Na última quinta-feira, dia 14.05.20, foi publicada a medida provisória 966, que reafirmou a necessidade de comprovação de dolo, erro grosseiro ou conluio para que um agente público seja responsabilizado nas esferas civil e administrativa, por medidas adotadas no combate aos efeitos da pandemia.
De antemão, elogiei a medida, que reprisa as valorosas diretrizes interpretativas trazidas ao nosso Ordenamento pela lei 13.655/18, em especial pelos artigos 22 e 28 da Nova LINDB, que impõem o consequencialismo e a completa contextualização na avaliação de um ato ou decisão administrativa.
Todavia, minutos depois, me deparei com repercussão curiosa da mídia nacional, incluindo manchete que dizia: “Bolsonaro assina MP que livra agente público de punição”. No final do dia, dois partidos políticos já haviam movido ações diretas de inconstitucionalidade, perante a Suprema Corte, sob o argumento que a medida provisória seria um salvo-conduto para o cometimento de crimes e que promoveria suposto retrocesso estatal.
Se passamos por um contexto inédito em nossa geração, cheio de incertezas e novidades, algo não há de novo no debate jurídico: a falta de empatia com o gestor público e a indesejável presunção de desonestidade que continua a reverberar na cultura jurídica do controle da Administração.
O tema possui relevância que transcende a mera polarização política ou as estratégias questionáveis do presidente da República no contexto da pandemia. O problema é muito mais complexo e merece análise mais cuidadosa, em especial no contexto das obras públicas.
O senso comum que vigorou na última década, fortalecido pelo apelo midiático da Operação Lava-Jato, acabou por alimentar uma cultura de caça às bruxas extremamente prejudicial para a atmosfera da gestão pública. Sob o pretexto de “combate à corrupção”, a busca incessante por um culpado instaura ambiente de medo para o ordenador de despesas e causa a paralisia da Administração Pública.
Nessa onda, a primeira consequência nefasta é a fuga dos bons profissionais dos cargos estratégicos de gestão. Engenheiros e administradores com bagagem e experiência na consecução de obras públicas deparam-se com um ambiente hostil que desestimula a sua participação. Não vale o risco.
E aqueles que insistem nessa tarefa hercúlea de tentar promover eficiência, porém dentro das quatro linhas, acabam acometidos pela pandemia da inércia conservadora, que milita justamente contra a desejada eficiência. A burocracia cautelosa passa a tomar conta da rotina administrativa, deixando a caneta pesada, concentrando-se em formalidades e procedimentos em detrimento da busca por soluções criativas, atentas às particularidades de um caso concreto.
Em alguns casos, o gestor opta por terceirizar a função de gestão ao próprio órgão de controle interno antes mesmo de agir, a ponto de um agente teoricamente técnico passar a duvidar de seu próprio poder discricionário, delegando atos típicos de gestão para o controlador.
Ocorre que o controlador, muitas vezes um crítico de obra pronta, não vai a campo. E sobre ele não paira a cobrança pela eficiência e nem o peso da responsabilidade. Não é o CPF dele que está exposto. E seu pensamento formalista normalmente está viciado pela ilusão de que sempre será possível identificar, dentro da burocracia e dos procedimentos, uma solução única para qualquer problema de ordem prática. A simples ideia de que um gestor pode eventualmente adotar diferentes estratégias diante de um mesmo problema costuma causar arrepio.
É sempre atual o ditado segundo o qual a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem. No contexto das contratações públicas, a dose excessiva de controle elimina qualquer possibilidade de desenvolvimento.
Se a MP 966 não traz nada de novo em termos de conteúdo jurídico (vide o conteúdo da LINDB), serve como marco normativo e temporal de um contexto fático real, concreto, para que daqui 5 ou 8 anos o controlador, o promotor de justiça ou o juiz se recordem das circunstâncias que levaram o gestor à adoção de uma ou outra solução prática, ainda que não ortodoxa.
Trata-se não de um salvo conduto para a prática de ilegalidades, mas de um incentivo para agir.
É mais uma tentativa de se modificar a cultura viciada da presunção de má-fé.
O mau gestor, que atua com desídia, é justamente aquele que pode ser alcançado pela responsabilização por erro grosseiro.
E os bons não podem pagar pelos maus.
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*Pedro Cota Passos é advogado especialista em Direito Administrativo, associado do escritório Da Luz, Rizk & Nemer Advogados Associados.