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O feriado local e sua comprovação: importância da questão de ordem no Resp 1.813.684/STJ

O ensaio pretende discutir aspecto (sempre) atual e relevante ligado à comprovação de feriado local, de acordo com o entendimento firmado pela Corte Especial do STJ.

5/6/2020

De todas as modificações advindas da legislação de 2015 no âmbito recursal, merece especial destaque o disposto no §único, do art. 932, do CPC. Este dispositivo é um claro reflexo da norma fundamental relacionada à primazia da resolução de mérito1 e, em suma, estabelece que, antes de considerar inadmissível o recurso, deverá o relator abrir prazo de cinco dias para o recorrente tentar sanar o vício ou complementar a documentação exigível.

Duas perguntas devem ser enfrentadas formuladas visando o enfrentamento do tema central: o relator deve abrir prazo para comprovação da tempestividade do recurso antes de declarar sua inadmissibilidade, nos casos de feriados locais (aqui entendido como os feriados não nacionais, nos termos do previsto na lei 662/1949, alterada pela lei 10.607/20022, e na lei 6.802/19803)? Como o STJ dirimiu a aparente contradição entre o disposto no art. 932, §único e art. 1003, §6º, do CPC/15?

Vale a pena partir de uma premissa: o art. 932, §único, do CPC objetiva claramente estimular o julgamento do mérito4 recursal, ou seja, consagra a possibilidade de correção de vícios sanáveis visando a apreciação do objeto pleiteado no apelo. Este perfil saneador do CPC também é consagrado nos arts. 139, IX e 1029, §3º, do CPC, todos constituindo-se técnicas procedimentais visando estimular a apreciação do objeto recursal.

Ademais, levando em conta que este art. 932 encontra-se no título ordem dos processos dos tribunais, é aplicável a todos os recursos, incluindo os apelos especial e extraordinário5. Em última análise, é possível afirmar que os vícios recursais podem ser objeto de correção, sendo este dispositivo corolário à norma fundamental de primazia de mérito (art. 4º, do CPC).

Em relação aos recursos interpostos na vigência do CPC/73, existem precedentes no STJ favoráveis à comprovação da tempestividade do recurso após a sua interposição. Aliás, em mudança do entendimento então vigente, a Corte Especial passou a permitir a comprovação posterior do feriado local, no AgRg no AREsp 137141 / SE (rel. min. Antônio Carlos Ferreira – J. em 19/9/2012 – Dje 15/10/2012).

Contudo, com a entrada em vigor do CPC/15, o tema passou a ser novamente apreciado, especialmente diante da possível e eventual contradição textual entre o art. 932, §único e o art. 1003, §6º.  Na prática, ocorreu a mudança da mudança para restabelecer a necessidade de comprovação imediata da tempestividade recursal.

Em alguns julgados, em razão do texto do enunciado administrativo 3, o STJ fixou um marco temporal: em relação aos recursos interpostos após a entrada em vigor da legislação de 2015, as ocorrências locais (feriados locais, suspensão de expediente forense, etc) devem ser comprovadas no momento da interposição do recurso, consoante art. 1.003, § 6º, do CPC/15 (AgInt no AREsp 1.042.066/SP, rel. min. Herman Benjamin, DJe de 12/9/2017 e AgInt no AREsp 1.064.177/SP, rel. min. Moura Ribeiro, DJe 14/8/2017).

Portanto, seguindo este entendimento, para os recursos interpostos na vigência do CPC/15, o art. 1003, §6º, deve prevalecer, não sendo permitida a comprovação posterior da tempestividade. Ademais, a comprovação do feriado local e, consequentemente, da tempestividade recursal, não pode ser feita com a simples transcrição do link do tribunal (AgInt em REsp 1.752.192).

Entendo que este posicionamento formalista está em sentido contrário à primazia de mérito e à cláusula geral recursal – art. 932, §único, do CPC, bem como aos arts. 4º, 139, IX e 1029, §3º, do CPC. A intempestividade é totalmente diferente da comprovação da tempestividade. O formalismo elevado deveria dar lugar à primazia de mérito e conduzir a uma nova oportunidade para o recorrente tentar demonstrar a comprovação deste requisito de admissibilidade.

Logo, a comprovação posterior da tempestividade, com juntada de documento comprobatório do feriado local, também deveria ser assegurada aos recursos interpostos após março de 2016, por no mínimo quatro razões: a) o art. 932, §único, deve ser aplicado a todos os recursos, tendo em vista que se encontra no capítulo II- ordem dos processos no Tribunal; b) a cooperação e primazia de mérito são aplicáveis a todos os recursos; c) a demonstração da tempestividade não trará a correção do vício da intempestividade, mas apenas oportuniza o atendimento ao §único do art. 932, do CPC; d) devem ser consagradas a boa-fé do recorrente e a segurança jurídica, especialmente após a certificação positiva da tempestividade advinda da admissão de seu recurso pelas instãncas locais (art. 1030, V, do CPC).

Aliás, em relação a esta última afirmação, a Corte da Cidadania tem precedentes afirmando que a admissibilidade positiva já realizada no âmbito do tribunal local não vincula a apreciação a ser feita pelo Órgão Superior6.

Outrossim, nos últimos meses de 2019 e neste início de 2020, a temática voltou a ser pautada no âmbito da Corte Especial do STJ, especialmente no que respeita ao feriado de segunda-feira de carnaval.

A questão da comprovação posterior e modulação de aplicação apenas foi permitida para este feriado de momo, não se aplicando aos demais feriados locais (QO no REsp 1.813.684/SP – rel. min. Nancy Andrighi).

Vale citar os itens 3 a 5 do acórdão em que o assunto foi apreciado no âmbito da Corte Especial:

"3- Consoante revelam as notas taquigráficas, os debates estabelecidos no âmbito da Corte Especial, bem como a sua respectiva deliberação colegiada nas sessões de julgamento realizadas em 21/8/2019 e 2/10/2019, limitaram-se exclusivamente  à possibilidade, ou não, de comprovação posterior do feriado da segunda-feira de carnaval, motivada por circunstâncias excepcionais que modificariam a sua natureza jurídica de feriado local para feriado nacional notório.

4- Tendo o relator interpretado que a tese firmada por ocasião do julgamento colegiado do recurso especial também permitiria a comprovação posterior de todo e qualquer feriado, é admissível, em questão de ordem, reduzir a abrangência do acórdão. 5- Questão de ordem resolvida no sentido de reconhecer que a tese firmada por ocasião do julgamento do REsp 1.813.684/SP é restrita ao feriado de segunda-feira de carnaval e não se aplica aos demais feriados, inclusive aos feriados locais" (QO no REsp 1813684 / SP – rel. min. Nancy Andrighi - Corte Especial – J. em 3/2/2020 – Dje 28/2/2020). 

Aliás, em razão da dúvida ocorrida no julgamento originário deste REsp 1813684 e antes da apreciação da QO, alguns julgados unipessoais7 e de órgãos fracionários do Tribunal Superior passaram a admitir a comprovação da tempestividade em relação a outros feriados locais8.

Percebe-se, portanto, que na QO no REsp 1813684, a Corte Especial permitiu a comprovação posterior apenas nos casos de segunda-feira de carnaval de recursos interpostos anteriormente à tese lá fixada (com modução de efeitos). Em relação aos demais feriados não nacionais, em recursos interpostos antes ou após o resultado do REsp, manteve-se a obrigatoriedade de comprovação na data de interposição do apelo (art. 1003, §6º, do CPC).

Em suma: a modulação advinda da QO em REsp não alcança outros feriados não nacionais (AgInt no AREsp 1532304 / MT – rel. min. Benedito Gonçalves – 1ª T – J em 18/5/2020 - DJe 20/5/2020; AgInt no AREsp 1350747/ SP – rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – 3ª T – J. em 9/3/2020 – DJe 13/3/2020).

No item 2 da ementa do AgInt no AREsp 1558754 / RS (rel. min. Marco Aurélio Bellizze – 3ª T – J. em 11/5/2020 – Dje 19/5/2020) a modução resta bem demonstrada: 

"2. Com efeito, no julgamento do REsp. 1.813.684/SP, a Corte Especial, ao examinar a questão com enfoque na segunda-feira de carnaval, reafirmou que, por se tratar de feriado local, faz-se necessária a comprovação na forma da lei processual. Contudo, decidiu-se modular os efeitos da decisão, de modo que esse entendimento seria aplicado tão somente aos recursos interpostos após a publicação do acórdão respectivo. Assim, para os recursos apresentados anteriormente, deve-se dar ao recorrente nova oportunidade de fazer a comprovação desse específico feriado local".

Por outro lado, entendo que o tema, apesar de provocar a fixação de recentíssimo precedente da Corte Especial, ainda merece alguma reflexão.

Nas idas e vindas que mereceu o assunto entre o CPC/73, a mudança de entendimento em 2012 (AgRg no AREsp 137141 / SE - rel. min. Antônio Carlos Ferreira – J. em 19/9/2012 – Dje 15/10/2012) e o resultado desta QO no REsp. 1.813.684/SP, é razoável afirmar que cabe um novo capítulo interpretativo para, quem sabe, retornar aos idos de 2012 e consagrar a prevalência do art. 932, §único do CPC em vigor que, como já destacado, é um reflexo recursal da norma fundamental ligada à primazia de mérito.

A rigor, não vislumbro qualquer contradição entre os dispositivos invocados neste ensaio. O princípio da primazia de mérito atesta direito da parte (direito do jurisdicionado) pelo que o art. 932, §único, do CPC, também deveria ser aplicado para a comprovação posterior de feriado local (não nacional). Já o art. 1003, §6º, do CPC, indica um dever para o recorrente, assim como outros que o próprio legislador permite a correção posterior (como, v.g., o pagamento do preparo – art. 1007, §§2º e 4º, do CPC). 

Portanto, entendo que os dispositivos do CPC atual se complementam e não há qualquer contradição textual.  A comprovação da tempestividade é, a rigor, vício sanável e plenamente superável durante o andamento do feito, com olhos voltados para viabilizar a apreciação do mérito recursal. 

Como consequência, penso que a possibilidade de comprovação da tempestividade deveria ser garantida a qualquer outro feriado não nacional, e sem qualquer modulação. A abertura de prazo mínimo de 5 dias para a comprovação e juntada do documento idôneo à superação deste obstáculo processual, seria um grande instrumento de garantia da primazia de mérito (arts. 4º, 139, IX, 932, §único e 1029, §3º, do CPC) e não compromete a celeridade que sempre se espera da atuação das Cortes Recursais.

Contudo, enquanto prevalecer a interpretação pela literalidade do art. 1.003, §6º, do CPC/15, deve o interessado ter cautela em relação ao feriado local, com a comprovação de sua ocorrência no momento da interposição do REsp, ARESp ou outro recurso.

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1 Dentre os vários dispositivos do CPC/15 que consagram a primazia de mérito, é possível destacar: 4º, 485, §7º, 488, art. 139, IX, 282, §2º, 317, 321, 932, parágrafo único, 1007, §§4º e 5º, 1029, §3º.

2 "Art. 1º São feriados nacionais os dias 1º de janeiro, 21 de abril, 1º de maio, 7 de setembro, 2 de novembro, 15 de novembro e 25 de dezembro".(Redação dada pela lei 10.607, de 19.12.2002).

3 "Art. 1º É declarado feriado nacional o dia 12 de outubro, para culto público e oficial a Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil".

4 No tema, ver CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução de mérito e o novo Código de Processo Civil. Revista Síntese – Direito Civil e Processual Civil, nº 97 (set-out 2015), pp. 9-16.

5 O enunciado 593 do FPPC consagra: "(arts. 932, parágrafo único; 1.030) Antes de inadmitir o recurso especial ou recurso extraordinário, cabe ao presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido conceder o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível, nos termos do parágrafo único do art. 932'.

6 Vale citar passagem do voto do min. Gurgel de Faria, no AgInt em ARESp 1.626.002 (1ª Turma – J. em 18.5.2020 – Dje 22.5.2020): "Ressalta-se que a jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que a decisão do Tribunal de origem de admissibilidade do recurso especial não vincula o Superior Tribunal de Justiça, o qual procederá a um novo juízo de admissibilidade, uma vez que é competência exclusiva desta Casa a análise definitiva de admissibilidade do recurso. Nesse sentido: AgRg no AREsp 570.216/SP, rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 5/4/2017".

7 AgInt no AREsp. 1.489.733 – Rel. Min. Sérgio Kukina – 1ª T- decisão de 28.11.19.

8 EDcl nos EDcl no AgInt no AREsp 1490163  – Rel. Min. Sérgio Kukina – 1ª T – J. em 17/2/2020 – Dje 20/2/2020.

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*José Henrique Mouta Araújo é pós-doutor (Universidade de Lisboa), doutor e mestre e em direito (UFPA), professor do CESUPA/PA e do IDP/DF, advogado e procurador do Estado do Pará.

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