Um dos principais pilares de todo ordenamento é a segurança jurídica, sem a qual o direito estaria sempre indeterminado no tempo e no espaço, ao sabor das conveniências e casuísticas de sua aplicação. Os princípios da legalidade, irretroatividade das leis, devido processo legal, assim como a garantia e imutabilidade do ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, é que dão certeza e confiança naquilo que a sociedade espera do direito enquanto ferramenta de pacificação social.
Acontece que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (inciso XXXV do art.5º da CF/88), o que numa visão superficial e simplista implica dizer que sempre competirá ao juiz decidir/intervir mesmo que a relação em litígio esteja regulada por norma ou contrato expresso. É aí que a coisa desanda, notadamente em nossa cultura superprotetiva, onde ocorre uma verdadeira infantilização da parte mais frágil pelo Judiciário, ao tutelar matérias que já estariam reguladas adequadamente por instrumentos normativos vários. Não se está aqui a negar a importância de leis como o Código de Defesa do Consumidor, Consolidação das Leis do Trabalho, Estatuto da Criança e do Adolescente dentre outras, que colocam o hipossuficiente em situação de igualdade perante parte adversa, mas o que merece reflexão é a intervenção do Estado-Juiz em relações que, mesmo pré-reguladas por convenções que respeitam tais normas, por alguma questão circunstancial de uma das partes, dá espaço a uma desnecessária tutela intervencionista. E assim, por incrível que pareça, o juiz é comumente chamado a revisar provas de concursos públicos, rever tarifas ou preços fixados por agências reguladoras, dispensar gratuitamente remédios experimentais ou até determinar internação de paciente em UTI, a revelia de outros que poderiam, pelo critério técnico da autoridade médica competente, ter preferência àquele leito. Esse fenômeno é de verdadeira e autofágica negação de qualquer outra autoridade que não a do Poder Judiciário, o que é muito nocivo ao país.
A partir de uma equivocada inspiração nos princípios da justiça (social) contratual, observa-se certa complacência judicial com a impontualidade e inadimplemento de obrigações contratuais, o que impacta drasticamente no chamado Custo-Brasil, enquanto um dos ingredientes da insegurança jurídica reinante. Alia-se a isso a grave oscilação de nossa jurisprudência, lamentavelmente liderada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, não permitindo às empresas, investidores, contribuintes ou simples cidadãos compreender como nosso Poder Judiciário entende os efeitos e aplicabilidade das leis.
O panorama da insegurança jurídica é ainda mais agravado em ambiente de instabilidade econômica, tal como nos encontramos no momento, com abrupta queda da atividade e iminente recessão sem precedentes nos últimos cem anos, em razão da pandemia que enfrentamos em escala global. Se em condições normais o brasileiro já não sabe bem o que esperar de seu Judiciário, dá para se ter uma ideia da extrema celeuma que teremos a partir da enxurrada de ações pleiteando revisão de contratos de toda natureza. Por óbvio que todos estão enfrentando na atualidade condições adversas impossíveis de serem previstas à época das assinaturas de contratos do dia a dia (matrículas escolares, seguros de saúde, locações imobiliárias, promessas de compra e venda, adiantamentos de câmbio etc.), o que resta devidamente enquadrado na teoria da imprevisão (rebus sic standibus) a admitir em caráter excepcional o reequilíbrio econômico-financeiro desses ajustes (art.421, parágrafo único, do Código Civil). Mas é imperativo se considerar que as empresas estão de igual ou por vezes ainda mais afetadas pela pandemia, e que estas têm um papel de protagonismo no enfrentamento da crise e retomada do desenvolvimento.
A boa nova está no avanço legislativo, a partir da chamada Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019), ainda que objeto de muita controvérsia, assim como na evolução de nossa jurisprudência, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, que já prenuncia o início do primado de uma intervenção - senão mínima – mais moderada e criteriosa nos contratos (REsp 1.095.447-RJ; AgInt no AgInt na SLS 2.240-SP; AgInt no AREsp 1417800-SP; AgInt no AREsp 1555428-SP; AgInt no REsp 1546583-RS).
De uma forma ou de outra o Judiciário brasileiro, ainda que de forma tardia, vai exorcizando o fantasma de alguns dogmas super-protetivos e purgando a culpa cristã impregnada em nossa cultura lusitana, que reputa pecaminosa a exploração do capital e a geração de riqueza, pensamento que por muitos anos atravancou nosso desenvolvimento e fez do empreendedorismo uma odisseia em solo brasileiro. Essa evolução revelará que a segurança jurídica é um bem tão precioso quanto a justiça para pacificação das relações sociais, além de ser condição imprescindível para o desenvolvimento de nossa nação em um mundo de economia globalizada.
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