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O dever de renegociar contratos: O que é e modo de usar

Quando se pensa a renegociação como dever, o problema é: saber se os contratantes têm o dever legal – ou seja, nascido diretamente da lei – de discutir novas bases para o contrato, mesmo que nada tenham dito no instrumento originário.

8/6/2020

Em tempo de crise, pleitos de revisão e resolução de contratos se tornam lugar-comum; “onerosidade excessiva” e “força maior” são as palavras-chave. Nesse contexto, ganha vigor o chamado “dever de renegociar”. Nem sempre, porém, ficam claras no argumento as bases jurídicas desse instituto ou quais as implicações práticas que dele se espera. Daí a pergunta: do que estamos falando quando falamos em dever de renegociar?

De saída, afastemos o que ele não é – fazendo duas breves distinções de conceito.

Primeira: é sempre recomendável, diz o bom senso, que as partes busquem respostas consensuais para equilibrar seus contratos frente a situações imprevisíveis. A mesma autonomia que originou o vínculo deveria ser exercitada depois, para modificá-lo. Agindo assim, os contratantes evitam desgastes com o litígio judicial ou arbitral – e podem encontrar solução mais satisfatória aos seus próprios interesses. Disso não se extrai o dever de renegociar. Proclamar um dever jurídico é ir além das recomendações, dos conselhos.

E segunda. Em contratos complexos, geralmente de duração longa, o próprio instrumento negocial costuma prever procedimentos específicos para revisar o ajuste diante de circunstâncias extraordinárias. São as “cláusulas de hardship”, na prática internacional1. Aqui, a renegociação tem natureza de obrigação contratual; sua fonte é o próprio contrato – e a criatividade das partes é o limite. Os temas dialogam; mas também não é exatamente disso que se cogita.

Quando se pensa a renegociação como dever, o problema é: saber se os contratantes têm o dever legal – ou seja, nascido diretamente da lei – de discutir novas bases para o contrato, mesmo que nada tenham dito no instrumento originário.

Passemos então àquilo que o dever de renegociar de fato é. Dizer que algo é dever jurídico pressupõe três assertivas: ele encontra fundamento no direito positivo; confere a um sujeito o poder de exigir de outro certo comportamento; e o seu não-desempenho gera consequências imputáveis ao inadimplente. Vejamos como cada uma se aplica.

Qual o fundamento jurídico-positivo do dever de renegociar? No Brasil, é a cláusula geral da boa-fé objetiva: na função integrativa e criadora de deveres de conduta aos contratantes (art. 422 do Código Civil). É diferente do que se passa em outros sistemas de direito contratual, que preveem expressamente o dever de renegociar. Bons exemplos – vindos de soft law – são os princípios do Unidroit (art. 6.2.3)2 e os Princípios de Direito Contratual Europeu (art. 6:111)3. Entre nós, a renegociação emerge como dever lateral implícito à boa-fé – desdobramento dos deveres de cooperação e lealdade mútua4.

Sobre os comportamentos exigíveis a partir do dever de renegociar. Sintetizando numa ideia-matriz, os contratantes podem vindicar um do outro que se engajem seriamente em renegociações para preservar o contrato. A via é de mão dupla. À parte prejudicada, engajar-se seriamente significa: informar o fato que impacta o equilíbrio contratual tão logo saiba dele, e formular proposta de revisão com base em dados objetivos sobre a economia do negócio. Já à parte beneficiada cabe receber a proposta; respondê-la em tempo razoável; aceitá-la ou oferecer contraproposta factível; e motivar a eventual negativa de revisão.

A lei ordena o comportamento, não o resultado. O dever é de negociar de boa-fé – não de aceitar a todo custo o pleito contrário. Ninguém pode ser forçado a aditar contratos. No fim, impera o pacta sunt servanda – e, tudo mais falhando, resta ao ofendido lançar mão dos remédios que o direito lhe confere.

O que nos traz ao último ponto: quais as consequências jurídicas da não-observância do dever de renegociar? Pode haver repercussões de direito material e, para alguns, processual. No plano material, o sujeito prejudicado pelo desequilíbrio faz jus a ser indenizado por perdas e danos (art. 927 do Código Civil) – cumulados com a pretensão por revisar ou resolver o contrato. Sejam as perdas sofridas com a recusa ilegítima em negociar, sejam com a barganha insincera, pro forma.

Por outro lado, o contratante beneficiado pelo desequilíbrio não arca com os prejuízos que a contraparte porventura amargar se ela – a contraparte – demora em noticiar sua intenção de rever o pacto. Quem atrasa o início das renegociações paga o preço de sua atitude hesitante.

Em qualquer caso, o dano indenizável é aquele atrelado somente ao interesse negativo do credor: é o dano direto e imediato causado pela renegociação frustrada; não o ganho que teria se as partes conseguissem efetivamente modificar a relação contratual.

No plano do processo, há quem sustente que a tentativa prévia de renegociar extrajudicialmente o contrato seria condição de procedibilidade da ação revisional ou resolutória – figura próxima ao interesse de agir (na dimensão da necessidade). O autor teria que mostrar que, antes de mover a demanda – no Judiciário ou em arbitragem – ao menos procurou repactuar os termos do negócio com o réu.

Aí estão, em linhas gerais, os contornos do dever de renegociar e alguns guias interpretativos. É bem verdade que, por ser instrumento ainda pouco lapidado pela jurisprudência, várias questões ficam abertas: faz sentido cogitar de execução específica do dever de renegociar (art. 475 do Código Civil)? Pode a parte que não vê suas propostas de negociação respondidas invocar a exceção de contrato não-cumprido (art. 476 do Código Civil)? Impor a prova de tratativas anteriores para que alguém possa ingressar em juízo, sem lei expressa, é compatível com o acesso à Justiça (art. 5°, XXXV, Constituição)?

Seja como for, o dever de renegociação pode incentivar os contratantes a descobrir soluções autônomas que criem valor – apesar das dificuldades inafastáveis que o momento oferece. Afinal, o mercado reclama prestígio à boa-fé, à segurança e à manutenção dos contratos.

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1 Sobre o tema: MARTINS-COSTA, Judith. A cláusula de hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, n. 25, p. 11-39, abr.-jun./2010.

2 “Em caso de hardship, a parte em desvantagem tem direito de pleitear renegociações. O pleito deverá ser feito sem atrasos indevidos e deverá indicar os fundamentos nos quais se baseia.” Disponível clicando aqui. Acesso em 31.5.20.

3 Em tradução livre da versão em inglês: “Se, no entanto, a performance do contrato se tornar excessivamente onerosa por conta de mudança de circunstâncias, as partes estão obrigadas a entrar em negociações tendo em vista adaptar o contrato ou resolvê-lo [...]” Disponível clicando aqui. Acesso em 31.5.20.

4 Sobre o assunto, é referência o trabalho de Anderson Schreiber: SCHREIBER, Anderson. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. São Paulo: Saraiva, 2018.

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*Luiz Augusto da Silva é mestre em Direito pela UFPR. Advogado na Poletto e Possamai Sociedade de Advogados.

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