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População negra como vítima da covid-19 e os deveres do Estado. Medidas necessárias e não efetivadas

Uma pandemia que está a ceifar milhares de vidas em todos os continentes, independentemente das características individuais dos sujeitos afetados, sendo muito recorrente se ler e ouvir que a pandemia de covid-19 seria democrática. Em certa medida é possível se concordar com essa afirmação, todavia ela não se mostra plena.

28/5/2020

A sociedade mundial está enfrentando, atualmente, um dos períodos mais complexos de todos os tempos. Uma situação que se mostra muito mais severa do que todas as guerras que foram travadas nos diversos momentos históricos. E, diferentemente do que ocorre nas guerras, a situação atual não está geograficamente delimitada e não há um inimigo que pretende dizimar o outro em busca de território ou poder.

Trata-se de uma pandemia que está a ceifar milhares de vidas em todos os continentes, independentemente das características individuais dos sujeitos afetados, sendo muito recorrente se ler e ouvir que a pandemia de covid-19 seria democrática. Em certa medida é possível se concordar com essa afirmação, todavia ela não se mostra plena.

Os dados que se começam a consolidar sobre a doença, sua extensão e letalidade mostram que existem algumas pessoas que estão mais sujeitas a serem infectadas e vitimadas. Não porque o vírus deliberadamente escolha quem atacar, mas sim pelo fato de que algumas populações estão mais expostas ou suscetíveis a serem atingidas.

Mesmo que estejamos diante de informações ainda muito frágeis acerca de tudo o que envolve a covid-19 já se tem alguns pontos bastante consolidados, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e diversos especialistas na área.

O que já se sabe é que a transmissão da doença pode ser contida ou minorada ante a redução do contato social, vez que a transmissão se dá pelo contato com a pessoa doente pelo aperto de mão, gotículas de saliva, espirro, tosse, catarro e objetos ou superfícies contaminadas, nos termos descritos pelo Ministério da Saúde. De outra sorte a prevenção é possível simplesmente pela lavagem das mãos com água e sabão ou higienização com álcool em gel 70%, bem como evitando-se tocar olhos, nariz e boca com as mãos não lavadas. Outra medida é não ficar em locais com aglomeração de pessoas para que gotículas de espirro e tosse dos infectados não atinjam diretamente quem não está doente.

Em linhas simples, lavar as mãos e não ficar em locais aglomerados são medidas eficazes para impedir a disseminação do vírus, e todos podem, portanto, evitar a contaminação. Verdade? Em termos...

Dados governamentais demonstram que, segundo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento - SNIS 2018, cerca de 35 milhões de brasileiros não tem acesso a abastecimento por água tratada e, conforme afirma o Instituto Trata Brasil em 2016, 1 em cada 7 mulheres brasileiras não tinha acesso à água, enquanto o número passa a 1 em cada 6 no caso dos homens. Obviamente quem está privado do acesso básico à água é a população mais pobre e, ato contínuo, a população negra, já que ela compõe 75% da população mais pobre e somente 25% entre os mais ricos, conforme revelou o IBGE no informativo "Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil".

Junte-se a isso o fato de que há também parcela da população que tem acesso à água mas não tem condições financeiras de adquirir sabão para fazer sua higienização básica, menos ainda para a aquisição de álcool em gel 70%.

Para continuar a descrever o quadro é imprescindível atentar-se ao fato de que a maior parte da população negra acaba sendo relegada à vida em regiões periféricas, sem infraestrutura básica, com um grande conjunto de pessoas vivendo em espaços reduzidos. No Brasil, segundo o IBGE, 6% da população mora em favelas (11,4 milhões de pessoas) ou em aglomerados subnormais como denomina o instituto, sendo a densidade populacional da favela de Paraisópolis na cidade de São Paulo superior a 45 mil pessoas por quilometro quadrado, enquanto a da cidade de São Paulo é de menos de 7.400 pessoas quilometro quadrado, conforme o Censo de 2010, número que se imagina ser ainda maior nos dias atuais ante ao aumento da população e agravamento das questões econômicas.

Em publicação de janeiro do corrente ano, o Brasil tem 13,6 milhões de pessoas vivendo em favelas, segundo informa a Agência Brasil com dados da pesquisa “Economia das Favelas - Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendada pela Comunidade Door1.

Como um grupo social que vive em tal realidade poderá cumprir alguma medida efetiva de distanciamento social? Aparentemente as medidas governamentais adotadas não tem o condão de atingir toda a população, principalmente ao se considerar a impossibilidade de acesso a água e distanciamento social, tendo sido costuradas sem ter em conta características específicas de uma parcela dos cidadãos, justamente aqueles historicamente segregados.

Acrescente-se que a população mais carente não reúne meios para se valer de alternativas viáveis para as classes mais abastadas. Não se faz plausível crer que poderiam restringir o convívio separando as pessoas em diversos cômodos da mesma casa, ou passarem a residir em casas distintas ou mesmo se dirigir para regiões mais seguras e isoladas para se afastar do risco de contrair a doença.

Dados iniciais coletados na cidade de São Paulo revelam um grande avanço no número de casos na periferia2 onde a realidade da comunidade se mostra mais deficitária, com um IDH baixo e elevado número de moradores por domicílio. Na Brasilândia, zona norte do município, as mortes aumentaram em 50% no período de uma semana em Brasilândia3.

Mesmo com todos esses dados já disponíveis não se vislumbra medidas governamentais para efetivar o acesso à água, sabão ou álcool em gel 70% aos mais carentes, na sua maioria pessoas negras, tampouco qualquer política pública para se mitigar a absurda densidade demográfica que atinge as regiões mais pobres, relegando a um maior risco àqueles que ali residem.

Não bastasse as questões socioeconômicas descritas, existem ainda elementos médicos que também acabam não sendo considerados pelos responsáveis pelas medidas de saúde pública que estão sendo tomadas, e que chega a ser até mesmo rechaçada por muitos, como se todas as pessoas fossem efetivamente idênticas entre si, sem as idiossincrasias inerentes ao ser humano.

De se considerar que tal atitude pode ter como base o racismo estrutural que grassa na sociedade brasileira e mundial, ou estar lastreado no que a norte- americana Robin DiAngelo denomina como white fragility, que é aquela percepção da população branca, majoritária nos cargos de comando, de afastar os elementos raciais e confrontá-los como irrelevantes para a tomada de decisões, por não se reconhecer como um grupo dominante e tampouco vislumbrar os privilégios dos quais é detentor, como bem indicado por pela professora de Bioética da Universidade de Harvard Charlene Galarneau4, indicada pela professor Luciana Dadalto em suas redes sociais.

Nesse contexto é preponderante considerar que existem alguns fatores que tem se mostrado mais letais para quem contrai a covid-19, as conhecidas comorbidades. Pacientes com hipertensão arterial, diabetes mellitus e doença cardiovascular estão entre os mais fatalmente vitimados pela doença, sendo indispensável uma maior atenção àqueles que padecem de tais enfermidades.

Para ler o artigo na íntegra clique aqui

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1 Moradores de favelas movimentam R$ 119,8 bilhões por ano. Clique aqui. Acesso em 30.04.20.

2 Veja a evolução das mortes pela Covid-19 pelos distritos da capital paulista. Clique aqui. Acesso em 30.04.20.

3 Mortes na Brasilândia, na zona norte de SP, crescem 50% em uma semana. Clique aqui.Acesso em 30.04.20.

4 GALARNEAU, Charlene. Structural Racism, White Fragility, and Ventilator Rationing Policies. Clique aqui Acesso em 24.04.20.

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*Leandro Reinaldo da Cunha é pós-doutor e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor Titular-livre de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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