Em recente decisão proferida pela 1ª turma do STJ, em sede de habeas corpus1, restou consignado que não se aplicam às execuções fiscais as medidas executivas atípicas de retenção de passaporte e de suspensão da carteira de habilitação do executado, sob o fundamento de que o Poder Público já se encontra municiado de vastos privilégios processuais, como o ajuizamento do processo de execução fiscal.
O pano de fundo da discussão consiste em analisar se o deferimento das medidas executivas atípicas (ex: retenção de passaporte e suspensão de CNH) que obriguem o réu a efetuar o pagamento do crédito tributário importa na limitação desproporcional de direitos fundamentais, tal qual o direito à liberdade de locomoção, insculpido na Carta Magna em seu art. 5º, inciso XV.
Cumpre anotar que a 3ª turma do STJ, no âmbito do processo civil comum, analisando a aplicabilidade das medidas executivas atípicas em virtude de sua potencial intensidade quanto à restrição de direitos constitucionais, manifestou-se no sentido de que tanto a suspensão da carteira nacional de habilitação como a retenção do passaporte do devedor são medidas viáveis de serem adotadas pelo juiz condutor do processo, esclarecendo que tais diligências são consentâneas ao art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, desde que tomadas de modo subsidiário, por decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade, bem como estando presentes indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável.
Em que pese a decisão ter sido proferida no seio de processo de execução "comum", a aplicação deste entendimento, em conformidade com o regime jurídico de Direito Público, que norteia as relações jurídico-tributárias, adotado pelo Estado brasileiro, no qual os interesses da Administração Pública, por satisfazerem a sociedade como um todo, se sobrepõem aos interesses particulares, implicaria na consequente possibilidade de aplicação da suspensão da CNH e da retenção de passaporte ao processo de execução fiscal sob pena de conceder mais privilégios na recuperação de um crédito privado em detrimento do crédito público.
Perceba, quando da análise da aplicabilidade das medidas à execução fiscal, em contramão aos princípios basilares da administração pública, a 1ª turma do STJ destacou que o Estado seria superprivilegiado em sua condição de credor, tecendo argumentos de que o procedimento de cobrança disciplinado pela lei 6.830/80, bem como as diversas prerrogativas atribuídas ao Poder Público seriam suficientes à blindagem do crédito fiscal, concluindo ainda que a aplicação destas inauditas medidas resultaria em flagrante excesso.
Data vênia, ousamos discordar pelas seguintes premissas enfrentadas. De início, faz-se necessário desmistificar a ideia de que o Estado é superprivilegiado em sua condição de credor. Isto porque, é notável que a Lei de Execuções Fiscais, por ter sido editada em 1980, não se amolda ao dinamismo no qual o ordenamento jurídico se encontra inserido. Nessa linha, com o intuito de assegurar a pluralidade e a atualização do diploma legal, com obséquio ao art. 1º da LEF, as cortes e os magistrados têm aplicado o Código de Processo Civil às execuções fiscais de maneira subsidiária, buscando atender às finalidades discipuladas pela lei nos casos em que patente a compatibilidade entre a norma processual civil e o procedimento de cobrança da dívida ativa. Desta feita, na medida em que o procedimento que se almeja aplicar proporciona maior eficácia e celeridade à satisfação da dívida ativa, indispensável a sua utilização.
Exemplifica-se: o próprio STJ consagrou a possibilidade da adoção do procedimento de penhora online, mais conhecido como BACENJUD, na execução fiscal, reconhecendo a compatibilidade do dispositivo que encontra previsão no Código de Processo Civil em face da omissão da LEF.
Outrossim, o STF tem interpretado que é possível à Fazenda Pública usufruir de meios de cobrança comumente utilizados no mercado financeiro e creditício, a exemplo do que ocorreu no julgamento da ADI 5135, a qual fixou a tese de que: "O protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política."
Nessa mesma perspectiva, entendendo não ser possível ao credor privado ter meios de cobrança mais efetivos do que a Fazenda Pública, o STJ possui jurisprudência pacífica que possibilita a inclusão de débitos de natureza tributária inscritos em dívida ativa nos cadastros de proteção ao crédito2.
Em suma, não se mostra adequado permitir que o crédito privado goze de meios mais favoráveis a recuperação do que o crédito público.
Ante todo o exposto, em que pese a sensibilidade do tema, considerando que a dívida pública e o sistema judiciário urgem por medidas capazes de satisfazerem os créditos públicos, observado o postulado da proporcionalidade e do contraditório substancial, demonstrada a existência de fatores aptos a atestarem que o credor possua patrimônio expropriável, inegável reconhecer os inúmeros efeitos positivos que seriam causados pela possibilidade da retenção de passaporte e da suspensão da Carteira Nacional de Habilitação quando aplicados na execução fiscal.
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1 STJ. 1ª turma. HC 453.870-PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 25/6/2019, DJE 15/08/2019.
2 RMS 31.859/GO, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJE 1º/7/2010.