The Secretaries act in their bureaus for you ... not you here for them ... The Congress convenes ... for you ... Law, courts, the forming of states... are all for you (...)” (WHITMAN, Walt, in “Leaves of Grass”, the Original 1855 Edition, NY, Dover Publications, 2007, pp. 4, 72 e 73)

“Todas as revoluções modernas resultaram num fortalecimento do Estado (...)” (CAMUS, Albert, “O Homem Revoltado”, RJ: Record, 2011, p. 208).

A história galopa um unicórnio diante dos nossos olhos. Estará em curso uma revolução global nos usos e costumes? Nada, dizem os gurus, será como antes. O que será, no entanto, não se sabe. Futurologias são passatempos. Não se explica o inexplicável – a vida1 e o homem2; não se controla o incontrolável – o pensamento; e, sobretudo, não se elimina o ineliminável – a ignorância. Muda o conhecimento, muda a compreensão do real. Que homem seria esse, se navegasse em buracos negros? Até aí vai a relatividade de Einstein. Até o dia em que se descobrir um atalho.

Tudo, é claro, é especulativo e nada prova, a não ser (I) que a história não acaba – e, no dia em que acabar, não haverá, é certo, último homem para contá-la; (II) que não é possível aferrar-se a profecias do tempo da máquina a vapor; e (III) que nada é garantido. Se a democracia constitucional e os direitos humanos são, no campo das liberdades, o que, até aqui, de mais consistente se elaborou, não é certo que serão proclamados por todos, nem que serão preservados onde são proclamados, nem que serão respeitados onde são preservados. Ninguém está imune a surtos de histerias irracionais, a nacionalismos psicóticos e manifestações esotéricas do Espírito do Tempo, a historicismos homicidas e a outras tantas sandices e astúcias da razão que entortam a cabeça e provocam avarias irreversíveis. A única lei que a história chancela é a de que, olhando para trás, tudo poderia ter sido diferente. E o único critério válido é o critério (humano) do trial and error: filtra-se o que presta do que não presta. Esse é o ônus de ser livre. E se o jogo se ganha no meio de campo, que a Europa – o meio de campo do mundo – desempenhe um lúcido papel no porvir. São caliginosas suas sombras do passado. Mas é ali também que se empreende a alvissareira experiência cosmopolita mais próxima daquilo que Kant vislumbrou como um projeto para a paz mundial.

Nada será o mesmo. Sim, mas talvez alhures. Entre nós, tudo será pior do que antes. Não é ser mal profeta aqui – oxalá fosse bom, então eu erraria tudo. É que, se as últimas revoluções levaram ao fortalecimento do Estado – e, se se olhar bem, até a independência norte-americana levou à União –, então tudo de que realmente não precisamos agora é de uma nova. Já temos a nossa Weimar tupiniquim a voar em céu de brigadeiro; já temos muito bem aparelhado o nosso neo constitucionalismo principista-master-blaster-ultra-mega-power – a quintessência do discurso reacionário; já temos, enfim, a nossa Constituição 1984 de 1988, a Constituição holística, dirigente, absorvente, que tudo inocula, tudo monitora, tudo submete: família, ciência, propriedade, economia e cultura; a Carta que nos torna a todos clientes do Estado – daí o estado da arte das nossas artes...

Pulverizada a ideologia de velhas e emboloradas tábuas, o que, no rescaldo, restou da Constituição carismática? De todos os contínuos expurgos de seus excessos de anacronismos congênitos empreendidos ao longo desses mais de 30 anos, com mais de 100 emendas, o que ficou? Sobrou a nua propriedade do poder e sua narrativa geral, válida por si mesma, como síntese suprema de todas as antíteses; sobrou o seu instrumental teórico de presunções e primazias e privilégios; e sobrou a velha desigualdade oficial (lugar comum de todo Estado forte). Na Granja dos Bichos, uns são mais iguais do que os outros. E se viver é muito perigoso, uns vivem essa aventura cercados de garantias e regalias,3 e outros, de garantias e regalias nenhumas; ou pior, ficam à mercê de oscilantes interpretações de ocasião das leis. É claro que a pandemia não altera esse quadro. Antes, o recrudesce(u). Para o Poder Público, pandemia é parúsia; hora de lucrativas compras emergenciais; de rever e reajustar benefícios; de não pagar o que já não era pago (dívidas públicas, precatórios, etc.); de se evadir de responsabilidades; de varrer, enfim, obrigações presentes, pretéritas e futuras.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui.

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1 “Ever the old inexplicable query”; WHITMAN, Walt, in “Leaves of Grass”, the Original 1855 Edition, NY, Dover, 2007, p. 58.

2 “What is a man anyhow?”; WHITMAN, Walt, in “Leaves of Grass”, the Original 1855 Edition, NY, Dover, 2007, p. 67.

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*Bruno Di Marino é advogado.




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