Migalhas de Peso

Efeitos da excessiva subjetivização da progressão de regime penal no Brasil

Mostram-se necessárias providências excepcionais para reduzir a lotação carcerária e diminuir as falhas do sistema penitenciário nacional.

27/5/2020

É questão de destaque nos dias de hoje o perigo à vida e à saúde dos presos pela entrada e disseminação da doença infecciosa covid-19 nas penitenciárias brasileiras, o que nos remete ao problemático grande número de pessoas encarceradas em nosso país: mais de 750 mil, segundo a última atualização de dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)1.

Diante disso, mostram-se necessárias providências excepcionais para reduzir a lotação carcerária e diminuir as falhas do sistema penitenciário nacional.

Dentre muitos outros defeitos, o excesso de subjetividade contido nos processos de progressão de regime no sistema de Execução Penal brasileiro se destaca. É um problema antigo e, ao mesmo tempo, muito presente na vida dos indivíduos privados de liberdade, enclausurados em locais de reconhecido “estado de coisas inconstitucional”2.

Enorme quantidade de indeferimentos dos requerimentos de benefícios considera insuficientes o cumprimento da fração de pena necessária e o atestado de boa conduta carcerária, conforme as seguintes decisões exemplificativas3:

“O condenado não atenderia o requisito subjetivo, pois ‘não obstante o bom comportamento carcerário, através dos demais laudos e elementos dos autos, verifica-se que o sentenciado apresentou características que tornam no mínimo arriscada a concessão da benesse’, tendo em conta conclusão desfavorável de exame criminológico (fls. 48/49). Apesar de, como assinalado pela defesa, o relatório social elencar aspectos positivos do condenado, forçoso reconhecer que as características negativas do laudo psicológico se sobressaem, de modo que, por ocasião do indeferimento da postulação, o agravante não revelava mesmo mérito para a progressão de regime, conforme exige o art. 112, ‘caput’, da Lei de Execução Penal.” (TJSP, agravo em execução penal 9000381-54.2018.8.26.0637, DJe 07.12.18).

“(...) a elaboração do laudo criminológico por psiquiatra, psicólogo ou assistente psicossocial não traz qualquer mácula ou ilegalidade à decisão que indeferiu a progressão de regime com base em tal documento, mormente porque qualquer desses profissionais está habilitado a realizar perícia técnica compatível com o que se busca saber para a concessão do benefício de progressão de regime” (STJ, HC 371.602/MS, relator ministro Nefi Cordeiro, DJe 15.02.18)4.

Como é cediço, a apreciação individual dos benefícios da execução penal segue ainda um procedimento extremamente demorado, burocrático e subjetivo, abrindo enorme margem para a discricionariedade na recorrente negação das petições dos apenados, mesmo nos casos em que o Atestado de Conduta Carcerária (ACC) indique bom comportamento, visto que as decisões muitas vezes se baseiam em laudos psicológicos comprovadamente inadequados.

O retrógrado método do exame criminológico na análise subjetiva dos benefícios da execução da pena não se mostra apto a realizar prognóstico de reincidência ou aferição de periculosidade, visto que o laudo usado para essa finalidade, aparentemente dotado de caráter científico, é antitécnico, porque é irrealizável a tarefa de um funcionário do cárcere avaliar tais circunstâncias:

“ao invés de serem descompromissados e neutros instrumentos científicos, as avaliações ou exames técnicos de criminosos reproduzem todos os estereótipos e preconceitos, em suma toda a ideologia que permeia a questão do crime (...). Um determinismo cego, mecânico e simplista é o que caracteriza estes laudos de exame. É este tipo de determinismo que permite formular equações tais como: carências familiares na infância + miséria = crime” (Cristina Rauter. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 87-90).

Além da carência técnica, o estabelecimento de um prognóstico de reincidência ou a aferição de periculosidade constituiriam, segundo o Conselho Federal de Psicologia, violação ética, posto que excederia os “parâmetros técnico-científicos e éticos”, conforme foi disposto na resolução 12/11 do Conselho Federal de Psicologia (a qual se encontra suspensa por ordem judicial):

“Na perícia psicológica realizada no contexto da execução penal ficam vedadas a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente” (art. 4º, § 1º).

Ademais, vale lembrar que a lei 10.791/03 substituiu esse instrumento pelo atestado de conduta carcerária (art. 112, § 1º, Lei de Execução Penal) há mais de 15 anos. Os juízes que insistem na utilização deste instituto anacrônico se fundam na súmula vinculante 26 do STF, que declara a faculdade dos magistrados de, nos casos de crimes hediondos ou equiparados, determinar “de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”.

Apesar do caráter facultativo concedido à realização do exame, fato é que a súmula deu sobrevida para esse aparelho inquisitorial, trazendo enorme discricionariedade na apreciação dos benefícios e a incongruência de entendimentos entre varas, câmaras e turmas, o que deflagra sensação de insegurança jurídica.

Devido à impraticabilidade do julgamento individualizado em tempo hábil e com a técnica necessária, deve ser operada uma reforma nas meta-regras da prática dos juízes na análise da concessão de benefícios de execução penal, conferindo-se maior objetividade aos critérios utilizados: as decisões devem ser baseadas no comportamento carcerário do preso e no tempo de pena cumprida, únicos elementos capazes de apresentar avaliação razoavelmente neutra da situação, diferentemente de juízos excessivamente subjetivos e contaminados, como o exame criminológico.

Sem adentrar o mérito da efetividade do atestado de conduta carcerária na verificação da capacidade do preso retornar ao convívio em sociedade, tendo-se em vista a inexistência de qualquer ferramenta que possa realizar essa função, o ponto é que o cenário jurídico-penal nacional exige uniformidade e requisitos precisos e determinados para a progressão de pena em nossos tribunais, solução que pode provir de diretrizes do Conselho Nacional de Justiça, órgão direcionado a aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário.

Foi nessa linha de pensamento que o CNJ, diante do atual estado de calamidade pública causado pela pandemia do covid-19, editou a recomendação 62, de 17.03.20, na qual prevê uma série de providências a fim de evitar o contágio no sistema prisional5, dentre elas a “concessão de saída antecipada dos regimes fechado e semiaberto” (art. 5º, I), previsão ampla que engloba a antecipação da progressão de regime daqueles que estão próximos de alcançar o requisito objetivo e ou que já cumpriram o requisito objetivo, mas estão à espera de elementos para o requisito subjetivo (exame criminológico ou atestado de conduta carcerária).

É certo que, em momentos como o atual, assolado por grave crise sanitária e econômica, as falhas estruturais do sistema carcerário nacional se sobressaem, posto que são grandes os riscos de catastrófica mortalidade decorrente do alastramento do covid-19 em seu interior, o que se mostra mais preocupante em relação a presos provisórios ou a sentenciados que já tenham o direito de progredir a um regime menos gravoso.

É verdade que todos os brasileiros estão ameaçados pelo novo coronavírus. Todavia, a precariedade da estrutura de assistência à saúde e das condições de vida da maior parte dos estabelecimentos prisionais brasileiros potencializa e multiplica as chances de contaminação e morte destes indivíduos que estão sob a custódia e responsabilidade do Estado.

Desta forma, o já exposto problema da excessiva subjetivização da análise judicial da progressão de regime penal se faz mais presente e desencadeia efeitos nocivos à nossa noção constitucional e democrática de cidadania. Afinal, há Estado Democrático de Direito se não há cuidados com a vida dos cidadãos?

Observou-se que, em absoluta contrariedade à referida recomendação do CNJ, os tribunais brasileiros vêm refutando a maioria dos pedidos de progressão de pena fundados nos dispositivos daquele documento, assim como têm negligenciado as necessárias medidas de urgência que visam proteger a saúde e a vida dessas pessoas que também são dotadas de dignidade humana.

Exemplo disso é o indeferimento do habeas corpus coletivo formulado pela Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina, em que se requeria progressão antecipada para o regime aberto dos presos dos estabelecimentos prisionais de Florianópolis que estão em regime semiaberto e irão cumprir o requisito objetivo para o benefício nos próximos 6 meses, com fundamento no fato de a própria estrutura local não garantir segurança alguma contra o espalhamento da doença.

Os desembargadores afirmaram que “inexiste comprovação de que todos os detentos se encontram no grupo de risco da doença”, questão irrelevante sob o ponto de vista fático ou jurídico. Os especialistas da área da saúde foram claros ao afirmar que todos, sem exceções, estão em risco de vida e de agravamento da doença em caso de contaminação, sendo que as pessoas em “grupo de risco” estão, na verdade, apenas mais propensas a desenvolver um quadro grave da enfermidade6.

Além disso, a recomendação 62/20 do CNJ não estabelece essa condição como requisito necessário à progressão antecipada, mas apenas confere destaque (“sobretudo em relação”) às pessoas que se enquadrem no grupo de risco (art. 5º, caput e inciso I).

Nesse sentido, seria irresponsável deixar de reconhecer o perigo à vida de pessoas alocadas no sistema prisional brasileiro, devido às suas péssimas condições, que potencializam a proliferação do vírus e reduzem as chances de assistência de saúde aos presos, assim como ficou reconhecido no preâmbulo da recomendação 62 do CNJ:

“(...) fatores como a aglomeração de pessoas, a insalubridade dessas unidades, as dificuldades para garantia da observância dos procedimentos mínimos de higiene e isolamento rápido dos indivíduos sintomáticos, insuficiência de equipes de saúde, entre outros, características inerentes ao ‘estado de coisas inconstitucional’ do sistema penitenciário brasileiro reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347”.

Vale ressaltar que, a despeito de opiniões radicais favoráveis ao encarceramento em massa, sem preocupação com o direito à vida ou à saúde do apenado, no que constitui verdadeiro direito penal do inimigo, nossa Constituição veda a pena de morte e a aplicação de penas cruéis. O poder punitivo tem seus limites delineados na previsão legal e na sanção imposta em devido processo legal, de modo que “os excessos e os desvios que caracterizam a realidade carcerária nacional não podem ser vistos com naturalidade pelos órgãos competentes e responsáveis”7.

Embora essas observações sejam fatos de conhecimento geral, boa parte dos magistrados discorda e o julgamento acima criticado não se trata de decisão isolada. Diversos Habeas Corpus coletivos foram rejeitados, como no caso do HC 574.978/SC8, em que o Superior Tribunal de Justiça defendeu a inadequação da via processual e a impossibilidade de progressão de pena sem a análise individualizada de cada caso com seu mérito subjetivo.

Mesmo os pedidos individuais também vêm sendo negados, invocando-se os mais diversos argumentos: inexistência de perigo à saúde do apenado por não se enquadrar em grupo de risco (TJSP, HC nº 2066985-19.2020.8.26.0000); ausência de força cogente na recomendação 62 do CNJ e falta de risco concreto à saúde dos presos (TJSC, agravo de E.P. 0000432-76.2020.8.24.0033; TJMG, HC 10000200337269000); supressão de instâncias ao impetrar HC (TJSP, HC 2058496-90.2020.8.26.0000; TJMG, HC 10000200339141000); imprescindibilidade do exame criminológico por conta da gravidade do crime (TJSP, HC 2075576-67.2020.8.26.0000); insuficiência do bom comportamento carcerário para o requisito subjetivo (TJGO, HC 02078199220208090000); e outros.

Além disso, verifica-se que continua ocorrendo indevido excesso de prazo na apreciação dos requerimentos, a exemplo do processo de execução penal 794.895, da 1ª Vara de Execuções Criminais de Araçatuba/SP, o qual ensejou reclamação ao Superior Tribunal de Justiça e a Corte reconheceu que “a demora na apreciação de qualquer pedido formulado pela defesa do paciente configura manifesto constrangimento ilegal, principalmente se considerarmos que ele se enquadraria no grupo de risco da Covid19” (STJ, Habeas Corpus 573.495/SP, relator ministro Sebastião Reis Júnior, DJe 18.05.20) e determinou liminarmente a avaliação imediata do pedido pelo Juízo.

Essa postura dos tribunais demonstra excessivo apego à formalidade e a procedimentos muito demorados, o que está se sobrepondo à materialidade dos direitos previstos e das vidas em risco.

Entretanto, a situação é emergencial e o panorama da prática judicial é carente de critérios objetivos, razões pelas quais é necessária a flexibilização das regras processuais do STJ para aceitar, excepcionalmente nesse contexto, a via de Habeas Corpus coletivo, desde que esteja de acordo com a recomendação 62 do CNJ e com a legalidade. O plano material deve prevalecer sobre o formal.

Ainda que os tribunais desconsiderem essa necessidade urgente e continuem defendendo a indispensabilidade da análise individual e subjetiva, o mínimo que deve ser feito é a imposição aos magistrados de critérios determinados e objetivos e de prazo máximo rígido para o julgamento. Mais que isso, deve-se fazer, através de controle e fiscalização, com que tais regras sejam respeitadas, tendo-se em vista a cultura judicial brasileira do “não prazo” e da fundamentação rasa.

O cerne desse problema, que é cultural e estrutural, insere-se em uma lógica de recrudescimento do sistema penal, fortalecido por determinantes sociológicas como a opinião pública e o populismo penal. Retrato disso é a recém promulgada lei 13.964/20, denominada não por acaso como “anticrime”, que elevou consideravelmente as frações de pena cumprida exigidas como requisito objetivo para a progressão de regime, conforme o artigo 112 da Lei de Execução Penal.

Diferente foi o rumo dado ao projeto de lei 2.684/159, o qual, versando sobre a imposição do prazo de 15 dias para a apreciação judicial dos pedidos de progressão e outros benefícios, sequer foi colocado em pauta para votação no Plenário da Câmara dos Deputados.

Como resultado da lógica punitivista e encarceradora de nossa sociedade, refletida nos atos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, desenha-se, em nosso país, um quadro de hiperencarceramento que somente tende a aumentar e se reproduzir.

Apesar de a questão ser predominantemente criminológica, não se limitando à técnica jurídica, a atuação do Direito Penal é importante na luta formal contra as incongruências do sistema de justiça criminal em nosso Estado Democrático de Direito, cujas garantias, ainda que mínimas, são valiosas.

Nesse sentido, em meio à onda punitiva das últimas décadas, que permeia a nossa realidade e centraliza o discurso do encarceramento em massa como solução para a criminalidade, é preciso que se busque saídas alternativas que enfoquem os valores de proporcionalidade e dignidade humana:

É necessário colocar limites ao crescimento da indústria carcerária. A situação exige uma discussão séria sobre os limites de crescimento do sistema formal de controle do crime. Pensamentos, valores, ética – e não o impulso industrial – devem determinar os limites do controle, o momento em que este já é suficiente. O tamanho da população carcerária é consequência de decisões. Temos liberdade de escolha. Só quando não temos consciência desta liberdade é que as condições econômicas e materiais reinam livremente. O controle do crime é uma indústria. Mas as indústrias têm que se manter dentro de certos limites (Nils Christie. A Indústria do Controle do Crime. Tradução de Luis Lereira. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1998, p. 3).

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1 Levantamento de dados INFOPEN. Disponível em: clicando aqui. Acesso em 19.05.20.

2 "Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como 'estado de coisas inconstitucional’” (STF, ADPF 347/MC, relator ministro Marco Aurélio, DJe 19.02.16).

3 Em igual sentido, tem-se vários acórdãos de Agravos em Execução Penal: 7006890-29.2015.8.26.0576 (TJSP); 0028586-62.2014.8.26.0000 (TJSP); 0030184-39.2017.8.08.0035 (TJES); 0020014-31.2019.8.12.0001 (TJMS); 10324170039592001 (TJMG); 0705472-08.2019.8.07.0000 (TJDF); e muitos outros em diferentes Estados.

4 A jurisprudência do STJ também é uníssona no sentido de ratificar essas decisões: HC 165.201/RS; HC 167.050/SP; HC 136.679/RS; HC 129.420/SP; e outros.

5 Disponível em: clicando aqui. Acesso em 06 mai. 2020.

6 Disponível em: clicando aqui. Acesso em 06 mai. 2020.

7 Salo de Caravalho, in CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2014, p. 407.

8 No mesmo sentido, estão as decisões do STJ nos seguintes Habeas Corpus: HC 572292/AM, HC 570634/DF, HC 570440/DF, HC 575.315/SP, HC 575.314/SP e HC 576.036/SP.

9 PL 2684/2015. Câmara dos Deputados. Disponível clicando aqui. Acesso em 11 mai. 2020.

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*Rafael Dezidério de Luca é advogado criminalista no escritório Castelo Branco Advogados Associados e graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, com estágio de estudo e pesquisa na Università Degli Studi Romatre.

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