No site do Senado Federal1 encontramos os anais da Assembleia Nacional Constituinte. Neste importante registro histórico encontramos todos os debates que levaram à construção do texto constitucional nos moldes que conhecemos. Pesquisamos estes arquivos a fim de encontrar o animus legis do artigo 142 da Constituição Federal Brasileira, com o intuito de dissipar eventuais dúvidas interpretativas em relação à competência atribuída às forças armadas.
O relator do então artigo 160, do texto que tratava sobre as forças armadas, foi o constituinte Bernardo Cabral. O artigo foi objeto de debate em razão da apresentação do destaque 003116-87, de José Genoíno, que buscava modificar o "caput" do artigo 160 do Título V Capítulo II, questionando a utilização do termo “lei e ordem”, antevendo a possibilidade de interpretação dúbia desta expressão. Por justeza vamos transcrever os principais trechos de sua fala:
[...] Venho à tribuna, nesta sessão calma, para defender o Substitutivo nº 1, do Relator Bernardo Cabral, e mais do que isto, para defender o Projeto de Constituição da Comissão Afonso Arinos, que, no seu art. 414, diz o seguinte: "As Forças Armadas destinam-se a assegurar a independência e a soberania do País, a integridade do seu Território, os poderes constitucionais e, por iniciativa expressa destes, nos casos estritos da lei, a ordem constitucional." E foi este conceito que o Relator Bernardo Cabral, no Substitutivo I, adotou, enquanto destinação constitucional das Forças Armadas. No Substitutivo II, do Relator Bernardo Cabral, a ordem constitucional foi substituída por Lei e a ordem". [...]
Seguiu descrevendo a sua discordância com a redação:
O que está em discussão é uma questão política de fundo. Ao se colocar "Lei e ordem", o que se está dizendo com esta expressão? Quando se fala "ordem", está-se pressupondo o contrário da ordem, que é a desordem. Quando falamos "ordem", estamos dando um sentido de que qualquer desordem pode justificar a intervenção das Forças Armadas – desordem social, desordem pública, desordem econômica – e isto quer dizer, em outras palavras, que as Forças Armadas podem cumprir, pelo texto constitucional do Substitutivo II, o trabalho que deve ser feito pela polícia, e por outra instituição. [...]
Genoíno, pontuou com clareza sua preocupação, que ora verificamos que de fato fazia todo sentido:
A quem se subordinam as Forças Armadas? Ao poder civil. Neste sentido o Substitutivo II deixa claro, por convocação de um dos Poderes. Portanto, a convocação para intervenção estaria parcialmente consagrada nessa expressão. Mas, em seguida, quando fala em "lei e ordem," dá uma abrangência muito grande para a intervenção das Forças Armadas, no sentido amplo e no sentido profundo. Para concluir, Sr. Presidente, temos que enfrentar dois problemas: o primeiro, é que existe, historicamente, e nos anos mais recentes da História deste País, uma tutela militar sobre o poder político, uma tutela militar na organização do Estado. Essa tutela militar, que teve na doutrina de segurança nacional a sua fundamentação teórica, coloca a "lei e a ordem", mantém a base dessa doutrina, dessa abrangência, para uma intervenção das Forças Armadas. [...] (grifo nosso)
E encerrou, dizendo:
É evidente, Sr. Presidente, que, se estamos consagrando a organização democrática da sociedade, o direito de manifestação, de resistência aos abusos das autoridades, do dissenso, da divergência e da explicitação da luta entre partes opostas, não podemos colocar o poder militar como árbitro para resolver esses conflitos. Colocar "lei e ordem" é deixar esse poder de árbitro para as Forças Armadas. [...]
A sessão seguiu com a esclarecedora fala do constituinte Fernando Henrique Cardoso, relator-adjunto do referido substitutivo II, que incluiu o termo “lei e ordem” no dispositivo:
Sr. Presidente, Srs. Constituintes, inicialmente devo dizer que o Constituinte José Genoíno tem razão, quando diz que esta matéria requer uma atenção redobrada do Plenário e exige a participação e o voto consciente de todos. Se venho a esta tribuna para discutir este assunto, hoje, é exatamente porque acredito que um dos pontos fundamentais a respeito do qual temos a obrigação de tomar uma decisão firme, clara e democrática é este. Todos estamos cansados de ouvir e de saber dos argumentos desde a Constituição de 1891, através da qual efetivamente foi outorgada uma espécie de poder de tutela às Forças Armadas. Todos sabemos que a doutrina das intervenções frequentes e a tentativa de transformar as Forças Armadas em Poder Moderador acabou por gerar, no Brasil, uma situação de permanente suspeita entre a sociedade e as Forças Armadas. O texto do Constituinte Bernardo Cabral, desde a primeira formulação até à segunda, na verdade, o que buscou e busca é romper com essa tradição. [...] (grifo nosso)
A explicação é de uma clareza solar. E segue:
O que inovou o Relator Bernardo Cabral nos dois textos? Inovou ao dizer que as Forças Armadas são, sim, destinadas a garantir a integridade da Pátria; inovou ao claramente definir que: "qualquer outra participação das Forças Armadas no processo nacional, que não seja o da defesa da integridade da Pátria, depende da decisão dos poderes constitucionais". É a ruptura entre as formulações anteriores e a formulação atual. Ruptura, porque anteriormente não se dizia isso. A iniciativa, implicitamente, pelos textos anteriores, ficava nas mãos das Forças Armadas. [...] (grifo nosso)
Assim, Fernando Henrique, bem definiu a diferença entre a interpretação que era dada nos textos constitucionais anteriores e como ela não poderia mais ser aplicada em relação ao texto estabelecido na CF 88. E conclui:
A questão central é quem dá a ordem, e as Forças Armadas hão de ser, na democracia, hierarquizadas, obedientes, silentes e fora do jogo político; obedecem à decisão que aqui, explicitamente, se diz que é de um dos Poderes constitucionais. E por que de um dos Poderes constituintes, um destes, não como estava na formulação anterior, "dos Poderes"? Porque um poder poderia, eventualmente, barrar outro, alegando que o texto constitucional requer os três em conjunto, e não há razão alguma para que este Poder soberano, que é o Legislativo, não possa requisitar as Forças Armadas, assim como não há nenhuma razão para que o Poder Judiciário não o possa fazer. Quem determina, quem pede, quem tem iniciativa, quem determina a hierarquia é o poder civil. E a hierarquia diz que as Forças Armadas obedecem a quem? Ao Presidente da República, que é eleito pelo voto popular direto. Fico, portanto, com o texto do Relator Bernardo Cabral e declaro enfaticamente que esse texto rompe com a teoria da tutela, dotando a nossa Constituição de um instrumento moderno, que não tapa ó sol com a peneira, sabe que as Forças Armadas existem e que, em certos momentos, o poder civil precisa delas, mas que elas hão de ser silentes, obedientes e hierarquizadas ao poder civil, que se fundamenta no voto popular. (Muito bem! Palmas) (grifo nosso)
Após a fala do relator-adjunto, o relator do dispositivo, Bernardo Cabral, fez o seu pronunciamento:
[...] Não há, em nenhum instante, Sr. Presidente, dentro do art. 160, quem deixe de vislumbrar que ali foram eliminados todos os resquícios da chamada tutela militar, que ouvi ainda há pouco. [...]
Vejam, o próprio relator extirpou a possibilidade de interpretação no sentido de outorgar às FFAA qualquer poder acima dos poderes constitucionalmente constituídos.
Ele pontifica:
Aqui, as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria, mas são convocadas à garantia dos Poderes constitucionais. Consequentemente, este Poder, num processo democrático, tem condições de resolver a sua convocação. [...]
O texto é bom, o texto é aprimorado e por esta razão o destaque pedido pelo eminente Constituinte José Genoíno tem a negativa da Relatoria. A Relatoria vota contra, pela permanência do texto.
Seguiu-se a votação do Destaque apresentado pelo Sr. José Genoíno. O SR. PRESIDENTE (Jarbas Passarinho): – A Mesa vai proclamar o resultado: votaram SIM 20 Constituintes; votaram NÃO 64 Constituintes; absteve-se de votar 1 Constituinte, Total: 85 votos. O Destaque foi rejeitado.
Portanto, é possível depreender dos debates, sem qualquer sombra de dúvida, que o texto foi aprovado precisamente com os termos “poderes constitucionais” com o intuito de estabelecer que as forças armadas estão submetidas aos três poderes, ao controle do poder civil. A teoria da “tutela militar”, da concepção das FFAA como um poder moderador, como vimos, foi objeto de debate e essa possibilidade foi debelada pelo constituinte originário. A constituição não outorga tal poder às FFAA.
Para finalizar esse decurso histórico, é importante lembrar o contexto em que a nossa constituição foi escrita. Quais eram os anseios, preocupações e motivações que o povo brasileiro sentia naquele momento e que foram trazidas aos constituintes para guiá-los em suas escolhas.
Colhemos uma fala da representante da UNE (União Nacional dos Estudantes), Giseli Mendonça2 que de forma cristalina traduz a visão da sociedade brasileira a respeito de como a função das forças armadas deveria ser delimitada no texto constitucional:
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Constituintes. Muito nos honra o fato de termos sido indicados para defender, perante esta Assembleia Nacional Constituinte, a Emenda Popular que trata do papel das Forças Armadas em nosso País. Como presidente da União Nacional doa Estudantes, que acaba de comemorar cinquenta anos de fundação, a satisfação é redobrada. É significativo que uma entidade como a UNE, que representa milhões de jovens brasileiros, seja incumbida dessa tarefa, pois são os olhos da juventude que mais vislumbram o futuro. É grande a ansiedade do povo brasileiro. E enorme a expectativa em relação aos resultados dos debates que levarão a um novo texto constitucional. Os brasileiros aguardam mudança. E a juventude brasileira, mais do que ninguém, sonha com um Brasil novo, democrático. Um Brasil onde o simples exercício da vida não seja uma tarefa árdua e dolorosa. Um Brasil onde o bem-estar, a saúde, a educação, o progresso, enfim, seja para todos. Não viemos aqui para defender nenhuma tese acadêmica sobre a história das Forças Armadas cm nosso País. Viemos, isto sim, para defender, com base em fatos, evidências e opiniões, o afastamento dos militares da vida política e institucional de nosso País. É esse o anseio da juventude brasileira. É essa a aspiração do nosso povo. É isso que a Constituinte deve garantir. É essa a intenção da emenda que, respaldada por milhares e milhares de assinaturas, está agora em debate aqui na Assembleia Nacional Constituinte. O hábito dos militares brasileiros de tentarem influir, de modo direto e ostensivo, na vida política do País não é algo novo. [...] (grifo nosso)
A fala da representante da UNE é carregada de um sentimento que estava vivo e pulsante em toda a sociedade brasileira. Havia uma clara preocupação em delimitar os poderes das FFAA de maneira inequívoca. É o que ela coloca, explicitamente, no trecho seguinte:
A questão que está colocada agora, aqui na Assembleia Nacional Constituinte e em todos os cantos do País, é justamente a de se definir, de uma vez por todas, o papel que deve ser desempenhado pelos militares. Não estamos defendendo a extinção das Forças Armadas. Estamos apenas defendendo que os militares deixem de ser uma categoria especial de cidadão, que tem mais direitos que as demais, que se arvora a guardiã dos interesses do País. Não nos prendemos a fatos e episódios históricos esporádicos, espaços, dissociados. O que nos preocupa é uma trajetória secular, que muito tem a contribuir para o debate que hoje se trava. [...]
Importante relembrar que Giseli fez a defesa de uma emenda popular de origem popular. Em sua voz, estava contido o sentimento de grande parte do povo brasileiro, como podemos perceber com nitidez:
O que a emenda popular que ora defendemos prega é a definição cristalina das atribuições e deveres das Forças Armadas. Os militares devem se ocupar da defesa das fronteiras nacionais contra ameaças externas. A proteção das instituições é atribuição de toda a sociedade e a manutenção da ordem pública é tarefa das polícias, vinculadas aos governos locais. O que a maioria dos brasileiros deseja – e isto é evidenciado por pesquisas de opinião pública – é que a Constituinte estabeleça claramente os limites de atuação das Forças Armadas. Não se trata apenas de uma questão formal, como defendem alguns. A sociedade brasileira quer uma garantia de que os militares não voltarão a se intrometer na vida política do País. Quer a garantia de que soldados de qualquer das três forças se ocupem da repressão a trabalhadores, sejam colocados contra a sociedade. E essa garantia deve ser assegurada pela nova Constituição que está sendo elaborada. [...] (grifo nosso)
O que estava claro para todos que se envolveram na definição do artigo, era o fato de que as constituições anteriores permitiam essa interferência das forças armadas nos poderes constituídos e, por conta disso, seria essencial que o texto fosse assertivo ao delimitar a atuação das FFAA, evitando que isso voltasse a acontecer.
As formulações contidas nas Constituições passadas dão margem a que as Forças Armadas excedam suas funções. Dão margem a que os militaras se considerem um poder paralelo ao Estado, com o direito de interferir sobre o próprio Estado. É certo que, pela tradição golpista que têm, os militares brasileiros não se incomodam de rasgar Constituições quando resolvem tomar o poder. Os números são claros. Desde a Proclamação da República os militares subverteram a ordem constitucional dezenove vezes. [...] (grifo nosso)
O que povo brasileiro viveu sob a égide do regime militar, as perseguições, a falta de liberdade, a falta de transparência, o medo, a tortura, o exílio; ninguém deseja reviver. Não queríamos em 1987 e não queremos hoje.
A fala segue atual e necessária:
Temos a consciência, porém, de que a sociedade brasileira evoluiu, modernizou-se. A sociedade brasileira não aceita mais o militarismo. A sociedade brasileira não precisa e não quer a tutela dos militares. A sociedade quer as Forças Armadas nos quartéis, preparando-se para quando for chamada a defender as fronteiras. A sociedade quer, enfim, que as Forças Armadas fiquem nos seus lugares. Nada mais. Estas são, de maneira geral e concisa, as razões que levaram a União Nacional dos Estudantes a ser uma das entidades que elaboraram e coletaram assinaturas para a apresentação da Emenda Popular das Forças Armadas. O que propomos não é nada de extraordinário. O que queremos é algo óbvio, cristalino. E o fazemos através da Assembleia Constituinte porque consideramos ser este o momento mais apropriado para tanto. É a nova Constituição, fruto da própria luta antimilitarista que se travou no Brasil nas últimas décadas, que deve desmilitarizar o País. As Forças Armadas não podem continuar sendo um poder paralelo que se sobrepõe ao próprio Estado brasileiro. E o primeiro passo é fazer com que o texto constitucional não dê margem a golpes, não permita que as Forças Armadas interfiram na vida política e institucional do País. O resto a sociedade brasileira se encarregará de fazer. A juventude brasileira e todo o nosso povo clamam por um Brasil livre, independente e democrático. Clama por um Brasil que cuide dos seus verdadeiros interesses, um Brasil com justiça, um Brasil moderno. Nós temos plena convicção de que o militarismo, a tutela das Forças Armadas sobre a sociedade e sobre o Estado é fator de entrave para o progresso do nosso País. Temos certeza de que a definição do papel das Forças Armadas nesta Assembleia Nacional constituinte é fator determinante para a consolidação e o aprofundamento da democracia em nosso País. Acreditamos que, se os militares continuarem intervindo nesta Constituinte, pela força das armas ou pela sua vontade, teremos falhado numa questão fundamental. A instalação da Assembleia Nacional Constituinte foi fruto de grande luta, durante vários anos de regime militar, em que se impunha a necessidade de uma nova Constituição que assegurasse a democracia e a liberdade aos brasileiros. (grifo nosso).
Considerando todos esses achados históricos, é seguro dizer que a interpretação proposta, no sentido de alçar às FFAA ao papel de poder moderador, é absolutamente incabível. Tal afirmação, deturpa o sentido original que se buscou dar ao texto e trai a história da nossa Constituição Cidadã, que nasceu com a força de uma nação que não aceitava mais, e que, ainda não aceita nenhum tipo de intervenção militar.
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1 Disponível clicando aqui p. 1891 (do PDF). Folha dos anais: 17. DIÁRIO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (Suplemento "C").
2 Disponível clicando aqui p. 414 (do PDF). Folha dos anais: 412 ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE (ATA DE COMISSÕES).
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*Adriana Cecílio é advogada e professora de Direito Constitucional. Membra efetiva da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP. Presidente da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB/SP. Fundadora do Grupo de Estudos Democratismo. Mestranda em Direito na Universidade Nove de Julho.